Há
naquelas terras em Cascavel, a 62 quilômetros de Fortaleza, entre 15 e 18
humanos, dois cachorros, três porcos, pelo menos uma dúzia de galinhas e patos
e um par de caprinos. As idades vão de um ano, da pequena Violeta, até os 68 de
Rosa Fonseca, a “guru” do bando de rebeldes que pretende experienciar juntos o
desafio de desdenhar do dinheiro numa sociedade capitalista. Isso mesmo: viver
em comunidade, sem grana. Não houvesse a adesão de primatas, o ambiente
remeteria à Revolução dos Bichos de George Orwell. Se fossem músicos, diríamos
estar numa versão século 21 do sítio de Jacarepaguá dos Novos Baianos.
Cearenses, no caso.
O
sítio Brotando a Emancipação surgiu em 2014, quando alguns integrantes do
Crítica Radical decidiram se lançar à aventura de abandonar o capitalismo.
Fundado por Rosa, pela ex-prefeita petista Maria Luiza Fontenelle e pelo casal
de militantes Célia Zanetti e Jorge Paiva no final de 1973, o Crítica é um dos
mais antigos grupos de esquerda em atividade no Brasil, e provavelmente o único
que milita fora da ação político-partidária. Na verdade, eles propõem o
contrário disso: nenhum deles acredita mais ser possível modificar o Brasil ou
o mundo por meio de eleições.
Ninguém
ali vota há muitos anos, e nem mesmo paga as multas por não comparecer às
urnas, a não ser quando é obrigado por alguma exigência burocrática do governo.
Rosa, por exemplo, conta que só quita a dívida com a Justiça eleitoral quando
tem que tirar passaporte para alguma viagem internacional. Mesmo aparentemente
“isolado”, o grupo mantém contato frequente com radicais do mundo inteiro, e
volta e meia organizam algum evento grande, nos últimos anos no próprio sítio.
Esta semana, o Crítica Radical esteve em Brasília para participar do Congresso
Brasileiro de Agroecologia.
A
sede do sítio é uma casa bem simples, sem luxo algum, com três quartos,
banheiro e cozinha. Alguns dos mais jovens dormem em barracas de camping no
quintal. Na parede da varanda, a divisão do trabalho está afixada em duas
lousas brancas, com as tarefas escritas em caneta piloto; tanto as atividades
domésticas quanto os cuidados com a plantação e os animais são divididos entre
todos. Nos 55 hectares do sítio se cultivam banana, goiaba, feijão, batata
doce, caju, manga, maxixe, melancia, mandioca, mamão… Mas nada é vendido, no
máximo “partilhado”, que é a expressão que preferem, porque “trocar” seria
estabelecer um valor ao produto, algo que rejeitam.
Nem
todos moram no sítio; Rosa fica entre Fortaleza e Cascavel. Todos são
bem-vindos para visitar, mas para viver no Brotando a Emancipação é preciso
passar pelo crivo do grupo. “A gente precisa restringir porque senão vai vir
gente para cá abrir bodega para vender coisas e aí o projeto já era”, explica
Rosa. O proprietário anterior tinha um meeiro, cujo filho acabou se juntando à
turma.
Quando
tem algum evento especial, como o plantio de arroz, que ainda não deu certo,
organizam mutirões. O mais recente foi a construção de uma ciclovereda, no
início de setembro. Além de cuidar da lavoura, os integrantes do Crítica
Radical se dedicam à confecção de livros, panfletos e debates para apresentar a
ideia da nova sociedade que almejam e as duras críticas que fazem a um
capitalismo, que, estão seguros, está nos seus estertores –e o socialismo
também. Um gráfico amigo imprime o material a preço desde custo desde a época
da ditadura militar. O Crítica Radical também é muito ativo nas redes sociais.
Tem canal no youtube e um perfil no no facebook, sempre atualizados.
Mas
por que viver sem dinheiro? Para entender a ideia por trás do Brotando a
Emancipação é preciso conhecer a história de Rosa Fonseca, uma lenda viva da
esquerda cearense. Quando tinha 22 anos, ainda na faculdade de Sociologia, Rosa
foi presa durante dois anos pela ditadura militar e chegou a ser torturada. O Crítica
Radical, criado a partir de sua saída da cadeia, coleciona rupturas partidárias
desde a origem: ainda na clandestinidade, rompeu com o PCdoB; depois, com o PT,
com o PSB e, por último, com o PSTU.
A
temporada no PT, embora vitoriosa a princípio, não durou muito –o casarão que o
grupo ocupava na época, aliás, foi “usurpado” e até hoje é a sede petista no
Ceará. Em 1985, a “crítica radical” Maria Luiza Fontenelle se tornou a primeira
prefeita de capital eleita pelo partido graças a uma campanha vanguardista, na
base da criatividade e pouco dinheiro, mas enfrentou uma forte oposição do
conservadorismo à sua gestão. Se o machismo foi capaz de derrubar Dilma agora,
imaginem 35 anos atrás. Como tinha dois ex-maridos, a bela Maria Luiza era
chamada de “Dona Flor e seus dois Maridos”, de “sapatão”, diziam que era dona
de um motel cuja proprietária era outra Maria Luiza… Acabou se indispondo com
as lideranças do próprio PT e foi expulsa no meio do mandato, em 1988.
Nossa participação na
institucionalidade era, no fundo, para reforçar a luta contra o capitalismo
pela revolução
A
experiência de Rosa como vereadora pelo PSB, entre 1992 e 1996, também não foi
lá tão entusiasmante a ponto de convencê-la a continuar atuando em partidos e
disputando eleições. “Nossa participação na institucionalidade era, no fundo,
para reforçar a luta contra o capitalismo pela revolução”, diz. Em 1998, numa
última tentativa, chegaram a recolher assinaturas para fundar o PARTE (Partido
dos Trabalhadores pela Emancipação), mas acabaram desistindo. A partir dos anos
2000 começam a advogar o não-voto.
“Um
dia, de madrugada”, conta Rosa, “Jorge Paiva deu um grito. A mulher dele, Célia
Zanetti, achou que estava ficando louco. Mas Jorge encontrou no Grundrisse um
trecho em que Marx prevê o que seria a crise do limite do capitalismo, a
substituição do trabalho vivo pelo trabalho objetivado como a última etapa da
produção baseada no valor, e vimos que Marx se contradizia em relação a O
Capital. Quando a gente colocou os dois Marx em confronto, o do Capital e o do
Grundrisse, o Marx Exotérico contra o Marx Esotérico, disseram que éramos tão
radicais que estávamos colocando Marx para brigar com ele mesmo…” Ela solta uma
gargalhada. O “Marx Esotérico” estaria em um movimento “de saída” do capitalismo,
que é a posição atual do Crítica Radical. Daí o sítio.
“Quando
percebemos isso, a primeira pancada foi em nós mesmos, porque vínhamos de uma
escola marxista, de luta de classes, da revolução socialista, da ditadura do
proletariado. O que descobrimos balançava o programa todo, balançava o prédio
todo, aquele prédio que nós éramos capazes de dar a vida por ele. Vimos que era
papo furado, aquele barco não tinha como caminhar mais”, explicou Jorge em
entrevista ao jornal O Povo em 2008. “Começamos, então, a procurar as pessoas
que estavam pensando a questão. Aconteceu que, naquele momento, o (pensador
alemão) Robert Kurz lança um livro chamado O Colapso da Modernização. Nós,
então, percebemos que não estávamos mais sozinhos, havia outros doidos pensando
a mesma coisa, já dá pra montar um hospício.”
Até para viver sem
dinheiro… é preciso dinheiro. Adquirir o terreno para realizar o sonho do sítio
é uma luta que ainda está acontecendo
No
sítio, os papos, que costumam acontecer em volta da fogueira nas noites
enluaradas, são de alto nível. Comemos juntos na mesa da varanda: feijão de
corda, arroz, salada e galinha caipira, tudo muito caseiro e saboroso. A meu
lado, Fabrício Souza, de 21 anos, pai pedreiro e mãe faxineira, desata a falar
sobre marxismo com tanta propriedade que assombra. “A substância do capitalismo
se perdeu. Como vai se recuperar?”, ele pergunta. Fabrício se dedica
integralmente ao coletivo. Pergunto como faz para arranjar dinheiro para os
pequenos gastos do dia a dia. Ele conta que anda de bicicleta e usa o caixa do
grupo quando precisa voltar para casa tarde ou comer alguma coisa.
Esta
é uma questão fundamental, porque até para viver sem dinheiro… é preciso
dinheiro. Adquirir o terreno para realizar o sonho do sítio é uma luta que
ainda está acontecendo. O valor total do terreno é 550 mil reais. Em 2014,
fizeram uma vaquinha e conseguiram pagar o sinal, de 100 mil reais. Depois, um
admirador do grupo se ofereceu para fazer um empréstimo de 90 mil reais no
banco, que ele mesmo paga. Mais recentemente, para pagar mais 200 mil reais,
organizaram uma rifa para sortear o único bem de Rosa, o apartamento que sua
mãe lhe deixou e que, ironia do destino, foi ganha pelo Capitão Wagner,
candidato de direita derrotado na última eleição para prefeito da capital
cearense. E ainda falta grana.
Há
ligeiras contradições à vista. No sítio não tem sinal de TV a cabo, mas um
enorme aparelho de televisão de plasma se destaca na sala; é utilizado pelo
grupo para assistir filmes e documentários pela internet, que, sim, tem. Outra:
a ideia do grupo é viver sem dinheiro, mas sempre que é preciso levantar algum,
já que não produzem ainda tudo o que necessitam para a subsistência, se recorre
à aposentadoria de um dos membros, como Rosa, ou a doações. Pergunto a Ronaldo
Alexandre, de 56 anos, que vive ali perto com sua companheira Etelvina, da
mesma idade, como fazem para se manter, e ele responde: “Etelvina trabalha”
(ela é professora da rede pública). Passa pela minha cabeça a questão: já que
têm uma terra onde podem plantar, para quê viver sem dinheiro? Não seria mais
sustentável praticar comércio justo? Dilemas da fuga do capitalismo.
A
independência ideológica do grupo sempre irritou os partidos, inclusive os de
esquerda, e os afastou dos movimentos sociais. Agitador por natureza, o Crítica
Radical é uma espécie de precursor dos “escrachos” e, onde quer que eles vão,
arrumam confusão. Em 1989, jogaram ovos no então candidato Fernando Collor,
levando-o a pronunciar o famoso discurso do “eu tenho aquilo roxo”; em 2004,
enfiaram uma torta na cara do então ministro do Trabalho e Emprego, Ricardo
Berzoini; em 2006, na Venezuela, arrumaram encrenca com os chavistas ao
comparecer ao Fórum Social Mundial com uma faixa onde estava escrito “Nem Bush
nem Lula nem Chávez”.
Rosa, a crítica radical
Se
são contra eleições e partidos, questiono os membros do grupo o que, então, os
diferencia dos anarquistas. “Os anarquistas não falam em fim da política, têm
um discurso contra o Estado, mas até de uma forma romântica”, responde Rosa.
“Nós nos definimos como emancipacionistas”. E para a sociedade, qual a
contribuição que vocês pretendem dar? “Uma experiência que seja referência para
uma sociedade independente da mediação do dinheiro. É dramática a situação do
planeta e sabemos que não será resolvida pelo capitalismo, um sistema
fetichista patriarcal produtor de mercadorias, nem pelo socialismo. Nosso
desafio é enorme.”
http://www.socialistamorena.com.br/os-novos-cearenses-uma-comuna-na-regiao-metropolitana-de-fortaleza/
Nenhum comentário:
Postar um comentário