Frei
Betto, 73 anos, é frade dominicano e um dos responsáveis na propagação da
teologia da libertação no Brasil, movimento apartidário que interpreta os
ensinamentos de Jesus Cristo como libertadores de injustas condições sociais,
políticas e econômicas.
Autor
de mais de 60 livros, Frei Betto falou à Pública, por e-mail, sobre o atual
momento político e social do país. “Se o Bolsonaro ganhar a eleição, teremos um
governo autoritário, uma ditadura revestida de democracia, como o governo de
Hitler no início dos anos 1930 na Alemanha”, argumenta o dominicano, que
recentemente lançou duas obras: Sexo, orientação sexual e “ideologia de gênero”
e Por uma educação crítica e participativa (Anfiteatro).
Por
razões políticas, Frei Betto foi preso duas vezes durante a ditadura militar
(1964 e de 1969 a 1973). Já no período democrático, logo após a eleição de
Lula, ajudou na elaboração do programa Fome Zero e trabalhou como assessor
especial do ex-presidente (2003 e 2004).
O
religioso nunca poupou de críticas o Partido dos Trabalhadores ao longo dos
anos. “O PT, embora tenha feito o melhor governo de nossa história republicana nos
dois mandatos de Lula e no primeiro de Dilma, não cuidou de promover a
alfabetização política de nosso povo. E buscou assegurar a governabilidade por
alianças, muitas delas promíscuas”, avalia.
Para
ele, se Haddad vencer, “teremos um governo voltado às questões sociais”, mas
alerta: nenhum dos candidatos “livrará o Brasil de intensa turbulência nos
próximos dez anos”.
Qual
avaliação política o senhor faz dessa disputa para presidente do ponto de vista
dos discursos dos candidatos?
Até
agora predominaram os discursos antipetista dos bolsonaristas e antibolsonaro
dos haddadistas. Com o segundo turno parece que eles mudam de tom. Bolsonaro se
apresenta como flor que se cheira, pleno de amor aos pobres, de defensor das
mulheres, de respeitador dos homossexuais. E Haddad se foca em propostas
efetivas de melhorias de vida do povo brasileiro, o que me parece acertado.
Haddad se desloca do mero protesto para reais propostas.
Qual
é, na sua opinião, a responsabilidade do PT nessa onda de direita? Por que o
antipetismo é colocado à frente de questões que envolvem os direitos humanos?
Porque
o PT, embora tenha feito o melhor governo de nossa história republicana nos
dois mandatos de Lula e no primeiro de Dilma, não cuidou de promover a
alfabetização política de nosso povo. E buscou assegurar a governabilidade por
alianças, muitas delas promíscuas, com o que havia de mais retrógrado na
política brasileira, quando deveria fazê-lo para mobilização de quem deu as
vitórias do PT: os movimentos sociais.
Além
disso, não criamos uma narrativa capaz de incluir o brasileiro como
protagonista de um processo político. Acenamos com luz, casa, carro, escola
etc., sem a contrapartida da densidade subjetiva, ou seja, uma cosmovisão que
ajudasse o cidadão a se situar no conflito de classes.
O
que o PT e Haddad precisam fazer para conter essa onda de direita?
Primeiro,
ganhar a eleição dia 28 de outubro! Em seguida, fazer uma séria e profunda
autocrítica dos equívocos cometidos ao longo de 13 anos de governo, como fiz
nos livros A mosca azul e Calendário do poder, ambos editados pela Rocco, e
apresentar um consistente programa de reformas estruturais.
Depois
de se posicionar publicamente no primeiro turno das eleições gerais no país
contra discursos de ódio e violência, agora a CNBB (Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil) pede ao eleitor católico que, ao escolher seus candidatos, na
votação de segundo turno, atente para aqueles que ajudem a preservar, e não a
destruir, sistemas democráticos. Como o senhor avalia esse posicionamento da
CNBB?
A
CNBB deveria ter se posicionado já no primeiro turno. Mas ainda bem que o faz
agora. Porém, sem a força de mobilização que têm as Igrejas evangélicas. Nestas
o pastor falou, o fiel calou porque aceitou. Na Igreja Católica há,
infelizmente, grande contingente de bolsonaristas.
Como
Haddad pode se aproximar dos católicos e quais seriam as demandas da igreja que
ele teria que atender?
É
um pouco tarde para essa aproximação. O PT deveria ter mantido um canal de
diálogo com todas as instituições que têm um mínimo de abertura às suas
propostas. Ainda assim, Haddad deve focar seu discurso no drama social do povo
brasileiro, e não na pauta moralista de alguns setores religiosos.
Como
a ascensão evangélica no Congresso está mudando as relações sociais e políticas
no país?
Devo
dizer que respeito todas as Igrejas evangélicas, mas discordo dos cristãos –
sejam eles católicos ou evangélicos – que usam o nome de Deus para fortalecer a
desigualdade social e o preconceito a gays, negros, quilombolas e movimentos
sociais como o MST e o MTST.
No
Congresso, infelizmente a bancada da Bíblia tem esse perfil conservador e se
cumplicia com as outras bancadas do B: banco, bola, bala e boi. E essa gente
demoniza tudo que foge a seus interesses corporativos, como promover a
acumulação privada do capital e manter o abismo entre ricos e pobres no qual o
Brasil afunda.
Na
sua opinião, por que Bolsonaro conseguiu dialogar mais com essa parcela do
eleitorado?
Porque
soube surfar no vácuo da crise política, que levou ao descrédito das
instituições, dos políticos e da política, e no moralismo suscitado pela
partidarização da Lava Jato.
Aborto
e questões de gênero são temas que racham tanto evangélicos quanto católicos.
Qual sua avaliação sobre esses temas?
Acabo
de publicar uma cartilha popular intitulada Sexo, orientação sexual e
“ideologia de gênero”. Esses temas têm sido debatidos com mais ardor emocional
que lógica racional. Os mesmos que não aceitam a descriminalização do aborto
aplaudem quando a polícia atira antes de perguntar. E a diversidade de gênero é
tão inquestionável como o fato de a Terra girar em redor do Sol. Mas há quem
insista que é o Sol que gira em torno da Terra… Pobre Galileu!
O
senhor foi um dos perseguidos pela ditadura militar de 1964 que Jair Bolsonaro
(PSL) defende abertamente. Qual o seu sentimento em relação a essas declarações
públicas?
Sentimento
de que o Judiciário brasileiro falhou redondamente ao criar a lei esdrúxula da
anistia recíproca e não punir os responsáveis por rasgarem a Constituição e
impor ao Brasil um regime de terror que, impunemente, assassinou, estuprou,
prendeu, torturou e exilou ao longo de 21 anos. Bolsonaro é resultado dessa
grave omissão.
O
senhor vê paralelo entre 1964 e nosso atual momento?
Não.
Vejo paralelo entre o momento atual e a eleição de Hitler na Alemanha, pelo
voto democrático, em 1933.
Pode,
por favor, explicar um pouco mais esse paralelo?
Em
1964 houve um golpe militar que expulsou do poder o presidente da República e
suspendeu todas as garantias constitucionais. Não se pode comparar uma eleição
democrática, como a atual no Brasil, com o golpe de 1964. Mas sim com a eleição
de Hitler na Alemanha, em 1933.
Veja:
Ele nada entendia da situação real do país. Nem demonstrava interesse por ela,
embora atuasse ativamente na política. Por isso não gostava de ser questionado,
irritava-se diante das perguntas como se fossem armas apontadas em sua direção.
Não queria que a sua ignorância se tornasse explícita.
Ser
estranho, ele tinha olhos alucinados afundados nas órbitas, lábios espremidos,
gestos cortantes. Todo o seu corpo era rígido, como se moldado em armadura. Ao
ficar na defensiva, parecia uma fera acuada. Ao passar à ofensiva, a fera
exibia garras afiadas e de suas mandíbulas pingava sangue.
Sua
fala exalava ódio, rancor, preconceito. Aliás, não falava, gritava. Não sabia
sorrir, tratar alguém com delicadeza, ter um gesto de cortesia ou humildade.
Evitava ao máximo os repórteres. Julgava suas perguntas invasivas. E temia que
a sua verdadeira face antidemocrática transparecesse em suas respostas.
Educado
em fileiras militares, aprendera apenas a dar e cumprir ordens, enquadrar quem
o cercava e ultrajar quem se opunha às suas opiniões. Jamais aceitava o
contraditório ou praticava um mínimo de tolerância. Considerava-se o senhor da
razão.
A
nação estava em frangalhos, mergulhada em crise ética, política e econômica, e
o horizonte da esperança espelhado em trevas. Pelo país afora havia milhares de
desempregados, criminalidade generalizada, corrupção em todas as instâncias de
poder. O câmbio disparara, a moeda nacional perdia valor, o descontentamento
era geral. O governo carecia de credibilidade e se via cada vez mais
fragilizado. O povo clamava por um salvador da pátria.
Jovens
desesperançados viam nele um avatar capaz de inaugurar a idade de ouro. Era ele
o cara, surfando na descrença generalizada na política e nos políticos. O
Executivo se debilitara por corrupção e incompetência, o Legislativo mais
parecia um ninho de ratos, o Judiciário se partidarizara submisso a interesses
escusos.
Ele
se dizia cristão e se considerava ungido por Deus para livrar o país de todos
os males. Advogava soluções militares para problemas políticos. Movido pela
ambição desmedida, se apresentou como candidato à eleição democrática para
ocupar o mais alto posto da República, embora ostentasse a patente de simples
oficial de baixo escalão do Exército.
De
sua oratória raivosa ressoava o discurso agressivo, bélico, insano. Haveria de
modificar todas as leis para implantar uma ordem marcial que poria fim a todas
as mazelas do país. Eleito, seria ele o comandante em chefe, e todos os
cidadãos passariam a ser tratados como meros recrutas obrigados a cumprir
estritamente as suas ordens.
Prometia
fortalecer o aparato policial e as forças armadas. Sua noção de justiça se
resumia a uma bala de revólver ou a um tiro de fuzil. Eleito, excluiria da vida
social um enorme contingente de pessoas consideradas por ele sub-humanos e
indesejáveis, mulheres, homossexuais, trabalhadores em luta por seus direitos e
comunistas. Todos que se opunham às suas opiniões eram por ele apontados como
bodes expiatórios da desgraça nacional.
Seu
mandato presidencial haveria de trazer a era de fartura e prosperidade.
Reergueria a economia e asseguraria oportunidades de trabalho a todos.
Exaltaria os privilégios do capital sobre os direitos dos trabalhadores.
Aqueles que o seguissem seriam felizes, e livres para sobrepor a lógica das
armas ao espírito das leis. Os demais, excluídos sumariamente do convívio
social.
Enfim,
após uma série de manobras políticas e forte repressão às forças adversárias,
ele foi eleito chefe de Estado. A nação entrou um júbilo. O salvador havia
descido dos céus! Ou melhor, brotado das urnas.
Tudo
isso aconteceu há 85 anos, em 1933. Na Alemanha alquebrada pela derrota na
Primeira Grande Guerra. O nome dele era Adolf Hitler.
As
comunidades de base da Igreja Católica tiveram um grande papel na politização
popular nos anos 1960 e na resistência à ditadura nas décadas seguintes. Qual a
diferença que o senhor vê entre essa atuação e a que é feita pelas igrejas
neopentecostais neste momento?
As
CEBs [comunidades eclesiais de base] sofreram desvalorização sob os
pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Então muitos fiéis pobres migraram
para igrejas neopentecostais. Agora, com o papa Francisco, as CEBs voltam a ter
espaço na Igreja, mas infelizmente foram debilitadas. As CEBs são a fonte da
teologia da libertação. E as igrejas neopentecostais adotam a teologia da
prosperidade, ou seja, do próprio umbigo, sem nenhuma dimensão social da
mensagem do Evangelho.
Em
uma entrevista para o El País, o senhor diz que “a igreja evangélica está
cometendo o mesmo erro que a Igreja Católica cometeu na Idade Média”. O que
isso significa?
No
período medieval, a Igreja conquistou a hegemonia sobre a sociedade, a ponto de
o papa coroar reis e nomear príncipes. Hoje algumas igrejas evangélicas
procuram confessionalizar a política e anular a laicização da sociedade civil.
Por
meio do poder, em cujas estruturas há cada vez mais pastores, se empenham em
fazer coincidir os preceitos religiosos com as leis civis, como a demonização
dos homossexuais e a condenação do Carnaval.
Amanhã
um pastor na Presidência da República ou no STF pode insistir em estabelecer,
em todo o país, a Lei Seca, proibindo a fabricação, a venda e o consumo de
bebidas alcoólicas, como se tentou nos anos de 1930 nos EUA.
A
Igreja se afastou do povo? Por que esse trabalho com as comunidades de base
perdeu força?
Porque
não teve apoio da hierarquia, ou seja, de bispos e padres. Como adverte o papa
Francisco, enquanto a Igreja Católica não se desclerizar, isto é, abandonar o
clericalismo que a domina, ele não será em “Igreja em saída”, como frisa o
papa.
A
esquerda se afastou da Igreja Católica ou foi a Igreja Católica que se afastou
da esquerda?
Sempre
houve setores da esquerda na Igreja Católica, e eu me identifico com eles. Mas
hoje é raro encontrar um cardeal de esquerda, como dom Paulo Evaristo Arns; um
arcebispo de esquerda, como dom Helder Câmara; um bispo de esquerda, como dom
Pedro Casaldáliga. Por isso a esquerda laica não tem muito interesse em manter
vínculos com a Igreja Católica.
Se
Bolsonaro ganhar, o senhor vê riscos à democracia? E quais seriam os riscos de
uma vitória de Haddad?
Se
o Bolsonaro ganhar a eleição, teremos um governo autoritário, uma ditadura
revestida de democracia, como o governo de Hitler no início dos anos 1930 na
Alemanha. Se Haddad vencer, teremos um governo voltado às questões sociais,
ampliando nosso espaço democrático. Mas nenhum dos dois livrará o Brasil de
intensa turbulência nos próximos dez anos. Contudo, insisto em meu axioma:
guardemos o pessimismo para dias melhores!
Thiago
Domenici, Agência Pública
https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/10/semelhancas-eleicao-de-hitler-alemanha.html
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