O
ator José de Abreu se autoproclamou Presidente do Brasil e deu origem a uma
devastadora crítica pública acerca do funcionamento das instituições na América
do Sul. Feriu de morte qualquer tipo de discussão séria sobre a legitimidade
das pretensões presidenciais do Deputado venezuelano Juan Guaidó. E está
ensinando às gerações que não viveram os horrores do Golpe de 1964 a força
política da resistência baseada na Constituição.
A
hipocrisia, as mentiras e as ameaças da extrema direita não resistem à
sensibilidade artística de quem compreende a força da realidade sentida e das
palavras no imaginário coletivo. José de Abreu não é só um ator fazendo o papel
de Presidente da República. Converteu-se em mais um relevante símbolo da
desobediência civil no Estado Democrático de Direito, a exemplo da Vigília Lula
Livre, do samba-enredo da Mangueira ou do comparecimento da Deputada Gleisi
Hoffmann à posse de Nicolás Maduro.
A
desobediência civil é um instrumento de combate às iniquidades e abusos dos
governantes. Tomou como base a velha tradição do direito de resistência, que remonta
à Antiguidade, deixa suas marcas no tiranicídio medieval e respalda as
sublevações revolucionárias da era moderna. Projeta-se no século XX como
"desobediência à lei ou medida governamental que não atenda aos princípios
de justiça ou de moralidade estabelecidos publicamente pela comunidade"
(André Leonardo Santos e Doglas Cesar Lucas).
No
Estado Democrático de Direito, a desobediência civil pode ser desencadeada por
um indivíduo, por grupos minoritários maiores ou menores ou mesmo pela
sociedade como um todo. Nenhum ditador de plantão pode negar a natureza
democrática da desobediência civil. Seu ponto de partida é a defesa da ordem
constitucional em conjunto ou dos três pilares que sustentam o Estado
Democrático de Direito: a limitação do poder político pela Constituição, a
proteção dos direitos fundamentais e a preservação diuturna do meio ambiente.
A
autoproclamação de José de Abreu é um grito de amor à democracia, de respeito
às pessoas como elas são e de intransigência contra a maldade daqueles que
atacam o Brasil. O importante ato de desobediência civil a que ela deu forma
avança na defesa sem medo dos "valores supremos de uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias"
(trecho do Preâmbulo da Constituição de 1988).
Paradoxalmente,
o Presidente autoproclamado é o símbolo daquilo que significa o sistema
democrático. Sem ter sido eleito, tornou-se uma referência importante para
milhões de pessoas que se identificam com o seu programa de governo divulgado a
conta-gotas pelo twitter e com o discurso de enfrentamento contra a
intolerância. A autoproclamação ultrapassou o próprio José de Abreu e se
converteu em instrumento de defesa de qualquer pessoa contra a tirania e os
absurdos no exercício do poder. Assim são os símbolos políticos.
A
Constituição de um país também depende da desobediência civil para um adequado
funcionamento das instituições. Na democracia contemporânea, a própria
sociedade precisa fiscalizar e pressionar os governantes através da
manifestação dos seus variados pontos de vista sobre a conjuntura política. Por
isso, a liberdade de expressão em seu sentido mais amplo é uma das bases de um
regime político centrado na democracia e na dignidade da pessoa humana. Através
dela, pretende-se estabelecer padrões razoáveis de participação política e
fortalecer a "democracia governante" de que nos fala Georges Burdeau,
na qual o povo supera o momento eleitoral e também tem protagonismo durante o
exercício do poder.
Cada
passeata, cada postagem nas redes sociais, cada e-mail enviado aos
representantes políticos, cada peça encenada, livro escrito, música cantada,
enfim, cada manifestação contrária a leis ou a atos injustos fortalecem a
Constituição, limitam o exercício do poder e renovam a energia da vida democrática.
Nesse sentido, a desobediência civil é um ato de defesa da Constituição.
José
de Abreu autoproclamado já venceu a guerra semiótica contra o fascismo.
Impulsionou o ideal democrático revigorado com a aparição do ex-Presidente Lula
no velório do neto Artur, lembrando à sociedade brasileira o que representa a
sua prisão ilegal: o sequestro da Constituição e da alma do país. Recordou a
inevitável presença de Marielle Franco e sua tragédia pessoal e política em
todos os rincões do Brasil. José de Abreu autoproclamado é um contraponto às
medidas antissistema do governo Bolsonaro do qual podem se apropriar todos
aqueles que acreditam na vida com liberdade dentro dos marcos jurídicos e
políticos do regime democrático.
Um
ator pode incendiar as mentes de uma sociedade porque a emancipação humana é um
dos propósitos de qualquer manifestação artística. A autoproclamação
presidencial de José de Abreu, portanto, é um protesto pacífico cujo propósito
é lembrar ao poder que a democracia possui normas e valores que não podem ser
superados pelo discurso de ódio e pela violência que dele decorre.
Agassiz Almeida Filho é
articulista do Brasil 247, professor de Direito Constitucional, autor dos
livros Fundamentos do Direito Constitucional (2007), Introdução ao Direito Constitucional
(2008) e Formação e Estrutura do Direito Constitucional (2011)
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