O
sociólogo português Boaventura Santos faz uma radiografia da crise política
brasileira e pede à esquerda nativa para abrir mão das diferenças
Por
Miguel Martins, em CartaCapital
Desatados
os laços coloniais, a proximidade entre Brasil e Portugal se estende para além
das velhas rotas do Atlântico.
Nas
antigas colônia e metrópole, as trajetórias republicanas são navegadas sob
tempestades que carregam ensinamentos para as duas costas do oceano.
A
onda neoliberal que atinge hoje o Brasil por meio do governo de Michel Temer
chegou como um tsunami em 2011 às terras lusitanas.
Passos
Coelho, então primeiro-ministro, tentou aprofundar as políticas de ajuste
estrutural exigidas pelo Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu
e a Comissão Europeia, mas o ímpeto dos retrocessos perdeu força diante da
resistência unificada do campo progressista em Portugal.
Baseado
nessa análise, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos espera
comportamento semelhante das esquerdas brasileiras para reagir ao que chama de
“golpe constitucional-judicial” e a retrocessos defendidos pelo atual governo.
Em
passagem pelo Brasil para o lançamento do livro “A difícil democracia”,
publicado pela editora Boitempo, o sociólogo mostra estar atento aos movimentos
do governo Temer.
Em
entrevista a CartaCapital, faz uma radiografia da crise política brasileira,
chama o congelamento de investimentos públicos por 20 anos de “escândalo
constitucional e político” e releva sua indignação com a seletividade da
Justiça.
“O
que mais custa aceitar é a participação agressiva do sistema judiciário na
concretização do golpe.”
CartaCapital:
O senhor analisa no início de “A difícil democracia” o período entre 2011 e
2013, marcados pelos movimentos Occupy nos Estados Unidos, Indignados no sul da
Europa, Primavera Árabe na Tunísia e no Egito e os protestos de junho de 2013
no Brasil. Três anos depois, o senhor aponta um desencanto nas esquerdas. A que
o senhor atribui esse desencanto?
Boaventura
de Sousa Santos: As situações foram muito diversas, nem todas permitiram uma
clara distinção entre esquerda e direita, e em cada uma atuaram fatores específicos
que condicionaram os resultados.
Temos
de distinguir entre os países que tinham uma democracia minimamente credível e
os que a não tinham. Nestes últimos, a luta era pela democracia. Só a Tunísia
teve algum êxito.
Nos
outros, a luta era por uma democracia real, ou seja, pela maior distribuição da
riqueza e pelo fim da corrupção no sistema político.
Apesar
da radicalidade dos discursos, os objetivos, quando existiam, não iam além da
renovação do sistema político e do reforço da social democracia.
Na
Espanha houve alguma renovação política através da emergência de um partido de
tipo novo, o Podemos, e de muitas associações políticas autônomas que hoje
condicionam a vida política regionalmente.
No
Brasil, a ambiguidade política dos protestos era inicialmente detectável apenas
no twitter.
O
governo não foi capaz de ler esta ambiguidade e de apoiar as demandas e forças
de esquerda.
CC:
A ascensão conservadora explica esse desencanto?
BS:
Muitas das irrupções democráticas dos últimos trinta anos ocorreram em períodos
de reforço do neoliberalismo, ou seja, da versão mais antissocial do
capitalismo.
Foi
assim nas transições da ditadura para a democracia dos anos 80 e nos protestos
de 2011, depois de a crise financeira de 2008 ter aumentado o poder global do
capital financeiro que a tinha provocado e “resolvido” a seu favor.
Enquanto
a luta pela democracia fortalecia as forças de esquerda, a aceitação da
ortodoxia neoliberal favorecia as forças de direita.
Com
o tempo, a direita, muito imaginativamente, soube controlar a pulsão
democrática a seu favor, usando para isso vários estratagemas.
No
Brasil, por exemplo, seduziu a esquerda durante treze anos para extorquir as
maiores vantagens num período de crescimento e de governos progressistas no
continente.
Quando
achou adequado, desferiu-lhe o golpe constitucional-judicial que, se não a
deixou morta, a deixou desmaiada.
CC:
Na introdução de “A difícil democracia”, o senhor afirma que os países da
América Latina e do sul da Europa tendem a ser caracterizados por grande
instabilidade política. O Brasil tem confirmado essa tese, com o traumático
impeachment de Dilma Rousseff. Qual a sua análise do processo?
BS:
Houve interrupção democrática semelhante à que tinha sido ensaiada em Honduras
e no Paraguai e, como nas anteriores, levada a cabo com a aprovação ativa dos
Estados Unidos.
Tratou-se
de uma passagem brusca e sem respaldo constitucional de uma democracia de baixa
intensidade, já que eram bem conhecidos os limites do sistema político e do
sistema eleitoral em refletir a vontade das maiorias, para uma democracia de
baixíssima intensidade, com maior distância entre o sistema político e os
cidadãos, maior agressividade dos poderes fáticos, menor proteção social das
classes mais vulneráveis, menos confiança na intervenção moderadora dos
tribunais.
No
caso do Brasil, o que mais custa a aceitar é a participação agressiva do
sistema judiciário na concretização do golpe, tendo em vista dois fatores que
constituíam a grande oportunidade histórica de o sistema judicial se afirmar
como um dos pilares mais seguros da democracia brasileira.
Por
um lado, foi durante os governos PT que o sistema judicial e de investigação
criminal recebeu o maior reforço não só financeiro como institucional.
Por
outro lado, era evidente desde o início que Dilma Rousseff não tinha cometido
qualquer crime de responsabilidade que justificasse o impedimento.
Estavam
criadas as condições para encetar uma luta veemente contra a corrupção sem
perturbar a normalidade democrática e, pelo contrário, fortalecendo a
democracia.
Por
que é que esta oportunidade foi tão grosseiramente desperdiçada?
O
sistema judicial deve uma resposta à sociedade brasileira.
CC:
O que acha das primeiras medidas de Temer no poder?
BS:
Elas não oferecem qualquer surpresa.
São
o receituário neoliberal global num contexto de declínio dos preços
internacionais das commodities e dos recursos naturais: criar novas
oportunidades de acumulação de capital através de uma nova onda de privataria,
como a que aconteceu no tempo de Fernando Henrique Cardoso, reduzir a despesa
pública, sobretudo em políticas sociais, impedir qualquer mudança no sistema
fiscal ou nas taxas de juros, aumentar a repressão quando a população acordar da orgia antipetista e
começar a ver, aturdida e chocada, o que efetivamente se passou na sua casa, na
sua saúde, na educação dos seus filhos.
Devemos
notar que a lógica da austeridade já se tinha instalado no segundo mandato de
Dilma. Mas há uma diferença qualitativa.
Com
o governo do PT essa lógica traduzia-se em algumas medidas de emergência e com
a crença equivocada de permitirem a curto prazo o regresso à normalidade de uma
governação minimamente inclusiva no plano social.
Com
o governo Temer, tais medidas, um menu imenso, são a nova normalidade.
CC:
Na terça-feira 25, a Câmara aprovou uma emenda à Constituição para congelar os
gastos públicos pelos próximos 20 anos, com profundo impacto em áreas como
saúde, educação e assistência social. Como o senhor classifica a medida?
BS:
A PEC 241 é um escândalo constitucional e político, produto de um descontrolado
fundamentalismo ideológico, desprovido de qualquer eficácia e apenas adotado
com dois objetivos de alto poder simbólico.
Primeiro,
mostrar ao povão pobre e empobrecido a impossibilidade de esperar algo do
Estado, como se ninguém pudesse lhe prometer nada para além do que a direita
está disposta a dar-lhe.
Segundo,
sublinhar com uma risada legislativa o desprezo, o revanchismo e a arrogância
com que, do alto da sua vitória, contempla a ruína da esquerda.
O
excesso desta medida, nunca adotada em qualquer país por um período de 20 anos,
deve ser visto pela esquerda como um sinal de debilidade.
CC:
Como resistir a esse retrocesso?
BS:
O caso português tem algum interesse neste contexto. Os portugueses foram
vítimas entre 2011 e 2015 de um fundamentalismo ideológico do mesmo tipo.
O
Primeiro Ministro de então, Passos Coelho, chegou a dizer que era preciso ir
mais longe nas políticas de ajuste estrutural do que a própria troika
austeritária exigia, formada pelo FMI, Banco Central Europeu e Comissão
Europeia.
O
maximalismo conservador fez soar nos partidos de esquerda um alerta que não se
ouvia há setenta anos: a arrogância da
direita ameaçava destruir tudo o que em termos de inclusão social tinha sido
democraticamente construído pelo país depois da Revolução dos Cravos de 25 de
Abril de 1974.
O
país enfrentava uma situação de fascismo social que mais tarde ou mais cedo
poderia levar ao fascismo político.
Perante
isto era preciso esquecer provisoriamente todas as diferenças ideológicas que
pudessem impedir uma aliança das forças de esquerda para pôr termo ao pesadelo
reacionário.
Assim
se construiu uma aliança de governo entre o Partido Socialista, a coligação CDU
(comunistas e verdes) e o Bloco de Esquerda.
Este
exemplo pode ajudar as forças de esquerda no Brasil, que, ao contrário de
Portugal, se inclui um forte movimento popular frentista, a esquecer as
diferenças e articular-se procurando seguir a sabedoria popular: em momentos
como este, que se vão os anéis e fiquem os dedos.
CC:
As áreas que estão mais em risco no Brasil são saúde, educação e assistência e
previdência social, que compõem o nosso Estado de bem-estar social previsto na
Constituição de 1988. Por que preservar o Estado de bem-estar social tornou-se
uma tarefa árdua?
BS:
O Estado de bem-estar consistiu no conjunto de políticas sociais através das
quais foi possível compatibilizar a pulsão de concentração da riqueza própria
do capitalismo com a pulsão de inclusão social mínima, o contrato social,
própria da democracia representativa liberal.
Tal
compatibilização tornou possível uma série de interações não-mercantis entre
cidadãos, entre elas o SUS, a educação pública, as pensões segundo o sistema de
repartição inter-geracional.
Ela
foi possível através de níveis de tributação muito altos. Depois de 1945,
alguns países chegaram a ter taxas altíssimas para os rendimentos mais
elevados.
A
partir dos anos de 1980, e perante uma crise de acumulação que tinha começado
com a primeira crise do petróleo, o neoliberalismo começou a guerra contra o
Estado de bem-estar em duas frentes.
Por
um lado, a guerra contra as políticas sociais e serviços públicos por dizerem
respeito a áreas como a saúde e a educação e as pensões onde a privatização
criaria novas áreas de investimento altamente rentáveis.
Por
outro lado, a guerra contra a tributação alta e sobretudo progressiva. Perante
a perda de recursos, os Estados tiveram que recorrer à dívida pública eufemisticamente
considerada soberana.
Os
Estados eram soberanos quando cobravam impostos mas não quando recorriam ao
crédito internacional.
Neste
último caso, estavam dependentes do capital financeiro que progressivamente se
foi tornando a força dominante do capital global. E assim surgiu o ajuste estrutural e a
certidão de óbito do Estado de bem-estar.
Ainda
há pouco tempo, o presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, um clone
da Goldman Sachs, declarou que a social democracia tinha acabado.
CC:
Há como preservar a social democracia?
Só
há futuro para o Estado de bem-estar: quando o futuro do neoliberalismo acabar.
Até
lá são possíveis atuações parciais, defensivas, nas margens do modelo
dominante, mas que significam muito precisamente para os estratos sociais que
estão nas margens, as quais não cessam de inchar.
Para
isso são precisas alianças políticas inovadoras e esclarecidas com vontade de
correr os riscos, novas formas de participação popular autônoma, novos
militantes e lideres partidários de esquerda presentes em permanência nas ruas e bairros pobres das cidades e nos campos
dos camponeses e indígenas devastados pela agroindústria e a mineração
socialmente criminosa.
Enquanto
vigorar o neoliberalismo, é exigida uma vontade revolucionária para conquistar
a mais modesta política reformista.
CC:
O senhor defende uma espécie de “divisão do trabalho do inconformismo”, na qual
haja uma articulação entre as três estratégias da esquerda: tentar melhorar o
que havia, tentar romper com o que havia e tentar não depender do que havia.
Mas as esquerdas mostram dificuldade em encontrar pontos em comum para
construir uma unidade mais sólida, não?
BS:
Historicamente, as esquerdas dividiram-se em resultado da emergência do mundo
soviético.
Organizaram-se
segundo essa divisão durante mais de setenta anos e ainda não se recompuseram
do fim desse mundo.
As
divisões existentes são em grande medida produto de inércia histórica.
Vão
ser necessárias ou inevitáveis outras divisões, mas vai ser sobretudo
necessária outra forma de afirmar, construir e consolidar divisões, uma forma
que permita uma leitura dinâmica do mundo e da sociedade concreta, que saiba
ler os sinais de perigo antes de ele ser destrutivo, que não se preocupe com
vanguardas e que cuide das retaguardas, que seja tão interpolítica e tão
intercultural como é o mundo e a sociedade, que considere que, enquanto durar o
capitalismo, nem o colonialismo nem a violência contra as mulheres acabam,
apenas se metamorfoseiam.
CC:
No Brasil, é comum a análise de que os governos do PT deixaram de lado a
formação política e cultural das classes mais baixas e focaram excessivamente
na questão material. Neste momento de crise econômica, os que ascenderam nos
últimos anos deram as costas ao partido. Por que a população mais pobre parece
rejeitar o discurso de esquerda no Brasil?
BS:
Essa análise merece uma profunda reflexão, pois tais políticas vão continuar a
ser necessárias no futuro, mas vão ter que ser desenhadas de uma maneira
totalmente diferente.
O
PT fez uma extraordinária distribuição de riqueza, paradoxalmente sem a
sociedade brasileira ter deixado de ser uma das mais desiguais do mundo.
Para
evitar o clientelismo estatal, entregou na mão da banca milhões de cidadãos de
quem se extorquiu seguros de vida, planos de poupança, consumo a crédito,
incluindo as famosas viagens de avião dos antes pés descalços.
O
enorme esforço de socialização dos brasileiros foi feito promovendo
subjetividades individualistas e antissociais.
Para
isto ajudou muito a teologia da prosperidade e a substituição paulatina da
ideia de justiça social pela de sucesso individual.
A
população brasileira não rejeita o discurso de esquerda. Pelo contrário,
aprendeu demasiado bem o discurso que a prática de esquerda lhe foi ditando.
CC:
Nas eleições municipais brasileiras realizadas em 2 de outubro, vimos uma
ascensão de nomes conservadores. São Paulo elegeu João Doria, do PSDB, um
empresário de discurso privatista, que buscou demonizar a classe política
tradicional e vangloriou-se de ser um self-made man, a exemplo do que ocorre
com Donald Trump nos Estados Unidos. A votação de Doria em regiões periféricas
de São Paulo foi muito acima do esperado. Por que os mais pobres estão
seduzidos pelo discurso da meritocracia?
BS:
Na lógica da ideologia neoliberal dominante, a política, enquanto escolha entre
opções ideológicas diferentes, tende a desaparecer.
Como
não há alternativa, os governantes não necessitam do consenso dos cidadãos,
basta-lhes a resignação.
A
democracia de baixíssima intensidade consiste na conversão de diferenças ideológicas em diferenças de
qualquer outro tipo que garantam o espetáculo da alternância.
Surgem
assim novas polarizações que se afirmam
como as duas faces do sistema neoliberal: a face do sistema e a face do
anti-sistema.
Isto
tem duas consequências. A primeira é que, como são duas faces do mesmo sistema,
os que se afirmam como anti-sistema são aqueles que mais beneficiam dele.
Por
isso, os milionários que terão sido
eleitos em grandes cidades brasileiras não terão tido dificuldade em
apresentar-se como anti-sistema.
Isto
é, os que não são profissionais da política porque têm tido dinheiro suficiente
para mandar nos profissionais da política.
A
segunda consequência é que, como a política partidária se vai degradando e, com
ela, a formação política que ela devia envolver, não são necessárias
qualificações específicas para ser dirigente político.
CC:
O culto à celebridade chegou à política?
BS:
A notoriedade pública em qualquer domínio, seja espetáculo, futebol ou cinema,
pode ser qualificação suficiente.
Não
surpreende assim que o presidente da Guatemala, Jimmy Morales, seja um antigo
comediante da televisão, que Beppe Grillo, o palhaço italiano, esteja à frente
de um partido muito dinâmico (Cinco
Stelle), ou que um homem de negócios e de showbussiness como Trump tenha
chegado onde chegou.
CC: Conversamos recentemente com Slavoy Zizek, e
ele afirmou que a esquerda precisa redescobrir “a força do Estado”. David
Harvey, por sua vez, defende um humanismo revolucionário, em que as diversas
tendências de esquerda reorganizem o trabalho de forma associativa para
construir uma economia alternativa ao capitalismo. Qual é a sua proposta para o
futuro da esquerda?
BS: A esquerda do futuro deve orientar-se pelo
lema democracia sem fim. Se a isso não quisermos chamar socialismo, não tenho
problemas.
Democracia
não apenas no sistema político, mas também nas empresas, no espaço público, nas
igrejas, nas escolas e universidades, nas famílias, no transporte e nas
relações com a natureza.
Cada
espaço requer uma forma específica de democracia, já que as formas mais
conhecidas, a representativa e a participativa, são apenas um pequeno excerto
do menu democrático.
Não
haverá democracia de alta intensidade enquanto estiverem em vigor as três
formas modernas de dominação: capitalismo, colonialismo e patriarcado.
As
três formas atuam sempre articuladamente.
Um
dos problemas da esquerda do passado foi, no seu melhor momento, centrar-se na
luta contra o capitalismo e considerar secundárias ou negligenciáveis as lutas
contra o colonialismo e o patriarcado.
Aliás,
aceitou acriticamente que o colonialismo tinha acabado com o colonialismo de
ocupação territorial estrangeira e não viu que ele continuou até hoje sob
outras formas, como racismo, xenofobia, colonialismo territorial interno,
expulsão e massacre de indígenas.
Congratulou-se com pequenas vitórias no dominio patriarcal
sem ter em conta que o capitalismo e o colonialismo não dispensam o
patriarcado.
CC:
Capitalismo, colonialismo e patriarcado tem de ser desconstruídos em conjunto?
BS:
A esquerda do passado aceitou que os movimentos sociais se dividissem entre os
que lutam contra o capitalismo, os que lutam contra o colonialismo e os que
lutam contra o patriarcado.
Por
isso, as forças da dominação estão mais unidas do que nunca, enquanto as forças
que lutam contra elas estão mais divididas do que nunca.
Alguém
pode se surpreender que, quando Michel Temer chega ao poder ilegitimamente e
forma um governo para reforçar a dominação capitalista, desapareçam do seu
ministério mulheres e afrodescendentes?
Um
dos fatores mais promissores da unidade das esquerdas vai ser a natureza, uma
vez que é nela onde mais se condensa a articulação entre capitalismo,
colonialismo e patriarcado.
O
campo da democracia no trato com a natureza é onde se verão melhor os pontos de
contacto entre a luta anti-capitalista, anti-colonialista e anti-patriarcal.
O
neoliberalismo não vê o grande objetivo de transformar o trabalho com direitos
em trabalho sem direitos separado do objetivo de expulsar os camponeses e
indígenas das suas terras ancestrais, de contaminar as águas e pulverizar
livremente com insecticida os pulmões dos trabalhadores rurais, de
sobre-explorar as mulheres com trabalho não pago e aceitar a violência contra
as mulheres como parte da subjetividade empreendedora que promove, uma
subjetividade ora exuberante com o êxito macho, ora estressada em busca de
inimigos ou de descargas emocionais fáceis.
CC:
E qual deve ser o papel do Estado para a nova esquerda?
BS:
O Estado é hoje um monstro necessário. É um monstro porque reduz toda a
diversidade econômica, social e cultural da sociedade a um modelo monocultural,
homogêneo de administração.
É
falsa a alternativa entre querer ou não querer tomar o poder do Estado, ainda
que este seja uma fração cada vez menor do poder social.
É
preciso tomar o poder para o transformar e não esperar que ele se transforme
antes que a esquerda o queira ocupar.
Mas,
para a esquerda, governar enquanto as sociedades forem capitalistas,
colonialistas e patriarcais, será sempre um exercício de contracorrente.
Não
se pode governar como a direita governa só que para outros objetivos.
Isto
significa, entre muitas outras coisas, tolerância zero face à corrupção e
reforma constitucional no sentido de criar um quarto órgão de soberania, o
controle cidadão por via da participação organizada e autônoma.
Significa
também que entre dois males se deve recusar sempre o mal menor se ele for
apresentado como o único meio de evitar o mal maior. O mal menor tende a ser a
versão em miniatura do mal maior.
CC:
Alguns consideram que um projeto de Estado não é prioritário.
BS:
Tomar ou não o poder do Estado é uma falsa alternativa, o mesmo sucede com a
alternativa entre lutas institucionais, legais, no quadro do sistema
político-jurídico existente, e extra-institucionais, ou seja, ações diretas
eventualmente ilegais mas pacíficas, isto é, eventualmente apenas contra a
propriedade, nunca contra a vida ou a integridade física.
O
esvaziamento progressivo da democracia realmente existente e o consequente
aumento do caráter repressivo do Estado e da criminalização do protesto social
vão obrigar a que muitas das lutas democráticas sejam ilegalizadas e tenham de
ocorrer fora do marco institucional.
Já
hoje, em vários países da América Latina, bloquear uma estrada para não deixar
entrar as máquinas do abate de árvores e da mineração nos territórios indígenas
ou afrodescendentes é considerado um ato terrorista.
Amanhã,
qualquer manifestação de ecologistas urbanos pode ter o mesmo destino.
Os
camponeses, os indígenas e as populações quilombolas que hoje defendem o campo
contra a exploração agressiva e sem controle dos recursos naturais estão a
defender os habitantes das cidades de amanhã.
http://www.viomundo.com.br/politica/boaventura-santos-o-que-mais-custa-a-aceitar-e-a-participacao-do-judiciario-na-concretizacao-do-golpe-perdeu-oportunidade-historica.html
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