A
alusão ao samba de Noel Rosa, no título deste artigo, não é sem propósito.
Sendo o samba, e o futebol, um dos componentes do DNA da identidade brasileira,
a ironia do poeta da Vila é de deixar triste e cabisbaixo qualquer um que ame a
cultura popular.
Noel
não se fez de rogado ao expor ao ridículo a tendência das elites culturais
tupiniquins da época em afrancesar-se ou americanizar-se para se parecerem
sofisticadas. Dizia ele num de seus sambas, eternizado na voz de Aracy de
Almeida:
Amor
lá no morro é amor pra chuchu
As
rimas do samba não são I love you
E
esse negócio de alô,
Alô
boy, alô Johny
Só
pode ser conversa de telefone
Ao
mesmo tempo que faz galhofa do vazio moral dessas elites, acusa também a
cultura oficial escolar, preocupada em macaquear uma tradição que pouco lhe diz
respeito e que, em contato com a realidade social brasileira, figura-se
ridícula, porque postiça: não se aprende samba no colégio não porque não seja
legítimo, mas porque o colégio está atolado no pedantismo que rejeita o Brasil
real, com sua originalidade, em favor de um “glacê” simbólico que, deslocado do
país de origem, não significa nada, ou antes, indica uma moléstia congênita e
atroz, que Nelson Rodrigues definiu agudamente como “complexo de cachorro
vira-lata”.
Ora,
que nos idos dos anos 20 do século passado não se ensinasse samba no colégio é
compreensível, embora não justificável. Agora, que depois da Revolução de 30,
do golpe do Estado Novo, da redemocratização pós Segunda Guerra, dos anos JK,
de uma nova ditadura ainda mais cruel que a primeira, de novo período de
redemocratização dos anos 80, que depois de Noel Rosa e Nelson Rodrigues, para
não estender demais a lista de citações, ainda não se ensine samba no colégio é
pra lá de lamentável.
Quem
não sabe que em sociedade letrada a cultura apóia-se no sistema educacional?
Grande parte da vida de crianças e adolescentes é, nos dias atuais, vivida no
interior da escola, o que significa dizer que aquilo que é experimentado no
âmbito dela tem peso decisivo na formação de gerações e gerações de
brasileiros.
Porém,
qual é mesmo a atenção que se tem dado a que nosso sistema educacional volte-se
para elementos formativos do povo brasileiro? Reclama-se do mau gosto
generalizado o qual crescentemente propicia o sucesso de lixo cultural em
volumes astronômicos, a congestionar a programação de Internet, rádio e TV. A
que se deve essa situação senão ao fato de que hoje não se aprende samba nem no
colégio nem em praticamente nenhum outro canto? A música brasileira sobrevive à
margem da mídia e do sistema educacional oficial graças a gênios surgidos fora
do colégio, a maioria já passada dos 50 anos e que vai deixando raros
herdeiros.
Num
momento em que a luta contra o analfabetismo e pela consolidação de uma cultura
escolar mais consistente ganha relevo, seria alvissareiro que o Brasil pulasse
os muros da escola de fora para dentro, porque, parafraseando agora Simone de
Bouvoir, quer era francesa, mas nunca foi glacê cultural, não se nasce
brasileiro: torna-se brasileiro.
É
preciso, sim, ensinar samba no colégio (samba, aqui, é metáfora, colégio não):
sua história, suas narrativas, seus temas e formas, seus poetas e intérpretes,
pois a função da escola no Brasil não é formar um cidadão abstrato, ascético e
anticéptico – que é o que se depreende da maioria dos atuais projetos
pedagógicos das instituições de ensino oficial –, mas formar um cidadão
brasileiro, cuja identidade é hoje indissociável da música brasileira, das
cantigas de ninar à música instrumental.
Falei
disso tudo para falar de outra coisa, o que dá na mesmo: se não é possível ser
brasileiro sem o condimento da música brasileira, que dizer do nosso patrimônio
audiovisual? Se é uma aberração que não se ensine samba nas escolas básicas
brasileiras, é também anomalia bizarra que brasileiros, mergulhados numa cultura
cada vez mais audiovisual, saiam analfabetos dessa gramática ao fim de 11
(agora 12) anos de escolarização – isso porque a expressão “inclusão digital”
anda na moda... Crianças e adolescentes passam horas preciosas de suas vidas em
frente de uma TV e não são capazes de saber se os estão fazendo de idiota ou
outra coisa – e outra coisa, aqui, seria uma bênção.
Quem
é que não sabe que o audiovisual é um setor estratégico para uma nação? Como é
que se quer formar um “cidadão crítico” (os projetos pedagógicos amam essa
expressão), se crianças e adolescentes são privados do be-a-bá da gramática
audiovisual? Como ser crítico, ou antes, como ser cidadão, estando-se condenado
ao analfabetismo desse idioma que já é mais universal que o inglês?
Formar
público para nossa música e para nossas produções audiovisuais, de TV e de
cinema, é, sim, obrigação de nossas escolas de ensino Fundamental e Médio. E se
esses dois componentes genéticos do Brasil ainda não foram incorporados aos
currículos oficiais, agradeçamos aos nossos sonolentos legisladores e aos
nossos governantes faltos daquilo que Machado de Assis chamou “instinto de
nacionalidade”, todos eles discípulos do malandro ironizado por Noel Rosa que:
“Deixou de sambar dando pinote/ na gafieira dançando o foxtrote”. E ninguém
tasca, segundo Aracy de Almeida.
* Jeosafá Fernandez
Gonçalves, escritor, é doutor em Letras e pesquisador colaborador do
Departamento de História da USP
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