No
Brasil colônia, uma mulher indígena foi retirada de sua aldeia por um europeu e
levada para outra cidade. Lá, após ser obrigada a casar com ele, acabou tendo
filhos. Esse é um cenário que se repetiu diversas vezes na formação do país:
indígenas retiradas de suas etnias para casarem com homens brancos. É também a
história da tataravó de Carlos Eduardo da Silva Perereira, nascido em Guaíba,
que durante a infância descobriu sua descendência indígena. “Ela foi uma índia
retirada de seu local de nascimento e levada por um europeu para Cerro Grande
do Sul, no interior do Rio Grande do Sul”, conta. Apesar de descobrir a origem
de sua família, Eduardo não sabe detalhes sobre a vida de sua tataravó antes do
casamento forçado: “Existe literalmente um rompimento dessa existência, não
existem registros sobre a vida anterior dessas mulheres que foram retiradas de
suas aldeias e acabaram sendo casadas à força, que é o caso da minha família”.
Esse
apagamento da verdadeira história dos povos originários do Rio Grande do Sul,
marcada por opressões, silenciamentos e retirada de direitos, é o tema do Abril
Indígena no Memorial do Rio Grande do Sul, uma edição especial do projeto Mês a
Mês na História, criado pelo Arquivo Histórico do RS. Carlos Eduardo, que é graduando
em história, integra a equipe que realizou a produção e a curadoria de
documentos e fotografias que compõem a exposição ‘Índios no Rio Grande: uma
História de lutas, dificuldades e resistência’, em cartaz entre os dias 09 de
abril e 31 de maio, no primeiro andar do Memorial.
Historiógrafa
Rejane Penna Martins, do Arquivo Histórico do RS. (Foto: Guilherme
Santos/Sul21)
Trechos
de cartas ou anotações, mapas, arquivo de matrícula, fotos, ilustrações e
concessões de sesmarias em territórios indígenas, são algumas das documentações
que estão presentes na mostra. “Nós reunimos um pouco de documentos históricos
que falam sobre aldeamentos, catequeses e histórias de cotidiano justamente
para mostrar essa opressão, não diria nem um embate cultural porque não existe
uma igualdade nele, é literalmente opressão. Uma cultura branca europeia
submetendo a cultura indígena a determinados costumes”, explica Carlos Eduardo.
Nenhum
dos documentos é escrito pelos indígenas que viviam na região, uma vez que não
existem esses arquivos. “Quando se trabalha com categorias que sofreram
opressões, como negros, índios, crianças, tu não consegue encontrar um
documento que seja a própria voz deles”, explica a historiógrafa Rejane Penna
Martins, que desde 2004 integra o Arquivo Histórico do RS. Nesse contexto, os
curadores procuraram na fala “daqueles que dominaram e escravizaram” os povos
indígenas relatos que contassem mais sobre a história dos índios.
Rejane,
que não tinha o costume de pesquisar a causa indígena, conta que sempre recusou
“o coitadismo do índio”, expressão utilizada para falar que os povos
originários estão se fazendo de coitados ao exigir suas terras ou lutar por
seus direitos, mas que essa ideia mudou a partir da leitura que fez de todos os
documentos que narram a relação dos povos colonizadores com os índios. “Tu não
precisa buscar relatos horrorosos, eles [colonizadores] denotam um desprezo
pelos índios. Se percebe que quando eles dizem que compreendem a cultura
indígena ou sobre as tentativas de entender ela, como quando falam de
aprendizado da língua, não é no sentido de compreender realmente essa cultura,
mas sim para utilizá-la no sentido utilitário, para poder mandar melhor, poder
controlar melhor”, conta Rejane.
Segundo
a historiógrafa, no relato dos colonizadores também fica evidente como foi
criada a visão pejorativa que ainda se tem hoje em dia acerca dos índios. “É
uma visão de que eles eram preguiçosos, ferozes, feios. Mas eles eram
preguiçosos porque não queria trabalhar no modelo europeu, né. A mulher
indígena era vista como uma mulher sem moral”, conta. Para Rejane, os europeus
enxergavam os índios somente de duas formas: como inconvenientes ou como
utilitários, mas nunca como “um ser humano pleno”. Ainda, os documentos mostram
que não havia nenhuma tentativa em esconder essa visão, pois os europeus a
assumiam como a verdade absoluta a respeito daqueles povos.
Um
exemplo disso é o texto escrito pelo diretor de um aldeamento. “Não havendo
força nos aldeamentos nada pode prosperar, não há quem os faça trabalhar, quem
os contenha em respeito, quem os prive de andar em magotes pelos matos na
antiga vida ociosa e preguiçosa”, diz um trecho do documento.
Dentre
os arquivos presente na mostra, Rejane e Carlos Eduardo destacam alguns que
resumem mais claramente o cenário vivido pelos povos originários no Rio Grande
de Sul. Um deles é um livro de registros, datado de 1768, utilizado pelo
comandante da cavalaria da época para cadastrar os índios. Porém, eles eram
registrados pelo seu nome de nascença, mas abaixo dele era escrito o nome
europeu pelo qual deveriam ser chamados. “Até o nome eles tiveram que trocar, é
uma colonização completa”, pontua Rejane”. Outros são um documento sobre as
terras de um aldeamento que foi transferido para virar colônia européia, um
sobre as incursões militares para exterminar os índios na fronteira do Rio da
Prata e outro sobre o trabalho compulsório na coleta da erva mate.
Ainda,
um mapa de 1757, que mostra uma parte do Rio Grande do Sul, na divisa com o
Uruguai, representa a importância que os povos indígenas possuem na construção
do Estado e do que se conhece sobre ele. “A criação desse mapa só foi possível
com a tecnologia que os europeus tinham na época e com os auxílio dos índios,
porque eram os indígenas que conheciam o território. Então, a configuração
cartográfica do Rio Grande do Sul foi feita por intermédio do auxílio dos
indígenas, assim como as nossas principais estradas. Tudo isso foi descoberto
antes pelos índios, que eram os grandes conhecedores das terras”, afirma
Rejane. De acordo com ela, os povos originários foram muito presentes em todos
episódios do Estado até por volta de 1800. “Depois desse período, o extermínio
já tinha sido tão grande, que o índio já estava circunscrito a determinados
espaços”, explica.
Espaço
de resistência
“As
pessoas não reconhecerem a cultura e os direitos indígenas porque é um processo
que está muito envolto dentro de uma questão cultural da população brasileira”,
afirma Carlos Eduardo sobre o desconhecimento que há sobre a história dos povos
originários, que ao longo dos anos foi distorcida pela visão colonizadora
acerca dessas pessoas. Para ele, esses espaços que dão o lugar de fala para o
povo que foi oprimido podem contribuir para que haja um maior respeito a esses
povos. “Essa exposição mesmo é uma forma de resistência a essa ideia que surge
hoje de ir contra a maré, que era antes era justamente reconhecer o direito
desses povos, já hoje é relativizar o direito dessas etnias. Então ela entra
como um espaço de resistência porque trazer essas fontes documentais é contar a
história desse povo, dessas etnias, é mostrar o seu papel dentro da história”,
afirma. Para o estudante, o acesso a esses documentos também pode gerar um
entendimento maior para a população à respeito do trabalho e da legitimidade
dos historiadores, categoria que ele enxerga como sendo “cada vez mais
relativizada e atacada”.
Para
Rejane, a história dos povos indígenas não pode aparecer somente em uma
situação pontual, como uma exposição ou em um único dia do ano. “Estudar o
índio não pode ser só em um mês no ensino médio ou com as crianças e depois ser
esquecido. Tem que ser algo incorporado a nossa história no dia a dia. Hoje
vemos os índios na Rua da Praia vendendo artesanato, todos em uma condição
bastante precária, e todo mundo se compadece ou acha curioso, mas aquilo ali é
o resultado de um longo processo de não aceitação de uma cultura e de retirada
de terras”, pontua a historiógrafa.
Em
um contexto político de ataques cada vez maiores aos direitos indígenas, à
Fundação Nacional do Índio (Funai) e de aumento da discussão sobre as reservas
indígenas no país, Rejane afirma o quão urgente se faz entender a história
indígena. “O que tu conhece é mais difícil de ignorar e de aniquilar. E eu acho
mais do que nunca importante que a história do índio junto ao branco seja mais
discutida para que o índio seja mais respeitado. Porque hoje o índio ainda não
é respeitado, ele é tolerado, no máximo”, diz.
Além
da mostra, a edição especial também irá ter projeções dos documentários
apresentados na III Mostra Tela Indígena, que aconteceu em Porto Alegre, em
setembro de 2018, e com debates sobre o tema. É possível acompanhar a
programação na página do Memorial.
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