Muito
embora seja de lamentar profundamente, em que pese todos os avanços verificados
no que diz com os níveis normativos da proteção ambiental no plano do Direito
Internacional e interno dos Estados, assim como com um expressivo conjunto de
outras medidas, veiculadas por políticas públicas, ações dos órgãos públicos e
da ação da sociedade civil e mesmo decisões judiciais, a efetividade da
proteção do meio ambiente segue sendo de baixa intensidade e exposta
diuturnamente a poderosos ataques.
Nesse
contexto, levar a sério os deveres de proteção estatal em matéria ambiental e
os respectivos instrumentos disponibilizados para tal efeito é imperioso e
carece de constante monitoramento. Dentre tais instrumentos, o instituto da
assim chamada proibição de retrocesso ecológico (ou ambiental, se assim
preferido) tem sido não apenas objeto de desenvolvimento doutrinário, mas
também legislativo e mesmo jurisdicional, o que se dá também no caso
brasileiro.
Questão
(e problema) de central importância, relacionada ao funcionamento do instituto,
é a possibilidade de se controlar e sindicar, a partir dele, as ações e
omissões do poder público em todas as suas dimensões, de modo a impedir e ou
sancionar aquelas que resultam em efetiva e mesmo potencial violação dos níveis
indispensáveis (e normativamente exigidos) de proteção do ambiente.
Embora
a vinculação, em princípio isenta de lacunas, do poder público seja em geral
aceita pela doutrina e jurisprudência — no caso brasileiro já existem decisões
dos tribunais superiores nesse sentido —, muitas perguntas seguem em aberto ou,
pelo menos, ainda estão longe de uma solução minimamente sedimentada e
satisfatória.
Uma
das principais questões a serem enfrentadas — objeto precípuo da presente
coluna — é a da vinculação do Poder Executivo em seara particularmente
sensível, complexa e controversa, posto que diretamente relacionada com os
assim chamados atos de natureza eminentemente política e discricionária, tidos,
em regra e majoritariamente, como imunes ao controle por parte de outros atores
estatais, em particular do Poder Judiciário.
O
tema ganha atualidade e relevância no atual cenário político-ambiental
brasileiro com as mudanças adotadas recentemente pelo presidente Jair Bolsonaro
na estrutura administrativa-ambiental no âmbito federal. A extinção do
Ministério do Meio Ambiente (MMA), por meio da sua incorporação ao Ministério
da Agricultura, foi anunciada pelo presidente durante a sua campanha eleitoral
em 2018, tendo o mesmo aparentemente desistido de concretizá-la após fortes
críticas e oposição de entidades ambientalistas e diversos setores da
sociedade, bem como de entidades ligadas ao próprio agronegócio[1].
Todavia,
apesar do recuo no que diz com a extinção do MMA, isso não impediu que fosse
impactada e em princípio mesmo significativamente fragilizada a estrutura
administrativa-ambiental federal para efeitos de sua atuação com efetividade na
proteção e promoção do meio ambiente. Isso se deu, como já sabido, mediante a
reestruturação das atribuições dos ministérios levada a efeito por meio da
Medida Provisória 870, de 1º de janeiro de 2019. Com isso, o que se deu na
prática e de forma menos perceptível ao público em geral foi a consecução de
uma das promessas da campanha presidencial do atual presidente da República, embora
sem o ônus político e a força simbólica negativa que adviria da extinção do
MMA, sobretudo perante a comunidade internacional.
Entre
os pontos mais polêmicos da reforma ministerial, relativamente ao MMA, podemos
destacar os seguintes: 1) a transferência do Serviço Florestal Brasileiro (SFB)
e do Cadastro Ambiental Rural (CAR) para o Ministério da Agricultura; 2) a
transferência da política de recursos hídricos, incluindo a Agência Nacional de
Águas (ANA), para o Ministério de Desenvolvimento Regional; 3) o tema das
mudanças climáticas teria sumido do espectro de atribuições do MMA, como a
condução da própria política nacional e as negociações internacionais sobre o
tema (por exemplo, em relação ao Acordo de Paris); 4) a extinção do
Departamento de Educação Ambiental; 5) a extinção da Secretaria de
Extrativismo, Desenvolvimento Regional e Combate à Desertificação e a
transferência da agenda econômica sobre o extrativismo para o Ministério da
Agricultura; 6) a extinção da Secretaria de Articulação Institucional e
Cidadania Ambiental, sinalizando o movimento de distanciamento do atual governo
em relação à sociedade civil que atua na área ambiental. Lançado esse balanço
geral sobre o “enxugamento” das atribuições do MMA, passaremos a contextualizar
tal cenário em face do princípio da proibição do retrocesso ecológico.
Tendo
em conta tais medidas, o que se pergunta é se com isso restou de fato ou mesmo
potencialmente fragilizada a capacidade de proteção do ambiente no Brasil, de
modo a que possa ser acionado o assim chamado princípio da proibição de
retrocesso ambiental, que é objeto de reconhecimento e desenvolvimento mais
recente, mas já tido — nas palavras do ministro do STJ Herman Benjamin — como
princípio geral de força cogente.
Convém
destacar, ainda, que o instituto foi recentemente reconhecido mediante o
Princípio 3, c, do Acordo Regional de Escazú para América Latina e Caribe sobre
Acesso à Informação, Participação Pública na Tomada de Decisão e Acesso à
Justiça em Matéria Ambiental (2018)[2]. Registra-se que, juntamente com a
proibição de retrocesso, o diploma internacional também consagrou expressamente
o princípio de progressividade, vinculando o Estado — em todas as suas
manifestações —, no sentido de não apenas vedar recuos no regime legislativo e
administrativo em matéria ambiental, mas, também, como um dever estatal, de
atuar progressivamente, ou seja, por meio do fortalecimento e melhoramento do
regime estatal de proteção da natureza.
O
princípio da proibição de retrocesso ecológico, de tal sorte, opera como
espécie de “blindagem protetiva” em face da atuação dos poderes públicos em
geral, incidindo, para além de limitar a discricionariedade do legislador
(Estado-legislador), também sobre eventuais recuos no tocante à adequação e
capacidade da estrutura administrativa e organizacional do Estado
(Estado-administrador) já consolidada para a proteção e promoção de determinado
direito fundamental. Na temática ecológica, qualquer medida adotada pelo Poder
Executivo, nos diferentes planos federativos, que resultar em redução
desproporcional das estruturas organizacionais e procedimentais indispensáveis
para a consecução, com eficácia, dos deveres estatais vinculativos — no caso, o
dever de proteção ambiental — a ponto em especial de caracterizar uma proibição
insuficiente (deficitária) de proteção, há de ser passível de ser sindicada,
inclusive pela via jurisdicional.
O
MMA, em linhas gerais, perdeu atribuições e autonomia extremamente
significativas na reforma ministerial, abrindo caminho para o desmonte de
políticas públicas ambientais nucleares como, por exemplo, a competência para o
combate ao desmatamento, queimadas e desertificação, justamente no momento em
que se verifica aumento galopante do desmatamento na Amazônia segundo dados do
próprio governo federal[3]. Isso reflete diretamente no enfrentamento das
mudanças climáticas, tema, aliás, que ficou sem uma definição clara sobre quem
coordenará e executará a Política Nacional sobre Mudança do Clima (Lei
12.187/2009). Ao que tudo indica, no tocante às negociações internacionais
sobre o tema, com a retirada de tal atribuição do MMA, o mesmo ficaria a cargo
do Ministério de Relações Exteriores, chefiado por um ministro que já se
manifestou publicamente no sentido de negar a existência do aquecimento global[4].
O enxugamento ou mesmo extinção de órgãos do Sistema Nacional do Meio Ambiente
(Sisnama)[5], como o Ibama, o ICMBio, as secretarias estaduais e municipais de
Meio Ambiente e o próprio MMA, sem a criação de órgão ambiental equivalente e,
portanto, impossibilitando, por exemplo, a fiscalização e a adoção de políticas
públicas ambientais de modo minimamente suficientes para salvaguardar tal
direito fundamental, indica claramente que se está em face de pelo menos
potencial violação da proibição de retrocesso ecológico.
No
âmbito doutrinário, colaciona-se, nessa senda, o magistério de Gavião Filho, no
sentido de que aplicação da proibição de retrocesso no âmbito da perspectiva
organizacional e procedimental dos direitos fundamentais impossibilitaria um “enxugamento”
da estrutura administrativa posta hoje no Estado brasileiro para dar efetivação
ao direito fundamental ao ambiente. A estrutura administrativo-organizacional
do Estado Constitucional “Ambiental” brasileiro, conforme afirma o autor, está
orientada no sentido da realização do direito fundamental ao ambiente,
notadamente pela distribuição de sua atuação política e administrativa para as
três entidades federativas com a fixação de um órgão nacional. A “organização
ou estrutura administrativa”, que dá forma ao direito à organização,
encontra-se protegida pela proibição de retrocesso, o que acarreta a
impossibilidade de o Estado extinguir os órgãos ambientais, salvo criando
outros com a mesma ou superior eficácia. A não consideração de tal situação pode
implicar violação de posições jurídicas fundamentais em matéria ambiental,
passível de correção pela via judicial por intermédio dos mecanismos
disponíveis, tais como a ação popular, a ação civil pública, a ação direta de
inconstitucionalidade, a ação de inconstitucionalidade por omissão e o mandado
de segurança, dentre outros que poderiam ser colacionados[6].
O
exercício efetivo dos direitos fundamentais — e isso não é diferente em se
tratando dos direitos ecológicos — passa, necessariamente, pela criação, na
estrutura organizacional-administrativa do Estado, de instituição ou
instituições públicas empenhadas em assegurar condições fáticas necessárias
para o exercício dos direitos fundamentais (no caso aqui tratado, do direito
fundamental ao ambiente), inclusive como expressão da sua dimensão (ou
perspectiva) organizacional.
A
estrutura administrativa do Estado em matéria ambiental, como “braço” do Poder
Executivo destinado a dar concretude aos objetivos constitucionais do artigo
3º, CF e aos deveres constitucionais gerais e especiais, deve em especial se
estruturar e criar condições efetivas para tanto e não atuar em sentido
contrário. Do contrário, ou seja, diante de um cenário de inexistência ou
insuficiência de tal estrutura e atuação administrativa — por exemplo, a
ausência de uma política pública de enfrentamento das mudanças climáticas
concreta e efetiva para executar a Lei 12.187/2009 e os compromissos
internacionais assumidos pelo Brasil em tal matéria —, subverte-se o regime
jurídico ecológico e submete-se o direito fundamental em questão a um cenário
de proteção deficitária e, portanto, não alcançando condições fáticas
necessárias ao seu exercício por parte dos seus titulares, tanto individual
quanto coletivamente considerados (caput do artigo 225 da CF/1988).
Com
isso, é claro, ainda que se possa (e o sustentamos enfaticamente) ter como
corretas as premissas aqui traçadas em linhas gerais, não se está explorando
todas as nuances do problema nem oferecendo todas possíveis respostas. Da mesma
forma, não se está a dizer que o Poder Executivo não dispõe de considerável margem
de discrição no que diz com a sua estruturação, organização e funcionamento.
Portanto, mesmo alterações importantes, incluindo a supressão de órgãos etc.,
não se encontram prima facie vedadas, mas, em especial quando operando de modo
adequado na proteção e promoção da proteção de direitos fundamentais, aqui com
destaque para a proteção ambiental, sua extinção ou esvaziamento implicam
elevado ônus de justificação, dando conta de que com tais medidas o que se
pretende e terá condições efetivas de assegurar é pelo menos o mesmo nível de
eficácia.
Assim,
o que, ao fim e ao cabo aqui se pode adiantar, é que o governo federal tem
muito a justificar e explicar também no caso das diversas e impactantes
alterações (em regra cortes e enxugamentos) levadas a efeito na estrutura
organizacional, funcional e procedimental do MMA. À sociedade civil organizada
e aos agentes responsáveis pela fiscalização da atuação do poder público, até
mesmo com recurso ao Poder Judiciário, impõe-se o dever cívico da vigilância
permanente, crítica e proativa. É claro que com isso também não se está a
definir aqui como e em que medida (em especial no que diz respeito à natureza
da intervenção na seara do Poder Executivo) se deverá dar eventual prestação
jurisdicional. Mas, a depender de diversos precedentes do STF no que diz com o
controle da administração (inclusive em matéria ambiental), é de se aguardar um
posicionamento tendencialmente engajado com a proteção do ambiente. Pelo menos,
é o que se espera.
[1]
Matéria sobre o tema disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2018/11/bolsonaro-recua-em-fusao-de-meio-ambiente-e-agricultura-e-diz-nao-querer-xiita-ambiental.shtml.
Acesso em 22/1/2019.
[2]
“(...) Artigo 3 - Princípios - Na implementação do presente Acordo, cada Parte
será́ guiada pelos seguintes princípios: (…) c) princípio de vedação do
retrocesso e princípio de progressividade.”
[3]
Disponível em:
http://www.mma.gov.br/informma/item/15259-governo-federal-divulga-taxa-de-desmatamento-na-amaz%C3%B4nia.html
e https://www.wwf.org.br/?68662/maior-aumento-desmatamento-amazonia-dez-anos.
Acesso em: 23/1/2019.
[4]
Disponível em:
https://g1.globo.com/natureza/blog/amelia-gonzalez/post/2018/11/16/reacoes-de-ambientalistas-a-escolha-do-novo-ministro-cetico-do-clima.ghtml.
Acesso em: 23/2/2019.
[5]
Artigo 6º da Lei 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente).
[6]
GAVIÃO FILHO, Anízio Pires. Direito fundamental ao ambiente. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005, pp. 91-92. O tema em questão encontra-se, em certa
medida, colocado na ação proposta pelo Ministério Publico do Rio Grande do Sul
contra o estado do Rio Grande do Sul (Processo 0021210-55.2017.8.21.0001), com
o propósito de reverter medida adotada pelo Poder Executivo com o objetivo de
extinguir a Fundação Zoobotânica (FZB), que abrange o Jardim Botânico de Porto
Alegre e o Museu de Ciências Naturais. Disponível em:
https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2018/10/19/justica-do-rs-revoga-decreto-que-extinguiu-fundacao-zoobotanica.ghtml.
Acesso em: 22/1/2019.
Ingo Wolfgang Sarlet
é professor titular da Faculdade de Direito da PUCRS, desembargador no TJ-RS,
doutor e pós-doutor em Direito.
Revista Consultor
Jurídico
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