Uma
vez deflagrado o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, a
principal barreira entre opositores e apoiadores da presidente passou a ser o
Advogado-Geral da União, Luís Inácio Adams. A discussão que, a princípio, era
política, passou para o campo jurídico e a defesa foi centralizada nas mãos
dele.
A
saída de Adams do governo já começava a ser planejada, pelo menos por ele.
Pessoas próximas ao ministro diziam que, em 2016, ele entregaria o cargo que
ocupa há seis anos. Não contava, no entanto, que iria para frente uma aposta
que a própria oposição já vinha descartando, de o presidente da Câmara dos
Deputados, Eduardo Cunha, dar andamento a um pedido de impeachment.
Conhecido
como homem forte da presidente, Luís Inácio Adams afirma categoricamente que
“agora é impossível falar em sair”. Sua missão, desde a posse como advogado
público, em 1993, é defender o Estado. E, para ele, a tentativa de tirar Dilma
do cargo coloca em risco toda a estabilidade do país, pois a insatisfação de
uma parcela da sociedade passaria a ser
motivo para quebrar o rito das eleições e depor um presidente eleito pelo voto
direto. “Apontam que a presidente caiu nas pesquisas, como se dissessem que
isso fosse tão importante quanto eleição”, critica.
O
pedido de impeachment aceito por Cunha leva em conta dois pontos: o atraso no
repasse para bancos públicos de recursos utilizados pelo tesouro, chamados de
pedalada fiscal, e o desrespeito às leis orçamentárias. Segundo Luís Inácio
Adams, nenhum dos dois pontos traz a afronta à Constituição que é exigida pela
própria Carta Magna para caracterizar crime de responsabilidade da presidente,
muito menos sua deposição. Principalmente porque a cláusula que permite o
atraso no repasse aos bancos públicos sempre foi considerada legal pelo
Tribunal de Contas da União.
Nesta
terça-feira (8/12), o ministro recebeu a ConJur em seu gabinete para
entrevista. As manchetes dos jornais estampavam a carta do vice-presidente
Michel Temer criticando Dilma Rousseff — vista como uma tentativa de se
descolar do governo e acelerar o impeachment. Um chamado ao Palácio do Planalto
para audiência com a presidente e para receber o apoio de governadores que
foram a Brasília fez com que a entrevista, marcada para as 15h, tivesse início
só às 18h30. Respondendo mensagens em dois telefones celulares e parando de
tempos em tempos para atender o fixo de sua mesa, Luís Inácio Adams falou sobre
todos os aspectos da luta que vem travando para manter a presidente em seu
cargo.
Leia
a entrevista:
ConJur
— O ministro Ricardo Berzoini disse em entrevista que se o governo não
conseguir os 171 votos para impedir o impeachment na Câmara, não tem base para
governar. Isso não mostra que o governo está tratando o processo como político,
em vez de jurídico?
Luís
Inácio Adams — A disputa também é política. A gente sabe disso. Agora, o que
leva uma pessoa a votar uma posição não se resume a um apoiar ou não uma pessoa
ou um partido. A decisão exige um elemento de fundamentação, de demonstração de
conduta típica que aponte que aquela mandatária, no exercício das suas funções,
violou a Constituição, nas hipóteses presentes no texto Constitucional e na
legislação. Os parlamentares são obrigados a estarem atentos a esses elementos
jurídicos. A acusação que temos hoje parece pescaria.
ConJur
— Como assim?
Luís
Inácio Adams — A acusação tem [a compra da refinaria de] Pasadena, tem
[operação] “lava jato”, tem pedalada fiscal, mas o que é o fato que justifica o
impeachment da presidente?
ConJur
— É o atraso no repasse aos bancos?
Luís
Inácio Adams — Mas qual é o ato da presidente nesse processo todo? Qual é o ato
dela que violou a Constituição? Não tem. O Tesouro estabelece um limite
financeiro. Quem pactuou para admitir a possibilidade de atraso? O órgão. É ele
que vai fazer os pagamentos e repasses. O TCU, então, disse ter identificado
problemas e indicou 17 autoridades para responder a esse processo, para
esclarecer as questões. A presidente não está entre os 17! O TCU disse que ela
não é responsável. Agora, o Congresso diz que tem responsabilidade política,
mas não existe esse crime de responsabilidade política. A Constituição não fala
que o presidente da República responde por crime para responsabilidade política
geral da nação.
ConJur
— A insatisfação com a atuação política não serviria para o impeachment...
Luís
Inácio Adams — Do ponto de vista da política, existe espaço para questionar o
evento, dizer que a presidente não deve ser reeleita, criticá-la e fazer um
movimento no Congresso e fora dele. Outra coisa é a cassação do mandato
presidencial, com a retirada forçada de um presidente de um mandato conferido
num processo eleitoral. Não se estará simplesmente retirando uma pessoa, mas
cassando uma escolha da sociedade, dos brasileiros, que votaram nela.
ConJur
— A insatisfação apontada nas pesquisas não é o bastante?
Luís
Inácio Adams — Não se substitui uma eleição com pesquisa de popularidade.
Apontam que a presidente caiu nas pesquisas, como se dissessem que isso fosse
tão importante quanto eleição. Para que, então, gastamos bilhões de reais para
fazer uma eleição no Brasil inteiro? Bastaria então fazer uma pesquisa de boca
de urna e nossos problemas se resolveriam? Esse é o erro, a banalização. Tratam
esse processo como se fosse uma trivialidade. Não é trivial, não é uma ação
simplória. Ela tem um peso e nós temos que compreender esse peso, até para dar
o valor à decisão que for tomada. Pois temos, sim, formas sérias de retirar um
presidente do mandato.
ConJur
— E por que não tem sido tratado, na sua visão, com a seriedade merecida?
Luís
Inácio Adams — É um problema que acontece quando há, no processo de decisão, um
fator exógeno ao processo, que, no caso, é a disposição pessoal do presidente
da Câmara [Eduardo Cunha] de abrir um processo. Isso contamina o processo.
ConJur
— Mas não caberia a ele aceitar ou não aceitar o pedido de abertura de
processo?
Luís
Inácio Adams — Cabe a ele, mas por que não aceitou antes? O que ele estava
esperando? Ele disse que sabia desde de manhã, por que divulgou somente à tarde?
Não questiono o poder que ele tem na condição de presidente da Câmara. A
eletividade que exerceu no próprio processo gera um vício que contamina o
processo. A deferência institucional obriga que a decisão seja contida nos
limites que a tornem inquestionável. E isso se dá mediante um respeito a
momentos, prazos, que não contaminem a decisão. Atos e condutas que contaminam
o processo geram suspeição. Esse também foi o motivo de eu sustentar que o
ministro do TCU [Augusto Nardes] estava suspeito. Que toda a conduta dele
contamina o processo, porque fomenta um ambiente de condenação. É esse ambiente
de condenação que gera o dirigismo.
ConJur
— Que dirigismo seria esse?
Luís
Inácio Adams — Então, com todo respeito, ao ministro Luiz Fux [do STF, que
indeferiu o pedido de suspeição], a decisão não compreende esse fenômeno, se
apoia em formalidades. O devido processo legal não dá simplesmente o direito de
falar, mas o direito de ser ouvido. E isso não foi respeitado.
ConJur
— Por quê?
Luís
Inácio Adams — O juiz tem obrigação de ouvir os argumentos das partes. Não é
dar prazo para juntar uma petição nos autos e depois colocar de lado e decidir
como quer. Isso não é um processo legal, é um arremedo de processo legal.
Formalmente processual, formalmente legal, mas não é a garantia constitucional
que consta na Magna Carta. É uma grande conquista que está na substância na
materialidade, no conteúdo desse processo. E o conteúdo exige que o magistrado
tenha deferência ao argumento. Tem que observar, compreender, analisar, estudar
aquilo que está sendo dito. E, se a defesa não faz sentido, cabe a ele
rejeitar. Mas é preciso que haja deferência ao processo, que permita entender
todos os argumentos colocados.
ConJur
— O senhor acha que esse ambiente atinge todo o colegiado?
Luís
Inácio Adams — Ele surge a partir do cerco ao qual submete um colegiado. Abrir
o Judiciário para a sociedade não pode ser submeter o tribunal à pressão. Ter
manifestação de “plateia” em plenário, com vaia, não tem nada a ver com
democracia nem com Direito. Dentro do tribunal a deferência é fundamental. Se
não, exigem que o acusado se prove inocente, quando o processo exige o
contrário [, que a acusação prove a culpa do réu].
ConJur
— A presunção da inocência tem sido deixada de lado?
Luís
Inácio Adams — Nosso Direito não traz a expressão beyond reasonable doubt —
acima de qualquer dúvida. A dúvida razoável é a compreensão de que aqueles
fatos podem ser justificados de várias maneiras. Se essas dúvidas introduzem na
minha convicção uma dúvida razoável, sou obrigado a absolver. O processo de
condenação não é cartorial, mas nós, brasileiros, estamos acostumados a
sistemas cartoriais.
ConJur
— Como assim?
Luís
Inácio Adams — O sistema cartorial convive com as formas e com os processos.
Lida com volumes, formalidades, carimbos, assinaturas e petições, mas não
consegue extrair disso as pessoas e os fatos. Responde a uma espécie de
maquinário. Um exemplo é o julgamento em lista, um conceito brasileiro onde
ministros chamam centenas de processos e o julgamento é apenas dizer “deferido”
ou “indeferido”. O ministro olhou aqueles milhares de processos e chegou a uma
posição? É o cumprimento de uma etapa, um carimbo.
ConJur
— O que se coloca, muitas vezes no debate público sobre as pedaladas é que isso
já era feito em outros governos. Essa é uma defesa plausível?
Luís
Inácio Adams — Não. O argumento de defesa foi distorcido para justificar o
contra-argumento. Na verdade, o que acontece é que sempre se interpretou a
cláusula que permite as pedaladas como não violadora da Constituição. A questão
foi enfrentada e afastada. No momento que o Tribunal de Contas olhou a cláusula
e admitiu a pedalada, disse não é ilegal. Como é que podem, agora, dizer que a
pedalada é uma infração se a cláusula que dá substrato a ela — que diz que o
banco pode pagar as suas despesas com a compensação de juros — é considerada
legal?
ConJur
— É uma questão de jurisprudência, então?
Luís
Inácio Adams — Como esse contrato é considerado legal se permite o que seria
uma infração? O TCU não leu o contrato que aprovou? Em todo esse processo,
ninguém disse que o contrato está ilegal.
ConJur
— Colocam que agora é feito em maior volume...
Luís
Inácio Adams — A lei fala de operação de crédito. Operação de crédito é
operação de crédito com R$ 50 mil ou com R$ 500 milhões. O que se tem aí é
interpretação subjetiva da ideologia a
distorcer os fatos. Nesse caso, nunca se considerou infração o que está sendo
apontado agora. É a figura de linguagem da mulher meio grávida [ou está
grávida, ou não está]. Ou se permite a operação de crédito, ou não se permite.
Não existem esses limites. Se são dez dias ou cinco dias no cheque especial não
faz diferença, a operação é a mesma. Ignoram que no fim do ano a Caixa se
tornou devedora, ganhou mais do que perdeu. Parece que escolhem o que deve
entrar ou não na discussão. Por isso que a decisão durou 19 minutos, quando a
minha sustentação oral durou 20.
ConJur
— É mais rápido decidir do que defender?
Luís
Inácio Adams — É mais fácil oito ministros decidirem em 19 minutos, analisando
todos os pontos que eu defendi em 20?
ConJur
— Um Congresso que aprova centenas de leis que depois são julgadas
inconstitucionais tem condição de julgar se a pedalada fiscal afronta a
Constituição a ponto de gerar um impeachment?
Luís
Inácio Adams — A garantia da cláusula democrática é respeitar as forças
políticas representativas da sociedade na forma de um sistema representativo,
que é o Congresso. Não há uma forma alternativa.
ConJur
— Mas como esse julgamento vai ser jurídico?
Luís
Inácio Adams — É um debate que está com toda a sociedade, que se envolve no
processo e envolve também os atores do processo. E participa, provocando. Não
podemos assumir que as pessoas são exclusivamente irracionais. Toda a
racionalidade se faz presente na defesa e na acusação. E ela foi testada. O
debate foi travado no TCU. As questões foram apresentadas com racionalidade. E
as incongruências demonstraram-se consistentes, tanto que hoje tem um volume
grande de juristas que não concordam com a decisão. O debate sobre as contas
incorporou não só argumentos jurídicos, mas argumentos pensados
ideologicamente, interpretados ideologicamente. Aí entra a clausura que procura
se impor à ação do executivo, eliminando a sua discricionariedade executiva na
aplicação de políticas.
ConJur
— O que é essa clausura?
Luís
Inácio Adams — É uma clausura que está construída em cima de uma ideologia.
Coloca-se que a única coisa importante é meta fiscal. Não importa que as
pessoas morram nos hospitais. Não importa que suspendam o Bolsa Família ou
investimentos do Estado. Essa clausura que se criou não é o sistema correto.
Esse debate não se encerrou. Ele está acontecendo no processo de impeachment,
na discussão das contas... E vai acontecer nos estados, porque os governadores
sabem que vai repercutir com eles. Eu sempre defendi, por exemplo, que esse
relacionamento do sistema financeiro público fosse algo mais objetivo, mais controlado.
Hoje tem uma flexibilidade perniciosa, que é a de não pagar. Essa capacidade do
Estado tem que ter limites.
ConJur
— Houve uma reunião do governo com 36 grandes nomes do Direito, que entregaram
10 pareceres contra o impeachment. Como vai ser organizada a defesa?
Luís
Inácio Adams —Estou centralizando na AGU. A ideia é sistematizar os argumentos,
juntando todos os pareceres. Eles trouxeram elementos diferenciados. Por
exemplo, o parecer do Heleno Torres fala da necessidade da demonstração do dano
e da ideia do saneamento decorrente da manifestação subsequente do Congresso,
sanando possíveis infrações. A mudança da meta fiscal tem um efeito jurídico de
sanear eventuais situações que estejam em desacordo com essa nova meta. A Rosa
Maria Cardoso da Cunha fala da ideia da necessidade e da concorrência entre
princípios constitucionais diferenciados e princípios orçamentários.
ConJur
— O orçamento seria um “princípio menor”?
Luís
Inácio Adams — São princípios concorrentes. O próprio Supremo veio estabelecer
um precedente importante, ao julgar a questão prisional. A cláusula de
contingenciamento não subordina, por exemplo, a questão prisional. Assim, a
corte excluiu o Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) da abrangência dessa lei.
Não existe dispositivo nenhum na lei. É uma interpretação constitucional de que
a dignidade da pessoa humana associada à questão prisional impõe a
impossibilidade de contingenciamento. Existem valores e cláusulas
constitucionais, que, de certa maneira, concorrem e limitam essas clausulas. Eu
acho que existe o debate de criminalizar as políticas corretas do governo. No
fim das contas, buscam inviabilizar ou criticar o Bolsa Família, o Minha Casa,
Minha Vida e as políticas de investimento. Que são as políticas corretas de
governo.
ConJur
— Até que ponto, ao atuar no caso do impeachment, a AGU faz uma defesa de
governo e não do Estado?
Luís
Inácio Adams — Em hipótese nenhuma. Presidente é uma instituição, a AGU
participa da defesa de órgãos de instituições do Estado. A presidente da República
é uma instituição. Essa simplificação que se faz em relação às instituições é
uma amostra e um exercício de manipulação de um conceito que procura expurgar a
instituição num papel que é essencial: defesa. Falam como se o governo não
fosse um elemento essencial do Estado. É a tradição e a experiência que afirmam
ou não independências. Ter que provar que sou independente é uma fragilidade.
Quando um juiz fala, como eu já ouvi falar, que não pode “votar contra o povo”,
não é independência, é insubordinação. Não tem capacidade de juízo, vai decidir
de acordo com o resultado das pesquisas de opinião. O exercício da
independência é a capacidade de afirmar a sua convicção. E isso só existe pelos
fatos, pela realidade. Quando a presidente vetou a questão dos royalties do
petróleo, eu apoiei. Quando o Congresso derrubou o veto, eu sustentei a posição
do Congresso, porque minha competência constitucional me obriga a isso e minha
diretriz de trabalho é essa.
ConJur
— Como está a presidente?
Luís
Inácio Adams — Ela está bem. Tem pessoas que crescem na adversidade, entendeu.
A maresia mata. Na adversidade, no enfrentamento, ela cresce, ganha disposição.
Ela tem essa característica capacidade de enfrentamento.
ConJur
— O senhor acha que os deputados vão abrir mão do recesso para agilizar a
decisão sobre impeachment?
Luís
Inácio Adams — Defendo que a responsabilidade do país exige que não haja
recesso. Isso mostra o grau de responsabilidade. Colocar o país na perspectiva
da cassação do mandatário e, na sequência, paralisar o processo para jogar com
os tempos e oportunidades é manipulação.
ConJur
— O que podem os advogados fazer para contribuir com a melhoria desse cenário
de instabilidade que vivemos?
Luís
Inácio Adams — Nós temos que construir mais padrões de legalidade. Avançamos
muito no Direito Constitucional, mas nós estamos perdidos no ponto de vista de
alguns parâmetros de objetivos e limites. Fundamentalmente dentro do próprio
Estado. Ao Estado e aos agentes têm que ser impostas condutas, regras de
compliance e de comportamento. Seja do sistema tributário, seja na
administração pública, nas ações de controle e administração... O Estado
incorpora e mantém uma natureza inquisitorial muito forte, a lógica do devido
processo legal aplicado ao sistema administrativo ainda é muito frágil. E isso
vale para todos. O advogado tem uma responsabilidade, porque ele é o portador
desse contraditório, ele é o portador da pretensão de ser ouvido, de falar e
ser compreendido. Acho corretíssimo o novo Código de Processo Civil obrigar o
juiz a fundamentar e analisar os argumentos da parte. Ele tem que responder
sobre o que está sendo provocado, mesmo para dizer que é um absurdo.
Por
Marcos de Vasconcellos
Jorge
André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS
http://www.conjur.com.br/2015-dez-09/entrevista-luis-inacio-adams-advogado-geral-uniao

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