A
imprensa livre não pode ser asilo para discursos de ódio e destruição da
democracia
“Os
que prezam a democracia devem cerrar fileiras com o STF e não submetê-lo a
maior desgaste, porque isso só viria a favorecer os que querem passar por cima
do consenso por liberdade, justiça e paz que se construiu com a derrocada da
ditadura”
Um
país desmoralizado no cenário mundial, confuso, paralisado.
Este
é o quadro político que se instalou no Brasil depois do golpe parlamentar de
2016, que destituiu a presidenta legitimamente eleita. Uma Nação desnorteada
por lideranças que não se preocupam em liderar, mas em instalar um verdadeiro
vale tudo.
Muitos
insistem em querer se impor no grito. E, na gritaria geral, parece ganhar quem
grita mais alto. Danem-se os bons modos e a missão de informar dos meios de
comunicação.
Ninguém
se preocupa mais em convencer ninguém. Os que gritam querem intimidar pelo medo
ou pelo susto, querem calar quem deles discorda.
O
mais recente motivo de gritaria foi uma ordem do ministro Alexandre de Moraes,
do STF, de retirada de matéria da revista Crusoé e do sítio eletrônico O
Antagonista.
Estes
haviam divulgado um suposto codinome – “amigo do amigo de meu pai” – que
Marcelo Odebrecht usara numa correspondência eletrônica para o Jurídico de sua
empresa, a referir-se, segundo teria informado à Força-Tarefa da “Operação
Lava-Jato”, ao ministro Dias Toffoli, hoje presidente do STF, quando era
Advogado-Geral da União.
A
ordem de retirada (ou “censura”) foi dada num inquérito judicial mandado
instaurar pelo próprio presidente da corte, para apurar sistemáticos ataques à
reputação institucional e de magistrados supremos. É esse inquérito que está
sob a relatoria e presidência do ministro Alexandre de Moraes.
Dias
depois, o relator revogou a medida sob intensa pressão da chamada “opinião
pública”. Para uns, revelou bom-senso; para outros deu sinal de fraqueza.
Foram
dois os flancos expostos pela ação do STF. Um, o próprio inquérito e, outro, a
dita “censura”.
Em
tempos em que atores de todas as frentes políticas estão com os nervos à flor
da pele, parece que o tribunal conseguiu a proeza de unir a direita com parte
da esquerda num coro contra aquilo que se passou a ver como “usurpação” de
atribuições do Ministério Público e violação da liberdade de imprensa e de
expressão.
Por
outro lado, o momento do país não é de normalidade.
Assistimos
a um embrutecimento da linguagem na política e na comunicação social como um
todo. Há um evidente ataque a instituições e atores que não se atêm às regras
do jogo democrático.
Percebe-se,
no espaço público, baixíssima lealdade à Constituição e suas liberdades e
garantias, afetando o gozo de direitos e a proteção de grupos vulneráveis.
Se
tínhamos, até 2016, uma democracia considerada de baixa intensidade, com a
tortura disseminada na prática policial, as execuções sumárias como rotina no
enfrentamento da criminalidade, o desrespeito à territorialidade indígena a
causar centenas de mortes no campo, assim como a denegação do direito à terra a
quem nela trabalha, temos hoje o discurso de ódio contra grupos sociais e
políticos vicejando com assustadora “normalidade” no nosso cotidiano.
Há
em muitos de nós a sensação de que nos tornamos bárbaros, com a truculência não
conhecendo limites.
Alguns
meios de comunicação deram inegável contribuição a esse estado de coisas, mas,
por vários fatores que a história ainda saberá examinar, as instituições têm
tolerado essa violência, principalmente o judiciário, que deveria ser o garante
maior das liberdades públicas e dos direitos fundamentais.
Em
inúmeros episódios de violação das regras do jogo democrático temos nos
deparado com tribunais emasculados, aparentemente com medo de enfrentar a
“opinião pública” e preferindo deixar o barco correr.
A
percepção que se teve, a partir das iniciativas no STF, é que, com as chamas do
fogo fascista chegando a engolfar as torres de marfim de ministros e ministras
da corte, seu presidente resolveu reagir. Não em boa hora, pois esta já passou
há tempos, mas, espera-se, não tarde demais.
O
inquérito aberto pelo ministro Dias Toffoli causou enorme alvoroço corporativo
no Ministério Público Federal. Sua Procuradora-Geral se viu passada por cima,
sustentando que o STF só poderia agir por provocação e se houvesse algum
investigado com foro por prerrogativa de função. Investigar de ofício violaria
prerrogativa da PGR e atentaria contra o princípio acusatório.
Os
argumentos são fortes. Mas a investigação nos tribunais superiores tem
características próprias. Para começar, inquéritos são conduzidos por um
ministro-relator e não por procurador.
É
verdade que, de regra, o ministro-relator adota postura reativa, deixando que
ministério público e polícia deem o impulso processual. Mas isso não retira do
relator a presidência do inquérito e, com isso, a última palavra na condução
dos atos investigatórios.
Há,
ainda, outro pormenor no caso específico do inquérito sob a presidência e
relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
Sua
instauração se deu sob a competência regimental para investigação de crime
praticado nas dependências do STF.
Essa
competência é do presidente da corte. E, de fato, como as ofensas e os ataques
ao STF têm se dado no espaço virtual que penetra o sistema informatizado do
STF, não é exagero considerá-los praticados no território do tribunal.
Determina
o art. 42 do Regimento Interno do STF que o
“Presidente responde pela polícia do
Tribunal” e, nesse âmbito, dispõe-se no artigo seguinte, que “ocorrendo
infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente
instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua
jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro”.
Considerando
que os ataques à corte no espaço virtual têm ou pretendem ter inegável impacto
na prestação jurisdicional e na relação do tribunal com a sociedade, afetando
sua credibilidade, é mui razoável submeter a agressão à polícia do tribunal,
ainda mais que, durante meses, o Ministério Público Federal nada fez para
enfrentar os ataques.
Diga-se
de passagem que referências desairosas a ministros do STF são corriqueiras na
rede interna do Ministério Público Federal.
Quando
corregedor-geral, tive que chamar atenção de procuradores sobre o dever de
decoro no trato dentro do espaço virtual. As reações de muitos colegas foram
histriônicas, sempre batendo na tecla da liberdade de expressão, como se essa
permitisse a simples falta de educação, a grosseria e os assaques desmedidos
contra magistrados ou quaisquer pessoas.
A
ausência de atitude mais forte dos órgãos internos do Ministério Público, sem
dúvida, contribuiu para o ambiente de ataques à corte e a seus ministros.
Não
há, assim, à primeira vista, irregularidade flagrante na iniciativa do
presidente do STF e na atuação do ministro Alexandre de Moraes, ao dar curso ao
inquérito sobre as agressões ao tribunal.
É
possível discutir, em tese, que a colaboração com o Ministério Público Federal
poderia resguardar melhor a imparcialidade do STF, mas nada impede que, uma vez
aberta vista do inquérito ao órgão acusador, esse passe a assumir o impulso
investigativo em articulação com a autoridade policial.
O
que não é certo, com todo o respeito que possa merecer a Doutora Raquel Dodge,
é a Procuradora-Geral da República “determinar” o arquivamento liminar da
investigação por vício de iniciativa, eis que o Ministério Público não tem esse
poder, devendo, quando for o caso, requerer o arquivamento do inquérito,
situação em que o pedido será submetido ao crivo jurisdicional.
Muito
menos poderia determinar o arquivamento sem ao menos ter se inteirado do
conteúdo da investigação, como se adotasse uma postura de “não sei, não quero
saber e tenho raiva de quem sabe”, ofendida porque lhe escapou a iniciativa.
Espera-se mais comedimento e atitude republicana na relação entre o acusador e
a jurisdição penal.
Quanto
à “censura” do sítio O Antagonista e da revista Crusoé, agora já revogada pelo
próprio Ministro Alexandre de Moraes, a ação foi inteiramente justificada,
apesar de todo o barulho que se fez.
Em
primeiro lugar, a vedação da publicação não foi prévia, mas posterior a sua
disseminação na rede mundial de computadores, uma vez constatado que divulgava
conteúdo sob sigilo judicial.
Em
segundo lugar, a liberdade de expressão não é direito absoluto. Não pode, ela,
servir de valhacouto de detratores dos valores essenciais à democracia – como a
tolerância, a igualdade, a justiça – ou de abrigo ao discurso de ódio.
Nem
se pode querer, com o abuso de direitos comunicativos, colocar em descrédito,
sem apego aos fatos, as instituições do Estado de Direito.
O
mínimo a se exigir daqueles que se escoram nas garantias constitucionais é que
demonstrem e pratiquem a lealdade à Constituição que invocam em sua defesa.
Não
é por outro motivo que, ao longo da história, se tem criminalizado o abuso de
comunicação.
Exemplo
disso está na condenação à morte, pelo Tribunal Militar Internacional
(conhecido, também, por Tribunal de Nuremberg), do editor Julius Streicher,
que, de 1923 a 1945, era responsável pelo jornal nazista “Der Stürmer”,
instrumento de instigação à violência contra minorias, como judeus, ciganos ou
homoafetivos.
Mais
recentemente, o Tribunal Internacional para Ruanda, cuidou do caso da “Radio
Mille Colines”, que propagou o ataque contra os Tutsis, no massacre que vitimou
mais de 800 mil ruandenses, entre Tutsis e Hutus moderados.
Ambos
os casos são paradigmáticos para o repúdio ao discurso de ódio e de instigação
a grave ameaça à ordem pública, que não podem se escorar na liberdade de
expressão para contar com a permissividade estatal.
Nessa
linha, o art. 19 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, do qual
o Brasil é parte, ao afirmar os direitos comunicativos, deixa claro, em seu
segundo parágrafo, que o direito de liberdade de expressão “implica deveres e
responsabilidades” e pode, por isso, ser “sujeito a certas restrições que sejam
previstas em lei e necessárias” para resguardar “o direito e a reputação de
outros”, bem como atender à proteção “da segurança nacional, da ordem pública,
da saúde pública ou da moral e dos bons costumes”.
O
sítio eletrônico O Antagonista, bem como a revista Crusoé, pertencentes ao
mesmo grupo, são notórios detratores da reputação alheia.
Não
informam, mas atacam e estimulam o ódio político contra os que elegem como
desafetos. A linguagem ácida, agressiva e, até, ofensiva é parte de seu
estratagema de desgastar politicamente atores públicos e disseminar sua
rejeição social.
A
matéria em questão, que teria sido “censurada”, se utilizou de informação
obtida clandestinamente dos que manusearam investigações e delações premiadas
no contexto da “Operação Lava-Jato” e que se encontrava sob sigilo judicial,
para plantar ilações maliciosas contra o presidente do STF e, com isso,
desacreditar o próprio tribunal aos olhos da “opinião pública”.
Esse
covarde ataque tem por pano de fundo a atitude da corte em relação a abusos de
alguns membros da força-tarefa da “Lava-Jato”, suspendendo-lhes, a pedido da
Procuradora-Geral da República, acordo com a Petrobrás que lhes permitiria
criar bilionária fundação como seu instrumento político.
O
ministro Dias Toffoli, ademais, tem, juntamente com outros magistrados do STF,
promovido tímidas iniciativas com o intuito de resguardar as garantias
fundamentais no processo penal, obviamente desagradando a ala punitivista do
Ministério Público Federal.
Não
há como separar os ataques que tem sofrido, o presidente do STF, dessas
peculiares circunstâncias, indicando a existência de um plano, de um
estratagema de intimidar, de exercer pressão sobre o exercício da jurisdição do
STF.
A
matéria em questão é indubitavelmente parte dessa maquinação e vedar sua
disseminação é legítimo meio de defender a integridade do Estado de Direito e
de suas instituições.
Não
há dúvida de que a Constituição democrática de 1988 está sob ataque.
O
STF, infelizmente, parece ter demorado para se aperceber disso e titubeou ao
revogar a proibição de publicação.
É
esse ataque que colocou sob fogo cerrado de grupos extremados o próprio
tribunal e a reação, mesmo retrocedida, foi adequada para prevenir o descrédito
institucional e o colapso da função do guardião das liberdades civis e dos
direitos e das garantias fundamentais.
Os
que prezam a democracia e o Estado de Direito, neste momento, devem cerrar
fileiras com o STF e não submetê-lo a maior desgaste, porque isso só viria a
favorecer os que hoje querem passar por cima do consenso por liberdade, justiça
e paz que se construiu com a derrocada da ditadura militar.
O
Antagonista e Crusoé mostraram de que lado estão nesse confronto – e
definitivamente não parece ser do lado da democracia.
* Eugênio Aragão é ex-ministro
da Justiça, subprocurador -geral da República aposentado, professor da
faculdade de direito da UnB e advogado do escritório Aragão e Ferraro
Advogados.
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