Ao
que tudo indica, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acaba de lavrar um
novo capítulo no histórico das ações da responsabilidade civil contra os
fabricantes de cigarro no Brasil — histórico que não tem sido nada favorável às
vítimas e aos seus sucessores. Em acórdão de dezembro (Apelação Cível
70059502898; CNJ 0142852-52.2014.8.21.7000), recentemente divulgado, a 9ª
Câmara Cível daquele tribunal condenou a Souza Cruz a indenizar a viúva de um
fumante em valores que serão definidos em liquidação de sentença. A decisão
contraria a jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, fundada
especialmente no não reconhecimento do nexo causal entre o tabagismo e a causa
da doença do fumante, no seu livre-arbítrio (ou culpa exclusiva da vítima) e
também no não reconhecimento de que os produtos derivados do tabaco sejam
defeituosos à luz do Código de Defesa do Consumidor.
Neste
caso, o principal fator confrontante da jurisprudência do STJ diz respeito ao
nexo causal. Contrariamente ao que sucede na maioria das ações, a certidão de
óbito apontou literalmente como causa da morte “insuficiência ventilatória.
Doença pulmonar obstrutiva crônica. Tabagismo”. Além disso, ainda em vida, a
vítima promoveu uma produção antecipada de prova, na qual o perito afirmou que
ela padecia de doença broncopulmonar obstrutiva crônica (DPOC). O acórdão levou
em consideração um estudo referido pelo perito, afirmando que apenas 12,5% dos
casos a DPOC não tinha como causa o tabagismo. A contrário senso, em 87,5% das
incidências, o doente era tabagista. Essa estatística deu base ao acolhimento
de “um juízo de séria probabilidade” do nexo causal, suficiente para “convencer
o juiz, dentro do princípio da persuasão racional”. Proporcionalmente àquela
probabilidade, o fabricante foi condenado a indenizar o dano em 85% do que
teria que pagar caso a demonstração etiológica fosse de certeza.
Outro
ponto inovador do acórdão foi a aplicação da teoria da cota de mercado (market
share liability) para moderar a indenização, haja vista que não há prova
relativa às marcas de cigarros que a vítima fumava. O fator moderador será a
participação que a Souza Cruz detinha no mercado durante os anos em que a
vítima fumou (a ser apurada na liquidação da sentença).
Quanto
ao livre-arbítrio, o acórdão utiliza dados estatísticos que afirmam que 90% dos
jovens começam a fumar na adolescência e que no Brasil a idade média de
iniciação é 13,3 anos, idade em que ainda não se pode falar de livre-arbítrio.
Com
efeito, a indústria do tabaco trabalha com a imaturidade emocional dos jovens
adolescentes, incitando-os à transgressão, fomentando a ideia da experimentação
inconsequente. “Certo ou errado, só vou saber depois que eu fiz. Eu não vou
passar pela vida sem um arranhão”, dizia na TV um personagem de uma das últimas
campanhas de cigarros antes da proibição da publicidade. A indústria do tabaco
pesca com malha fina, sabe que precisa fisgar o seu peixe ainda jovem.
Dificilmente alguém começa a fumar depois de adulto; em compensação, quando a
experimentação ocorre nos primeiros anos da juventude, a nicotina faz o seu
trabalho e surge a dependência. A partir daí a compulsão é maior do que o
querer: ainda que a vontade seja deixar de fumar, o livre-arbítrio está
comprometido, o organismo reclama a substância que o mantém cativo.
Finalmente,
o acórdão contesta o argumento recorrente de que o cigarro não é um produto
defeituoso ou de periculosidade inerente, o que é pressuposto para o
reconhecimento da responsabilidade civil do fornecedor por fato do produto. Não
se alinham na expectativa do fumante como resultado direto da fruição do
produto, afirma o julgado, efeitos deletérios como a contração de doenças
graves, a impotência ou o envelhecimento precoce. Ademais, produtos com
diversidade de riscos inerentes à sua natureza (como facas, remédios ou mesmo
venenos e explosivos) são socialmente úteis, ao contrário do tabaco, que apenas
produz malefícios.
Procurando
demonstrar que sua decisão não é mera posição pessoal, o relator, desembargador
Eugênio Facchini Neto, faz uma extensa exposição mostrando o histórico das
descobertas científicas a respeito da nocividade do tabaco, o desvelamento de
documentos internos sigilosos dos fabricantes de cigarros nos Estados Unidos
comprovando que eles tinham conhecimento (e em alguns casos até patrocinaram
esses estudos) dessas descobertas, embora as tenham ocultado do público, e
finalmente relatando a mudança de maré na jurisprudência estrangeira,
especialmente a norte-americana, que da rejeição inicial às demandas
indenizatórias ajuizadas nas décadas de 1950 e 1960 passou a homologar acordos
milionários a partir dos anos 1990, especialmente em ações movidas por estados-membros
e pela União como forma de ressarcimento de gastos com tratamentos de saúde de
fumantes.
É
lembrado que também no Brasil o orçamento público arca com grave déficit na
relação da arrecadação tributária frente às despesas com os tratamentos de saúde
dos fumantes. Segundo os dados mais recentes apurados pelo Instituto Nacional
do Câncer, o custo do tratamento das doenças geradas pelo tabagismo é de R$
39,4 bilhões, enquanto que os impostos pagos pela indústria do tabaco somam
apenas R$ 13 bilhões, equivalentes a 23% das perdas geradas pelo tabagismo ao
país. Se forem computados os custos indiretos decorrentes de morte prematura
(R$ 9,9 bilhões) e redução ou perda da capacidade laboral dos fumantes (R$ 7,5
bilhões), os prejuízos chegam a R$ 56,8 bilhões por ano. Ou seja: os impostos
pagos pela indústria (R$ 13 bilhões por ano) financiam apenas 23%,
aproximadamente, dos malefícios causados pelo tabaco.
A
decisão também alude à Convenção Quadro para o Controle do Tabaco, à qual o
Brasil aderiu, e que traça diretrizes para a política antitabagismo aos países
participantes (mais de 130). Na sua decisão sobre os aditivos de sabor ao
cigarro (ADI 4.874-DF, julgada em 2018), o STF reconheceu a função da CQCT como
“standard de razoabilidade” na interpretação do Direito interno.
Duas
afirmações podem ser feitas em relação ao julgado do Tribunal de Justiça
gaúcho: trata-se de uma decisão inovadora nos argumentos e solidamente
fundamentada. Terá força para alterar a jurisprudência do STJ? É o que se vai
saber.
Adalberto Pasqualotto é
professor titular de Direito do Consumidor na PUCRS e ex-presidente do
Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-mar-13/garantias-consumo-capitulo-responsabilidade-civil-fabricantes-cigarros
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