É
comum que se diga que a esquerda, ou uma certa entidade abstrata, vez por outra
alcunhada de bolivarianismo, governou o pais por treze anos.
A
bandeira do Brasil não ficou vermelha.
Nenhuma
empresa foi nacionalizada. Não houve desvio algum por meio de participação
popular – nem um mísero plebiscito nesse tempo todo. Nenhuma alteração para
aumentar mandatos próprios ou reduzir os alheios foi sequer proposta. Nenhum
instrumento de censura foi criado, nem contra a mídia partidariamente ativa.
Não houve polícia política – e se tivesse havido, certamente não seria para
sustentar o governo. Até a remuneração do sacrossanto sistema financeiro foi
mantida incólume – ou mesmo em ascensão. Nenhum torturador dos anos de chumbo,
enfim, foi preso.
O
tal bolivarianismo percorreu quatro eleições.
Em
cerca de seis meses de governo interino e tampão, a Constituição já envelheceu
vinte anos. A proteção social está sendo desfigurada por um teto orçamentário
que deve travar o futuro de toda uma geração; a educação ideologicamente
reformada por medida provisória; os longevos instrumentos de proteção da
legislação trabalhista estão com os dias contados. Na política externa, dá-se o
cavalo de pau em um transatlântico.
Para
essas mudanças, que significam uma inversão expressiva de rumo, não foi preciso
nenhuma eleição.
Só
isso seria suficiente para que o conceito de normalidade democrática ficasse
seriamente abalado. Afinal, se é possível uma mudança de tal porte sem
eleições, para que mesmo elas seriam necessárias?
Infelizmente,
o outono de nossa democracia não para por aí.
Vai
sendo sentido nas grandes decisões e também nas pequenas atitudes.
Uma
lei restringindo conteúdos que um professor pode dar em sala de aula, um
espetáculo teatral interrompido pela polícia, por desrespeito ao país, a
normalidade com que atos equiparados a tortura são admitidos como legítimos por
autoridades incumbidas de garantir direitos. O esfacelamento do direito de
greve faz par com a incessante criminalização dos movimentos sociais.
Como
é comum nas ditaduras, até os menores agentes se sentem livres para soltar as
garras de repressão. Um discurso judicial que reconhece legítima defesa no massacre,
uma recomendação-mordaça que expulsa a política de espaços universitários, o
estado de exceção admitido expressamente como fundamento para a exclusão da
legalidade.
São
pequenos estados de sítio incidentalmente declarados a cada dia.
O
superpoder geral de cautela vai se tornando álibi para a supressão de
liberdades e a solidez da cláusula pétrea desmancha no ar com a substituição de
princípios por políticas abonadas pela mais alta Corte de justiça.
O
encarceramento em massa que já fez nossa população prisional dobrar em uma
década parece não ter sido ainda suficiente para aplacar tanta ira – apesar de
combustível premium para o crescimento da própria criminalidade.
Embalado
pelo sucesso midiático, o Ministério Público Federal apresenta um pacote de
mudanças criminais que é um verdadeiro código da acusação – proposta de enorme
potencial encarcerador e de vigor político para a própria instituição,
amputando poder judicial e esmagando a defesa. Inúmeros mecanismos processuais
norte-americanos são importados com entusiasmo, sem que se alerte que o
encarceramento por lá resultou em 2,3 milhões de presos, majoritariamente
negros, além de um altíssimo investimento no sistema penitenciário de que aqui
nem se cogita.
Como
conciliar 10 medidas encarceradoras com vinte anos de teto de gastos públicos,
é uma pergunta que só faz calar.
Sim,
é verdade, nós já vivemos crise pior que essa, seja na economia, seja na
política.
Eu
nasci em plena ditadura, entre o golpe de 64 e o AI-5. Quando fiz dezoito anos,
estava nas ruas lutando por eleições diretas, que nos eram proibidas. Tínhamos
ainda o porrete do Estado sobre nossas cabeças – Brasília sitiada por tanques,
sindicalistas presos e um general no poder.
Havia,
porém, um sopro de esperança no ar. A tarde caía como um viaduto, mas o futuro
abria-se em um caminhão de perspectivas. Retomar a democracia, construir uma
sociedade solidária, reduzir a enorme desigualdade que mantinha milhões em
miséria.
Hoje
quem tem dezoito anos é minha filha e saber que amanhã vai ser outro dia só nos
remete a imagens ainda mais ameaçadoras.
Marcelo
Semer é Juiz de Direito em SP e membro da Associação Juízes para Democracia.
Junto a Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe, Patrick Mariano e Giane Ambrósio
Álvares participa da coluna Contra Correntes, que escreve todo sábado para o
Justificando.
http://jornalggn.com.br/noticia/o-outono-da-nossa-democracia-por-marcelo-semer
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