A
legislação processual prevê, embora sem muito rigor técnico, que o delegado de
polícia deverá “colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do
fato e suas circunstâncias” (art. 6º, III, do CPP).
De
início, duas considerações a respeito dessa regra legal. A primeira é que o
inquérito policial não se destina, em regra, à formação de provas.[1]
Buscam-se, na verdade, elementos informativos para análise da justa causa
processual penal, isto é, verificação de materialidade criminosa e indícios de
autoria. A segunda é que a cognição da investigação preliminar é limitada[2];
portanto não se produzem “todas as provas” (sic), mas os elementos informativos
suficientes e necessários para a deflagração (ou não) de ação processual penal
pelo respectivo legitimado (ativo).
Superadas
essas questões preambulares, pode-se agora explorar o núcleo dessa previsão
legal: o caráter factual da investigação criminal. O inquérito policial deve
ser uma pesquisa técnico-jurídica a partir de uma notícia de fato supostamente
criminoso, e não conforme eventuais pessoas assim implicadas na persecução
penal. O foco está, ou melhor, deveria sempre estar na base fática
(investigada), e não na rotulação pessoal (do investigado).
Isso
pode parecer, à primeira vista, somente um jogo de palavras; contudo, a prática
demonstra justamente o contrário. Se o órgão de investigação não tiver plena
consciência de que o inquérito policial se destina, respeitados os limites
normativos constitucionais e convencionais, à busca de evidências informativas
concretas a respeito da notitia criminis (e suas circunstâncias), o risco de
abuso é demasiadamente elevado.
Esse
tipo de exigência metodológica investigativa mostra-se condizente com
determinado modelo jurídico material, tido como menos irracional e violento, o
direito penal do ato (ou do fato), em contraposição às ideais ligadas a um
direito penal de autor.[3] Com efeito, num ambiente democrático, fundado no
Estado de Direito, incumbe às agências públicas do sistema de persecução
criminal sério compromisso com uma investigação criminal factual, e não por
simples modos de vida, estilos de pensamento, estados políticos ou
posicionamento ideológicos de quem quer que seja. Sem uma notícia de fato
concreto aparentemente delitivo não há que se falar em qualquer investigação
preliminar processual penal.
Importante
frisar que o delegado de polícia, na condução do inquérito policial, tem o
dever constitucional, a partir da garantia do devido procedimento legal, de
agir com impessoalidade na busca por elementos de informação. Incumbe,
portanto, ao órgão de investigação manter a mesma distância de quaisquer dos
envolvidos no caso penal, em especial da vítima e do suspeito, bem como
afastar-se de interesses parciais ou pretensões exclusivas dos sujeitos processuais.
Repita-se
que ao longo do procedimento investigativo não se deve preterir (ou preferir)
dados que sirvam ao esclarecimento da notícia de fato (e suas circunstâncias)
apenas por serem favoráveis (ou desfavoráveis) ao imputado. Aliás, em diversas
legislações estrangeiras, como a chilena[4] e a italiana[5], há expressa
referência a esse dever ético e jurídico do Ministério Público enquanto
responsável pela direção das investigações preliminares nesses sistemas, quando
se fala, então, em um imperativo de “objetividade” [6] nessa instância
persecutória criminal. A mesma lógica deve(ria) se aplicar, por aqui, no âmbito
da Polícia Judiciária Investigativa, quanto ao modo de presidência (e condução)
do inquérito policial.
Em
suma, toda atividade oficial de coleta informativa preliminar a respeito de um
possível fato delitivo deve buscar, nos limites da justa causa processual
penal, os mais diferentes tipos de vestígios criminosos[7], sem qualquer
parcialidade ou (uni)direcionamento apuratório. Justo porque, independente dos
órgãos e sujeitos envolvidos, a investigação criminal deve ser, antes de
qualquer coisa, uma pesquisa factual e comprometida com os parâmetros estritos
do Estado de Direito. Do contrário, pura vingança individual travestida de
investigação estatal.
[1]
Conforme Badaró e Gomes Filho, “os elementos trazidos pela investigação não
constituem, a rigor, provas no sentido técnico-processual do termo, mas
informações de caráter provisório, aptas somente a subsidiar a formulação de
uma acusação perante o juiz ou, ainda, servir de fundamento para admissão dessa
acusação e, eventualmente, para a decretação de alguma medida de natureza
cautelar” (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; GOMES FILHO, Antônio
Magalhães. Prova e Sucedâneos de Prova no Processo Penal Brasileiro. Revista
Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 65,
mar./abr. 2007, p. 193).
[2]
MACHADO, Leonardo Marcondes. Introdução Crítica à Investigação Preliminar. 01
ed. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018, p. 103.
[3]
O tradicional “direito penal de autor” supõe que a essência do delito reside em
uma característica do sujeito criminoso, ou seja, o delito figura como “sintoma
de um estado do autor, sempre inferior ao das demais pessoas consideradas normais”.
Cite-se, ainda, um “novo” direito penal de autor “que, sob a forma de direito
penal do risco, antecipa a tipicidade na direção de atos de tentativa e mesmo
preparatórios”. Já o “direito penal do ato”, negando características ônticas
que diferenciem os conflitos criminalizados de outras hipóteses conflitivas
(não criminalizadas), estabelece limites importantes ao exercício da punição
criminal como a exigência de que os fatos se restrinjam aos provocados por
ações humanas, alcançadas pela criminalização primária e segundo as balizas
culpabilidade pelo ato (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA,
Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: teoria geral do direito
penal. v. 1. 03 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006, pp. 131 – 135).
[4]
Constitución Política de la República de Chile. Art. 80-A. “Un organismo
autónomo, jerarquizado, con el nombre de Ministerio Público, dirigirá en forma
exclusiva la investigación de los hechos constitutivos de delitos, los que
determinen la participación punible y los que acrediten la inocencia del
imputado (…)” / Ley Organica Constitucional Del Ministerio Publico. Art. 3º.
“En el ejercicio de su función, los fiscales del Ministerio Público adecuarán
sus actos a un criterio objetivo, velando únicamente por la correcta aplicación
de la ley. De acuerdo con ese criterio, deberán investigar con igual celo no
sólo los hechos y circunstancias que funden o agraven la responsabilidad del
imputado, sino también los que le eximan de ella, la extingan o la atenúen”.
[5]
Codice di Procedura Penale. Art. 358. Attività di indagine del pubblico
ministero. “1. Il pubblico ministero compie ogni attività necessaria ai fini
indicati nell'articolo 326 e svolge altresì accertamenti su fatti e circostanze
a favore della persona sottoposta alle indagini”.
[6]
A partir do dever funcional de objetividade, tem-se que, no modelo chileno, los
fiscales están obligados no sólo a indagar aquellos hechos relacionados con su
propia estrategia de investigación, a partir de los antecedentes disponibles,
sino también aquellos invocados por el imputado o su defensa para excluir,
eximir o mitigar su responsabilidad penal” (LENNON, María Inés Horvitz; MASLE,
Julián López. Derecho Procesal Penal Chileno. t. I. Santiago: Editorial
Juridica de Chile, 2002, p. 453).
[7]
FENOLL, Jordi Nieva. Fundamentos de Derecho Procesal Penal. Madrid:
Edisofer/Buenos Aires:EditorialBdeF, 2012, p. 102.
Leonardo Marcondes Machado é
delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR,
especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito
Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.
Contato:
www.leonardomarcondesmachado.com.br
Revista Consultor
Jurídico
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