Do
blog de Marcelo Auler, indispensável para quem ainda tenha um mínimo de
equilíbrio mental e não trate investigação e julgamento algo semelhante a um
carnaval, retiro o artigo do procurador, professor da UNB e ex-ministro da
Justiça Eugênio Aragão:
A
liturgia do cargo público não é mero exercício de vaidade e de ego. Ela é um
marco do republicanismo, que determina ser o exercício de função pública uma
atividade impessoal. Quem está investido nela não deve a enxergar como um
galardão adquirido em razão de qualidades pessoais, mas precisamente porque foi
chamado a servir ao público. A liturgia lhe serve de proteção, para qualificar
a função e não a si.
Juízes,
por exemplo, lidam diariamente com conflitos. Ao decidirem sobre uma causa,
tornam um dos litigantes vencedor e outro perdedor. Aquilo que pode significar,
para o magistrado, apenas um número em sua estatística de produção mensal, na
alma do perdedor pode ser uma catástrofe pessoal. O que o leva a não ir às vias
de fato com aquele que vê como seu malfeitor? É a aura da liturgia que inspira
o respeito necessário a criar uma barreira de blindagem relativa.
Quando,
porém, autoridades se comportam como moleques, como moleques serão tratadas. Se
adotarem discurso e comportamento de botequim, não poderão se queixar quando
começarem a voar garrafas e sopapos.
Temos
assistido quase diariamente comportamentos fora do script litúrgico por parte
de magistrados, a começar por alguns do andar de cima. Têm sido muito cúpidos
em dar entrevistas, falar fora dos autos, opinar sobre tudo e todos. Têm
adotado posturas controvertidas e, por vezes, até mesmo político-partidárias em
discursos públicos, seja nos tribunais ou fora deles.
A
desfaçatez de mudar ostensivamente de opinião, conforme o momento político e o
alvo das ações jurisdicionais, chega a causar náusea àqueles que assistem a
esse circo quase cotidiano. Esse tipo de atitude cai bem em conversa de bar,
onde a inconsequência regada a álcool tudo permite, tudo perdoa, mas não no
exercício de função pública.
Dos
magistrados se espera autocontenção e não exibicionismo. Infelizmente há, entre
nós, magistrado que se fez notório e não é um bom exemplo de autocontenção.
A
despeito de gozar de exclusividade para cuidar só de um universo de processos
supostamente conexos, decretada por seu tribunal, aparentemente em virtude de
sobrecarga que esse universo representa, esse juiz tem viajado Brasil e mundo
afora para dar palestras, receber prêmio de bom-mocismo e participar de
talk-shows.
Tem
tido tempo de sobra para difundir seu moralismo obsessivo sobre os fins da
persecução penal de “corruptos”, a ponto de virar super-herói de uma parte
desorientada da sociedade, cuja bronca turva sua visão sobre o crítico momento
político vivido pelo País. Para fugir das garrafadas e dos sopapos, anda com
séquito de seguranças e deles vive cercado no trabalho e em casa. Torna-se,
assim, personagem controvertido, agente de disseminação de incertezas, ao invés
de se limitar a oferecer segurança jurídica a seus jurisdicionados.
Isso
não é vida de juiz. Mas, ainda que não faça sentido, no sadio senso comum, essa
imagem distorcida que se oferece de um magistrado, tem sido exemplo para muitos
outros de sua corporação, que também querem compartilhar desse espaço de afago
público a egos jurisdicionais.
Para
tanto, assinam até abaixo-assinado de defesa do colega premiado de bom-mocismo,
quando se torna alvo de críticas mais ou menos acerbas. Alguns foram às
manifestações “contra a corrupção” convocadas para derrubar governo,
manifestam-se cheio de emoção em perfis de Facebook e, depois, deram provimento
liminar para impedir posse de ministro de estado.
Num
ambiente desses, a reação de veemente indignação pública do Presidente do
Senado Federal, Renan Calheiros, contra o “jabaculê” determinado nas
dependências daquela Casa Legislativa por juiz de primeiro grau de Brasília,
não deve causar surpresa.
Expressou
nada mais que seu protesto institucional contra aquilo que entendeu ser um
abuso de magistrado incompetente para tanto, pois o alvo da diligência da
polícia judiciária eram agentes da polícia legislativa que tinham procedido a
varreduras eletromagnéticas em locais de trabalho e residência de Senadores que
seriam alvos de investigação criminal.
Essas
varreduras tinham sido determinadas pela administração do Senado a pedido dos
próprios Senadores alvejados. Se as varreduras foram pedidas por estes e se
entenda que elas constituem embaraço a justiça, em tese são os Senadores objeto
da escuta ambiental que deveriam ser questionados sobre a iniciativa. Isso,
evidentemente, atrairia a competência do foro por prerrogativa de função que é
o Supremo Tribunal Federal.
Tanto
mais é surpreendente, isto sim, que a Presidente do Conselho Nacional de
Justiça vá à imprensa, não para admoestar magistrados que ultrapassam a linha
do bom senso em suas atitudes e decisões, mas para se dirigir com dedo em riste
ao Presidente do Senado Federal, com discurso não menos surpreendente de se ver
como destinatária de cada crítica que se faça em tom mais ou menos contundente
a magistrados que procedem de forma, no mínimo, controvertida.
O
Conselho Nacional de Justiça é órgão de controle externo da magistratura e tem,
também, uma atuação correcional em relação a estes. Não deve a dirigente do
órgão se confundir com aqueles que deve disciplinar, pois assim fazendo,
reforça os desvios de conduta e se porta feito porta-voz de uma corporação e não
de uma instituição.
Não
é mais novidade para ninguém que certos padrões de comportamento de elevado
risco para o governo das instituições no País têm fundo corporativo. É
mostrando os dentes que as mais poderosas categorias do serviço público se
alavancam para negociar vantagens.
Não
é à toa que suas associações de classe são recebidas nos gabinetes
parlamentares e em órgãos de gestão financeira do executivo com tapete
vermelho, água gelada e café, enquanto aos servidores comuns e mortais só resta
a via da greve e das manifestações públicas.
Não
é à toa que essas categorias musculosas estão no topo da cadeia alimentar do
Estado brasileiro, recebendo ganhos desproporcionalmente superiores a outros
servidores que exercem suas funções com igual ou maior denodo e risco pessoal
que Suas Excelências. Trata-se de grave distorção no sistema de remuneração do
setor público brasileiro, que em nada contribui para sua eficiência.
Ao
invés de querer colocar limites aos reclamos do Presidente do Senado Federal, a
Senhora Presidente do CNJ faria melhor em dar sua contribuição para a contenção
de atitudes de risco dos magistrados e buscar diálogo entre poderes para impor
ordem ao sistema remuneratório do serviço público federal.
O
melhor caminho para isso seria a desvinculação de todos os ganhos de servidores
daqueles de atores que estão em posição de puxar o trem e gastos com aumentos a
seu favor: Presidente e Vice-Presidente da República, Ministros de Estado,
Ministros do Supremo Tribunal Federal, Deputados e Senadores.
Norma
constitucional deveria vedar essa vinculação e dispor que o teto do serviço
público (excluídos o dos atores políticos mencionados) fosse estabelecido pela
Lei de Diretrizes Orçamentárias e o ganho de cada categoria devesse guardar
proporção, com base nos vetores de risco e complexidade, com as demais, de
sorte que não se admita que um general de exército ganhe brutos em torno de
14.000 reais mensais, um professor titular de universidade receba cerca de
12.000 reais, quando um jovem membro do ministério público seja remunerado com
quase 30.000 reais no mesmo período.
Para
articular essa revolução de ganhos, que seja capaz de neutralizar condutas de
risco de categorias por prestígio, é fundamental o consenso entre os poderes da
República, para constituir o SINAGEPE – Sistema Nacional de Gestão de Pessoal,
integrando os três poderes e, aos poucos, as administrações estaduais e
municipais através de matriz única de ganhos, quiçá regionalizando-a e
submetendo-a a um fundo solidário de compensação de debilidades financeiras dos
entes que compõem a Federação.
Só
assim se coloca cada agente do Estado em seu quadrado. Zela-se pelo controle
universal de gastos de pessoal e se moraliza a atuação dos diversos atores nos
três poderes de modo a se estabelecer, no Brasil, pela primeira vez, um
“Berufsbeamtentum”, um funcionalismo profissional como existe em outras
economias mais fortes deste planeta.
Por
Fernando Brito
http://www.tijolaco.com.br/blog/quando/
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