Boccaccio,
Marquês de Sade e Vladimir Nabokov morreriam de fome nos dias de hoje, e seus
livros seriam todos queimados em praça pública. Pior: estes autores estariam
presos na ala dos pedófilos e estupradores, sob o aplauso de alguns setores
mais conservadores da sociedade. Imagino o que faríamos com Apuleio, que escreveu
Metamorfose ou O asno de ouro, ainda no século II.
A
ideia de que a pedofilia, a pornografia e a blasfêmia estão sendo travestidas
de arte vem ganhando cada vez mais força. Trata-se, contudo, de uma ideia
moralista maquiada por uma suposta e ilegítima pretensão jurídica de limitar o
direito à liberdade de expressão.
Após
o polêmico episódio do cancelamento da exposição Queermuseu pelo Santander
Cultural, em Porto Alegre (que chegou a ser notícia no The Washington Post), a
polícia apreendeu, na última quinta-feira (14/9), o quadro Pedofilia, da
artista plástica mineira, Alessandra Cunha, que integrava, desde junho deste
ano, a exposição Cadafalso, no Museu de Arte Contemporânea (MARCO) de Campo
Grande (veja aqui).
Até
onde o Direito pode patrulhar a liberdade de expressão artística? Já escrevi
sobre o tema neste Diário de Classe em duas oportunidades (leia aqui e aqui).
Veja a que ponto chegamos. O quadro foi apreendido pela polícia, após deputados
estaduais registrarem boletim de ocorrência na Delegacia Especializada de
Proteção à Criança e ao Adolescente e pedirem a inclusão da artista no cadastro
estadual de pedófilos.
Havia
ordem escrita e fundamentada para a apreensão do quadro? Algum
dogmático-de-plantão dirá que, no caso, haveria algum crime instantâneo de
efeitos permanentes e que, portanto, a apreensão do objeto do crime estaria
legitimada. A questão seria, então, saber qual é este crime?
Quando
entrevistado, o delegado disse: “No quadro questionado aí, aparece uma gravura
de um homem com pênis muito próximo de uma criança, embora sejam gravuras. Mas
eu entendi que existiu sim o crime de apologia”.
Apologia
ao crime? Para o delegado, a artista teria feito, publicamente, apologia de um
fato criminoso. E esse fato criminoso seria pedofilia. Ocorre que, se
analisarmos os crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, todos
eles exigem o envolvimento de “criança ou adolescente” — de carne-e-osso, e de
não suas representações (p. ex.: desenhos, gravuras, pinturas etc) — em
“atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos
genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais”. E
esse, seguramente, não é o caso do quadro apreendido.
Aliás,
se aqui houvesse apologia, ou mesmo incitação ao crime, o que teríamos que
dizer da atual novela das oito (que passa às nove), cuja protagonista Bibi (que
também é o nome de uma marca infantil de calçados) — personagem de Juliana Paes — é uma criminosa
perigosa que se tornou a chefe do tráfico?
Por
mais estranho que pareça ter de afirmar isso, não há nenhum crime “no quadro”,
seja na sua produção, seja na sua exposição. Trata-se de uma representação
artística. Esse é o ponto. Se o quadro é de bom ou de mau gosto, isso é outra
discussão. Uma discussão estética, ou até mesmo moral; nunca jurídica.
No
campo normativo, talvez se pudesse regulamentar a exigência de classificação
indicativa da faixa etária também para exposições artísticas, tal qual ocorre
no cinema e na televisão, conforme a Portaria 368/2014 do Ministério da
Justiça. Confesso, porém, que desconheço museus que adotem medidas semelhantes.
A literatura, por exemplo, não tem qualquer limitação deste tipo.
No
fundo, tudo isso revela nossa incapacidade hermenêutica. Cada vez temos mais
dificuldade em interpretar, sobretudo quando esse exercício exige a suspensão
de nossos pré-juízos e pré-conceitos. Por exemplo: o fato de um homem tocar os
genitais de uma criança. Esse “fato” pode constituir crime? Sim, se o homem
estiver satisfazendo sua lascívia mediante a violação sexual da criança. Não,
se estivermos diante de um pai que faz a higiene de seus filhos. O problema
reside no sentido que se atribui ao fato.
No
caso do quadro apreendido, a arte não constituía um meio de exploração da
criança, mas, ao contrário, uma forma de promover a reflexão sobre determinado
o tema da pedofilia. Nesse mesmo sentido, a feliz manifestação do Ministério
Público local (ainda enquanto escrevia esta coluna), reconhecendo que a
apreensão do quadro constitui uma “agressão à arte e cultura”, uma vez que “o
propósito da artista, salvo melhor juízo, tem condão de causar uma reflexão, um
debate sobre o tema e não promover o incentivo para que crianças sejam alvos
desses crimes” (leia aqui).
Enfim,
somente o desconhecimento a respeito do caráter subversivo e reflexivo da arte,
aliado à pretensa recolonização do Direito pela Moral, pode conduzir à
tentativa de criminalização de quadros, músicas, livros e outras formas de
manifestação artística, negando, assim, a conquista civilizatória representada
pela secularização. Que tempos são estes, em que temos de defender o óbvio?, já
dizia Brecht (outro que também não escaparia em face de seus poemas eróticos).
André Karam Trindade é
doutor em Direito, professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Faculdade Guanambi (FG/BA) e advogado.
Revista Consultor
Jurídico
http://www.conjur.com.br/2017-set-16/diario-classe-criminalizacao-arte-recolonizacao-direito-moral
Nenhum comentário:
Postar um comentário