O
teatro de Eurípides, em seu maior momento, reflete a desestruturação social
pela qual passa a “polis” de Atenas, e, nela, a democracia grega, há vinte e
cinco séculos atrás. Ao revisitarmos uma de suas mais importantes tragédias,
“Hércules”, nos damos conta da semelhança com os dias de hoje, onde encontramos
junto à decadência civilizatória e ética, o do retorno dos tiranos aceitos como
líderes de sociedades desestruturadas. Tiranos estes que prestam juras e homenagens
a deuses degradados, cuja religiosidade apenas serve aos interesses de
dominação.
Eurípedes
nasceu na ilha de Salamina por volta de 485 a.C., na mesma época da gloriosa
batalha naval travada no estreito de Salamina que livrou os gregos da segunda
aventura do Império Persa, que tentava dominá-los.
Sobre
sua vida social pouco se sabe, mas a crer nas paródias que autores cômicos como
Aristófanes a ele se referiram, Eurípedes preferia o recolhimento, o pensar e o
saber às relações sociais mais amplas. Provavelmente o sofista Protágonas e o
filósofo Sócrates, de quem era amigo, tenham sido aqueles que mais
influenciaram seu pensamento crítico.
Após
a vitória sobre Xerxes, sucessor no Império Persa de Dario, a Atenas comandada
por Péricles, assumindo a liderança do Peloponeso, passou a exercer um papel
imperialista sobre as demais cidades gregas; a cidade enriquece ao mesmo tempo
em que vê crescer a perda dos valores éticos na decadência das virtudes
cidadãs.
Pois
a maturidade de Eurípedes conviveu com a revolta das cidades gregas contra a
Atenas imperial, dando origem à longa e destruidora guerra do Peloponeso, onde
gregos enfrentavam outros gregos. Pois foi durante a guerra que o poeta
escreveu a maior parte de suas peças teatrais, filhas do forte ceticismo do
poeta e da sua ruptura tanto com as tradicionais crenças religiosas, como com
os valores da decadente democracia grega.
Um
dos fatores preponderantes pelo qual Eurípedes desenvolveu um forte espírito
antibelicista foi o extermínio que os atenienses realizaram ao derrotar os
gregos da ilha de Melos; o fato serviu como substrato de diversas de suas
tragédias, onde os vencedores agressores (tal qual os atenienses), são os
assassinos e os vencidos, os verdadeiros heróis na defesa da Pátria.
Os
heróis da maturidade de Eurípedes se aproximam da realidade humana, de suas
limitações, de seus vícios, maldades e virtudes. A tragédia expressa, em sua
última fase, o pathos da condição humana, desligando-se da significação divina
e o próprio viver torna-se confuso, ambíguo, inconstante.
O
público, que o aplaudia no teatro, ambiguamente apoiava a política guerreira e
imperialista de Atenas. Mas o tempo chegaria em que, derrotados na Sicília,
começariam os atenienses a sofrer na própria pele a amargura que os vencidos
nas lutas mitológicas “sofreram” e que haviam sido espelhados nas obras do
poeta. Ao final, Atenas é derrotada pelas tropas aliadas aos espartanos e sob o
comando de Esparta tem extinta sua democracia e passa a ser governada pelo
grupo denominado de “Trinta Tiranos”.
Eurípedes
transmite à polis a mensagem de que os tiranos são bárbaros, maus e tratam os
homens como escravos. Não constituem solução para a decadência da pólis, de
Atenas.
“Hércules”
simboliza um mundo em ruínas, onde os golpes da sorte e o acaso fraturam a
ordem estabelecida. Ele pouco lembra o herói da tradição mitológica que com
seus trabalhos tornara o mundo mais habitável. Agora ele é um homem livre, não
subjugado pelos deuses, retornando para uma vida familiar ansiosamente
esperada, junto ao pai, esposa e filhos.
Entre
Hércules e sua família interpõe-se Lico, o tirano Tebano, assassino de
Creonte, o pai de Mégara, esposa do
herói ausente. Lico, que crendo estar Hércules morto, decide-se por eliminar
toda a família do herói, ou seja, todos aqueles que poderiam um dia, despojá-lo
do trono que usurpara.
Lico,
como os Tiranos, não conhece limites e possui a empáfia tradicional dos
hoplitas, militares de posses aristocratas, que desprezam o “populacho”,
aqueles que lutam com arco e flecha. Anfitrião, pai de Hércules ausente,
defende a “arete”, a honra do filho contra as infâmias do tirano. Relata alguma
das façanhas do filho e diz que “o hoplita é um homem escravo das armas,
somente pode subsistir ao combate em formação unida de companheiros, em seus
esquadrões militares; já o arqueiro, posto à distância, resguarda da morte a si
e aos outros”, tal qual os inimigos populares do tirano.
Enfrentando
o tirano Lico (que significa lobo, aquele que ataca à traição em grego),
Anfitrião ainda diz: “Na luta, o mais sábio é fazer mal aos inimigos sem
escudar-se na “tické”, na sorte… Teu desejo de matar-nos é filho de tua
covardia e eu a entendo, pois os filhos de Hércules possuem os mesmos olhos de
Górgona, onde tu vês espelhar tua própria morte no futuro… Mas se desejas
merecer o cetro que ora deténs, deixa-nos partir”.
Dirige-se,
então, ao Coro, o qual representa o povo tebano, em pedido de solidariedade. A
soberba e a brutalidade de Lico tenta impedir os velhos anciãos de se
manifestarem e os ameaça: “Recordeis que sois escravos de minha tirania”.
Ordena, então, que tragam madeira e que queimem toda a família de Hércules no
próprio altar de Zeus, onde eles haviam buscado refúgio. Aos tiranos somente
lhes importa a religiosidade quando lhes propiciam o poder!
Anfitrião
somente pode aconselhar que “prolonguem o tempo de vida, já que todos os
humanos são frágeis… afinal, a luz me é cara e amo a esperança”. Responde-lhe
Mégara, esposa de Hércules: “A mim também, velho, mas como esperar o inesperado?”.
Anfitrião: “No adiamento dos males há sempre alívio… Pois aqueles que são
prósperos o são até o fim, porque todas as coisas se afastam uma das outras; o
melhor homem é aquele que sempre na esperança confia: o desesperar é próprio do
imprudente.”
Como
veremos ao final da tragédia, ao contrário do raciocínio do velho Anfitrião,
mesmo a esperança carece de sentido no caos da sociedade desestruturada, dado
que fatores imprevisíveis e atilados com o acaso comandam o resultado das ações
dos homens.
Enquanto
isto, a mãe Mégara prepara as crianças com as vestes funerárias e interroga-se:
“Quem é o sacrífice destes infelizes, ou o assassino de minha desditosa vida?”
O
Coro dos anciãos tebanos responde à altura do tirano brutal: “Nunca me
dominarás impunemente, nem obterás o que consegui com esforço e fadiga. Volta
para o lugar de onde vieste (Lico é estrangeiro em Tebas) e lá pratiques as
tuas desmedidas. Enquanto eu viver não matarás os filhos de Hércules… Ó destra
mão, como desejaria empunhar a forte lança e não chamarias escravos a homens
livres… Não é sensata uma cidade enferma por ausência de rebeliões e de más decisões, ou jamais teria
te recebido como déspota”.
Enquanto
isso, Hércules, o herói que descera ao Hades para de lá retirar o cão Cérbero,
retorna a tempo de salvar sua família. Mégara e Anfitrião vêm sua aproximação e
saúdam-no como a um salvador. Colocam,
então, Hércules a par da morte de Creonte, a expulsão da própria casa e a
condenação à morte da família imposta por Lico.
Hércules
pergunta onde estariam a deusa Decência e seus amigos e como resposta obtém dos
cidadãos do Coral: “Eles (os déspotas) vivem longe desta deusa e a má sorte não
tem amigos”.
A
primeira reação de Hércules é selvagem: quer destruir o palácio dos tiranos,
“arrancar a ímpia cabeça e lançá-la aos cães”; “outros dilacerarei com minhas
flechas, e encherei os rios de cadáveres”. Mas o ponderado pai lhe recomenda:
“É da natureza, filho, amar os amigos e odiar os inimigos, mas não sejas tão
apressado”.
E
fornece a chave de como Lico fora vitorioso e destruíra o rei Creonte,
inspirado pela inveja: “Muitos pobres têm o tirano como aliado, pois quando se
revoltaram o fizeram para pilhar seus vizinhos mais ricos; mas seus bens foram
gastos e evaporaram-se pelo ócio”. Pede que o filho ali permaneça, pois Lico
não tardará a vir executar a sentença de morte que terminará, numa peripécia,
sendo a sua própria.
Lico
ao chegar é atacado e destruído por Hércules. Estando o titano morto, o Coro,
representando a população tebana, começa suas danças: “Foi-se o novo rei, o
antigo domina, a esperança voltou”.
“Ninguém
suporta olhar o tempo futuro; ao abandonar a lei e favorecer aquilo que é
ilegal, rompe-se o obscuro laço da felicidade.”
No
momento seguinte, o Coro transtorna-se; evapora-se a alegria, e um pavoroso
espectro é visto rondando o palácio. Trata-se de Íris, a mensageira dos deuses,
acompanhada de Lissa, a loucura, filha de Nix, da Noite. Dirigindo-se ao coro,
diz ao que veio: “Agora que Hércules terminou seus os trabalhos, Hera quer
atá-lo à derrama do sangue familiar através do assassinato dos próprios filhos
e o mesmo quero eu.”
Íris
ordena à indecisa Lissa que derrame sobre Hércules a loucura puericida, ou “os
deuses de nada valerão e grandes serão os mortais, caso Héracles não seja
punido” ( por suas desmedidas que o aproximavam dos próprios deuses). Como
Lissa vacila, pois não lhe agrada visitar homens amigos, ou seja, homens
lúcidos, Íris deixa claro que a esposa de Zeus nunca envia “a loucura aos
homens para que ela seja sensata”.
Lissa
toma Apolo por testemunha de que fará o que não deseja e sentencia: “Hércules
ao matar os filhos nada saberá, ficará em delírio até livrar-se de meu furor”.
E passa a descrever a reação de loucura que acomete o herói: “Sacode a cabeça,
gira as pupilas onde se reflete o olhar da morte, não controla a respiração,
muge”.
Neste
momento, as Erínias vingadoras avançam
para dentro do palácio. A tarefa de Íris será cumprida. O Coro está fora do
palácio onde Hércules caça seus próprios filhos e sua mulher. No delírio em que
entra, Hércules confundirá seus filhos com os de Euristeu, o meio-irmão-
inimigo, às ordens de quem tornara o mundo mais habitável. Hércules trucida sua
mulher e os próprios filhos. Do massacre salva-se, tão somente, o infeliz pai.
Temos,
então, o herói vivente que livrara a terra dos piores monstros, mas que ao se
transformar no assassino da própria família, torna-se um avatar dos monstros irracionais
que ele combatera.
Ao
final do massacre, o herói está destruído; nem mesmo o consolo na própria
morte, por suas mãos manchadas com o sangue familiar, ele consegue perpetrar.
Então Eurípides coloca Teseu, rei de Atenas, como um deus ex-machine em cena.
Toda
a peripécia é contada por Anfitrião, o pai de Hércules, ao amigo Teseu. E o rei
de Atenas mitológica, Teseu, odeia aqueles que apenas são amigos na bonança.
Estende sua mão fraterna ao herói destroçado e diz “quem é nobre dentre os
mortais suporta o que vem dos deuses e não o rejeita”.
Hércules:
“Minha vida já não é vida e nem antes o era; Zeus, seja ele quem for, gerou-me
inimigo de Hera. Pai eu considero a este velho e não mais a ele”.
Depois
de todos seus feitos, por ter na loucura realizado a matança dos filhos, ele
não pode habitar Tebas, tão pouco poder ir a Argos ou estar entre amigos… “Para
um homem outrora ditoso, são aflitivas as mudanças; já para aquele que esteja
sempre mal, este nada sofre: é infeliz de berço”. E se questiona com ímpeto
suicida: “Por que terei que viver uma vida ímpia e inútil?”
Mas
a firme amizade acena para o antigo herói psiquicamente destruído com a
continuidade da vida. Teseu: “Acompanha-me à cidade de Atenas onde te
purificarei e compartilharei contigo tudo o que possuo… Quando morrerdes e
fores ao Hades, toda Atenas te honrará com sacrifícios e monumentos… Agora tu
precisas, como nunca, de amigos”.
Os
deuses, em Eurípedes, deixaram de proporcionar harmonia ao mundo dos mortais;
existem, mas num mundo que lhes é próprio, em que “nada lhes falta”. Todo o
demais, “são contos dos poetas”, pois mais vale a phylia, a amizade, aparadora
das desditas humanas que a crença religiosa.
O
mundo euripidiano, reflexo do momento político e social de desagregação social,
já não comporta grandes reis, e heróis. Muito menos, Tiranos. O caos, a
incerteza, a instabilidade e imprevisibilidade da sorte se instalaram no
universo que, outros antes dele, acreditavam unificado e harmonioso, e este, é
um espelho de nosso mundo desestruturado.
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