O
estardalhaço continua grande, mas a escandalosa fragilidade das provas
confirma-se como o traço principal das sentenças da Lava Jato contra Lula.
Em
janeiro de 2018, quando se verificou que era impossível condenar Lula pela
posse de um apartamento no Guarujá, pois toda documentação disponível dizia o
contrário, Sérgio Moro assinou uma sentença na qual condenava um ex-presidente
da República a 9 anos e meio por "ofício indeterminado" Em bom
português: havia o culpado mas faltava o crime. (Ao passar pelo TRF-4, a pena
original foi ampliada para 12 anos e 4 meses).
Divulgada
ontem, a sentença da juíza Gabriela Hardt que condena Lula a 12 anos e 11 meses
de prisão, padece de uma dificuldade da mesma natureza. Não consegue sustentar
com provas aquilo que anuncia com suspeitas.
Não
há dúvida de que grandes empreiteiras patrocinaram reformas num sítio de
propriedade de Fernando Bittar, filho do sindicalista Jacó Bittar, há anos
frequentado por Lula, familiares e amigos.
Em
suas 360 páginas, contudo, Gabriela Hardt não consegue apontar qualquer conexão
entre os benefícios realizados no local e contratos favorecidos na Petrobras,
alvo necessário em toda decisão da Operação Lava Jato e em qualquer condenação
por corrupção passiva, base da sentença.
Preparando
o leitor para o que não vai encontrar, a juíza escreve, já na página 18, quando
trata dos contratos com a OAS e os investimentos no sítio: "Não há prova
de que os recursos obtidos pela OAS foram especificamente utilizados para
pagamento ao presidente". Na página 20, ela prossegue no mesmo argumento,
agora em tom genérico: "Se os elementos probatórios citados são
suficientes ou não para a vinculação das reformas do Sítio a acertos de
corrupção em contratos da Petrobras, ainda é uma questão a analisar na ação penal
após o fim da instrução e das alegações finais".
"Isso
pode parecer um detalhe bizantino mas se o caso não tem relação com a
Petrobras, todo o processo deve ser anulado, " escreve o repórter Mário
Cesar Carvalho (Folha, 7/2/2019), com longa cobertura na Lava Jato. "O
Supremo já decidiu que Curitiba só deve julgar casos relacionados a corrupção
na estatal petroleira".
É
difícil negar que, apesar de todos os esforços para que fosse incriminado, a
ausência de provas coloca o debate o respeito a presunção da inocência,
clausula da Constituição.
Em
sua essência os fatos descritos na sentença de Gabriela Hardt reproduzem uma
cena ocorrida no Palácio da Alvorada, em 2002, quando Fernando Henrique Cardoso
despediu-se da Presidência da República num jantar para grandes empresários. De
olho nos investimentos necessários para montar o Instituto FHC, amigos do
presidente foram convidados a abrir o bolso para dar suas contribuições
milionárias a um presidente que iria retornar à vida civil.
Acabaram
entregando R$ 7 milhões, uma pequena fortuna no país de duas décadas atrás,
muito maior que os pedalinhos, cozinhas de luxo, uma lancha a motor e outros
benefícios instalados em Atibaia.
Conforme
as contas de Gabriela Hardt, as agora chamadas "vantagens indevidas"
deixadas pela empreiteira no sítio somaram R$ 1,02 milhão. Em termos nominais,
é um valor equivalente a um sétimo daquilo que FHC recebeu no fim do governo.
Descontada a inflação, a diferença se perde de vista.
Em
2002, procurado pelo repórter Gerson Camarotti, da revista Época, o procurador
da República Rodrigo Janot tratou o caso de Fernando Henrique com naturalidade:
"Fernando Henrique está tratando de seu futuro e não de seu presente. O
problema seria se tivesse chamado empresários para pedir doações de favores e
benefícios concedidos pelo atual governo". Não havia motivo para grandes
curiosidades.
Numa
defesa generosa do princípio da presunção da inocência, Janot sequer cogitou
que se investigasse possíveis conexões condenáveis entre os amigos do jantar e seus
interesses no governo, embora não faltassem ligações entre um universo e outro.
Ali estava Benjamin Steinbruch, que nas privatizações chegou a ser dono da CSN
e da Vale ao mesmo tempo. Outro presente eram executivos da Camargo Correa, com
obras na Petrobrás e investimentos no gasoduto Brasil-Bolívia. Também
participaram da privatização da Via Dutra. Interlocutor recente de Lula, Emílio
Odebrecht também estava no jantar de FHC, com quem chegou a discutir um projeto
de reforma do capitalismo brasileiro. Mesmo assim, em 2002 FHC nunca precisou
demonstrar que não tinha culpa de nada.
Lula
e seus familiares enfrentaram uma investigação implacável, cujos detalhes não
preciso recordar aqui. Capaz de fazer um interrogatório que chamou a atenção
pela agressividade -- Gabriela Hardt chegou a se dirigir a Lula em tom de
ameaça -- o resultado está lá, para quem quiser ler.
Numa
demonstração de que o debate sobre a isenção está colocado e deve ser
enfrentado, Gabriela Hardt deixou algumas frases preventivas.
Na
própria sentença acusou Lula de "apelar para a fantasia da perseguição
política" e também escreveu que "prefere ele refugiar-se na condição
de vítima imaginária de perseguição política".
Basta
comparar o desfecho de dois casos tão semelhantes para entender o significado
da palavra "perseguição".
Alguma
dúvida?
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