Na
última segunda-feira (4/2), o ministro da Justiça, Sergio Moro, apresentou um
pacote de sugestões legislativas intitulado Projeto de Lei Anticrime. Recebo o
projeto com prudência, certa dose de ceticismo, e muitas perguntas, como deve
ser. Razão simples: a segurança pública deve ser tratada com a seriedade e a
responsabilidade política que exige e merece.
Minha
prudência e meu ceticismo deixam-me em alerta já no título do Projeto.
“Anticrime”. Pergunto: alguém, afinal, é a favor do crime? Que projeto
legislativo não é “anticrime”? Mas, enfim, eis o nome da coisa.
Perplexidades
à parte, o que quero dizer é o seguinte: não nos enganemos, não nos apaixonemos
pelos próprios slogans. É fácil ser contra aquilo que todo mundo é contra.
Somos contra o crime! Somos contra a corrupção!Quem não é? Abstrações exigem
explicações, sob pena de não dizerem nada. Ou de dizerem tudo sem dizer
diretamente o que dizem, o que é ainda pior.
Seja
como for, sigamos. Antes o problema todo fosse só o nome da coisa. O que destaco,
de início, é a questão da prisão já em segunda instância: o projeto, ao que me
parece, obriga o cumprimento de pena de prisão imediatamente após condenação em
segunda instância. Em sua entrevista coletiva, Moro fez, por diversas vezes,
menção ao entendimento atual do STF com relação à presunção de inocência. Mas
vejam a proposta de redação “anticrime”:
“Ao
proferir acórdão condenatório, o tribunal determinará a execução provisória das
penas privativas de liberdade, restritivas de direitos ou pecuniárias, sem
prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos”.
Essa
é a tese de dois ministros do Supremo: a tese da prisão automática, segundo a
qual o acórdão em segundo grau já é a própria ordem escrita e fundamentada que
determina a prisão do réu. Trata-se daquilo que consta na inconstitucional
Súmula 122 do TRF-4: "Encerrada a jurisdição criminal de segundo grau,
deve ter início a execução da pena imposta ao réu, independentemente da
eventual interposição de recurso especial ou extraordinário".
O
Pacote Moro endossa a tese da prisão automática e obrigatória, que (i) me
parece muito claramente inconstitucional, e (ii) não traduz “o entendimento
atual”, mas, sim, a leitura de dois ministros. O ministro pode sustentar o que
bem entender, mas isso deve ser dito, e deve ser dito às claras.
Dito
isso, um passo atrás. Muito já foi dito e escrito sobre a execução provisória
da pena. Só eu, apenas eu, falei sobre isso aqui, aqui, aqui, e também aqui.
Não fui o único. Há ainda um livro já meio antigo, meio surrado, meio
esquecido, que já definiu a questão já há três décadas. Chama-se, não sei se
vocês lembram, Constituição Federal. O livrinho diz que "ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".
Como bem diz o ministro Marco Aurélio, ao criticar a proposta de Moro, “é
preferível antes cem culpados soltos do que um inocente preso”. E mais não
precisa dizer sobre isso.
Sou
um democrata. É legítimo que se pense, que se discuta, que prender antes do trânsito
em julgado é moralmente bom, politicamente adequado, o que for; mas quem se
dispõe a participar do jogo de linguagem que é o Direito não pode perder de
vista que parte das regras constitutivas do jogo é a Constituição. E não
devemos esquecer que a presunção da inocência é uma questão constitucional e
não uma “questão de lei ordinária”.
Falando
em Constituição, e voltando ao Projeto “anticrime”, há também a questão de
previsão de cumprimento inicial em regime fechado a depender do crime. Ora, o
Supremo já decidiu pela inconstitucionalidade da fixação de regime inicial em
abstrato. Se Moro diz pretender concordar com o entendimento atual do Supremo,
e é o que ele diz com relação à execução antecipada — embora, como disse, seu
Projeto pareça concordar apenas com dois ministros —, por que não concordar
também nesse ponto? Inquietações que ficam.
Questionado
sobre a (in)constitucionalidade, é verdade, Moro disse que sua proposta de
redação inclui exceções. Certo. Mas o que as exceções têm a ver com a
constitucionalidade ou não de fixação de regime inicial em abstrato? Haja uma,
duas, vinte, mil exceções, a fixação de antemão será em abstrato de qualquer
forma. A fixação a priori é sempre em abstrato, porque também a fixação das
exceções são em abstrato. Esse é o ponto.
Não
há respostas antes das perguntas. E, nesse sentido, as perguntas com relação ao
Projeto são muitas.
De
modo que, como vocês já bem sabem, questiono o plea bargain. Falei sobre isso
aqui e aqui. Resumo meu ponto em uma pergunta, que deixo ao ministro e ao
leitor: qual é o tipo de negociação que se pode esperar entre as partes quando
se aceita que uma delas não seja isenta? Afinal, parece ser esse o entendimento
atual quanto à atuação do Ministério Público: órgão com garantias de
magistratura e discricionariedade para atuar como parte. Garantias de quem deve
agir por princípio, autorização para agir estrategicamente. Algo não me parece
correto nessa equação.
“Ah,
mas nos EUA é assim!”. Mais perguntas: (i) E daí? (ii) Ainda que isso
signifique alguma coisa, como tem sido por lá? Será que não é algo questionado
no próprio país? Felizmente, tenho uma resposta a essa pergunta: há
questionamentos, e vários. É só ver, por exemplo, aqui.
Uma
considerável dose de populismo, violação à presunção de inocência, importação
apressada de um instituto. Há mais problemas? Lamento, mas sim, há ainda mais
problemas. Gravíssimos. Vejam as propostas de alteração a dois artigos do
Código Penal:
“Art.
23-§ 2º O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o
excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.
Art.
25 – parágrafo único: Observados os requisitos do caput, considera-se em
legítima defesa:
I
- o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco
iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu
ou de outrem; e
II
- o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de
agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.”
Moro
frisou muito em entrevista o aspecto de tratar-se de “situação de conflito
armado”, dizendo que a ideia é evitar que o policial tenha de esperar o
criminoso atirar primeiro. O, bem, curioso é que essa é somente a situação da
legítima defesa; e o resto? Para além da hipótese, que dizer da abertura
interpretativa do dispositivo? Caberá o “mundo” nesses conceitos ônibus.
“Iminente
conflito armado”? Até onde vamos antecipar a legítima defesa?
A
violência policial é um problema grave no Brasil. Não sou só eu quem digo.
Também o diz a ONU, a Anistia Internacional, a Human Rights Watch, e por aí
vai. E digo mais: é o que pode atestar qualquer um que ouça a voz da
consciência e saiba olhar para o lado. Pergunto: é realmente razoável dizer que
a polícia no Brasil mata pouco ou que não é violenta? O que me leva à segunda
pergunta: uma polícia que mais mata no mundo deve ter abrandada a forma de
controle de seus atos em enfrentamentos ou ações?
Vocês
conseguem imaginar um cenário no qual se pode deixar de aplicar pena prevista
em caso de excesso de agente público? Outra coisa: procurei e não encontrei
alguma coisa similar à colocação do medo como elemento que justifica reagir ou
matar. Quer dizer que, se o policial disser “atirei, ou dei uns tiros a mais,
porque tive medo”, justifica?
Em
síntese, estaremos dando um passo atrás e violando vários incisos do artigo 5º
da CF com as previsões legais do pacote-projeto que fragilizam-diminuem o
controle sobre as ações policiais.
Por
tudo isso o pacote é temerário. Bem examinado e perscrutando o imaginário
punitivista que cresce dia a dia (inclusive no seio da comunidade jurídica que
não estudou direito — na verdade, odeia o Direito), é possível ler nas
estrelinhas a vazia tese da queixa de que “direitos humanos só favorecem
bandidos!” (ainda anteontem ouvi um membro do MP dizer isso na televisão, em
alto e bom som) ou “direitos humanos só para humanos direitos!”. Ora, qualquer
análise minimamente responsável e racional da situação brasileira vai perceber
que esse jargão é vazio de sentido. Insustentável na realidade.
H.
L. Mencken já dizia que, para todo problema complexo, há uma solução simples.
Simples, elegante, plausível... e errada.
Há
um problema na segurança pública? Vamos matar os bandidos. Fosse assim, as
Filipinas seriam o paraíso. Dráuzio Varela chama de “aprendizes de feiticeiros”
aos que pensam que aumentar penas e encarcerar mais é um bom remédio (ler
aqui). Sérgio Moro deveria falar com Dráuzio, que trabalhou no Carandiru.
Auberon
Waugh dizia que matar as pessoas é uma solução que, infelizmente, não leva em
conta um pequeno probleminha na origem: matar as pessoas é errado. Ah, Waugh
era um conservador. Filho de Evelyn Waugh, o conservador. Cito um conservador
para não precisar citar garantistas, que são mal vistos e tidos como
bandidólatras.
Para
além, e ainda antes, de todo seu problema moral, a proposta legislativa é um
atentado direto a toda principiologia constitucional que sustenta nosso
Direito. Você acha bom e desejável aumentar penas e reforçar modos de
justificar ações policiais e, ao mesmo tempo, enfraquecer as garantias
processuais? Repito, pense o que quiser. Mas não esqueça de Mencken: problemas
complexos não se solucionam com respostas fáceis.
Ora,
quem conhece o Tribunal do Júri sabe muito bem que quem julga por íntima
convicção não pode mandar alguém diretamente para a prisão. Um “sim” ou um
“não” sem fundamento termina com a matéria de fato? Problema complexo, resposta
simples e... errada.
Mais:
gravações ambientais que o pacote prevê disfarçam gravações de conversas entre
advogados e clientes. Além de outros problemas. É o panóptico benthamiano
denunciado por Foucault.
Mais
ainda, incluir na definição de crime o nome de quadrilhas ou facções é outro
problema grave. Inovamos: conferimos, de graça, estatuto jurídico às facções.
De bandeja. Genial, não? Estado e crime, agora de igual para igual.
Adversários. Num tipo jurídico vai constar, para a história de Pindorama, o
nome do PCC, milícias etc. O que dirão os alunos de Direito daqui a 50 anos?
Problema complexo, solução sem técnica nenhuma.
Outro
ponto: O flagrante preparado, travestido de “introdução de agente encoberto”
viola clara posição do STF.
A
professora Eloisa Machado de Almeida lembra, bem, a propósito, que “o STF já
afastou o controle judicial prévio de negociações das colaborações premiadas;
impediu que tribunais e juízes de primeiro grau desmembrassem processos de réus
com foro especial; negou a execução provisória de pena restritiva de direitos e
delimitou temporalmente a interceptação telefônica ao estrito período de
autorização judicial. Todos indicam, a priori, posições contrárias às defendida
por Moro”. Eis aí um enfrentamento.
Repito,
pense o que quiser. Mas não esqueça que o Direito chega antes. Há muito mais
problemas do pacote Moro. Disso tratarei em outra coluna ou artigo avulso aqui
na Casa.
Por
fim, lembro que, no século XVIII, a Inglaterra transformou o crime de punga em
delito de morte. Prenderam os quatro primeiros batedores de carteira e fizeram
um enforcamento público, para dar exemplo à malta criminosa. Na hora do
enforcamento, a cidade parou. Todos foram ver o espetáculo. Pois não é que esse
dia foi marcado como o dia em que mais se bateu carteiras na cidade?
Em
artigo que aqui escrevemos, Jorge Bheron Rocha e eu, lembramos, a propósito da
sanha punitivista, dos espíritos de Heinrich Kraemer e James Sprenger que podem
estar rondando o Planalto e o Parlamento. Os monges alemães, autores do Malleus
Malleficarum (O Martelo das Feiticeiras) podem, “doutrinariamente”, fundamentar
esse Pacote, e instituir mais coisas ainda, como - estou sendo irônico - multar
o advogado que alegar a inocência do réu com muita veemência, ou ingressar com
mais de um habeas corpus. Ou estabelecer que juízes e membros do MP podem vetar
alguns nomes de advogados que não sejam interessantes para o bom andamento da
Justiça. Ou dobrar a pena do réu que, alegando-se inocente e tendo a chance de
fazer plea bargaining, acaba condenado. A ousadia lhe custaria uma pena em
dobro. Bata-se-lhe com o martelo, pois.
Se
o Brasil pensa que vai combater a violência – que é estrutural – com mais
violência, estará enterrando o Direito e assinando o atestado de fracasso.
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