O
Partido Comunista Brasileiro foi fundado em Março de 1922, numa reunião em
Niterói. Valerio Arcary analisa como, apesar das crises e erros táticos, o
partido conseguiu ter um peso social, político e cultural na sociedade
brasileira muito maior que seus pares na Argentina e México - e por que seus
quadros foram militantes da mais elevada estatura, cruciais nas lutas populares
e democráticas do século XX.
É
razoável duvidar que, em uma história política de cem anos, ainda haja algo
significativo a ser desvendado, ou que nos provoque alguma surpresa. No
entanto, mesmo para aqueles que já têm uma opinião formada sobre a trajetória
do Partido Comunista, seja ela neutra, favorável ou crítica, a verdade é que a
celebração do aniversário é um convite para considerar novas hipóteses.
Na
longa marcha do partido, que foi fundado em 1922, há lugar para muito respeito,
sincera admiração, polêmicas inevitáveis, e até um pouco de espanto, e outro
tanto de assombro. Os interessados descubrirão que ainda há muito por revelar
e, portanto, refletir sobre o que foi, e no que se transformaram as correntes
herdeiras do Partido Comunista.
Estudar
a história do comunismo no Brasil é tema imprescindível. Trata-se de um desafio
intelectual dos mais complexos. Porque, embora tenha havido uma investigação
séria, ainda permanece ainda pouco pesquisada, explorada, explicada. Mas é
também um imperativo político, em especial, para a nova geração da esquerda
brasileira que chegou à vida adulta depois de 2013, e se forjou na luta contra
Bolsonaro.
Entre a glória e o
infortúnio
Análises
históricas buscam o sentido das proporções. Se isso não é fácil decifrar o que
aconteceu entre a fundação em 1922 e a reorganização em 1942, oitenta anos
atrás, ou entre 1942 e 1964, quando o Partido Comunista alcançou o auge de sua
influência, é ainda mais difícil para as duas etapas seguintes, o período da
ditadura até a ruptura de Luís Carlos Prestes, e a última etapa que coincide
com o período mais longo da democracia-liberal no Brasil. Desemaranhar o que
ocorreu é descobrir o por quê. Foi uma história que uniu heroísmo e tragédia.
Os militantes comunistas uniram, como nenhum outro do seu tempo, glória e
infortúnio.
As
vicissitudes das táticas merecem ser explicadas pelos impasses da estratégia.
Ao longo de cem anos, cinco gerações de quadros lutaram sob a bandeira da
revolução brasileira e foram derrotados. Mas as derrotas não diminuem o
tamanho, na dimensão humana, dos personagens principais, os “quadros” em nosso
jargão que, apesar de suas fragilidades e erros, aparecem engrandecidos, em
perspective histórica, pela sua abnegação militante. Eles foram mulheres e dos
homens da mais elevada estatura moral e intelectual que participaram das lutas
populares no Brasil do século XX. Eles viveram uma época extraordinária, e
foram capazes de feitos extraordinários.
Alguns
deles foram homens de ação, dirigentes de greves e de campanhas políticas nas
ruas. Outros foram organizadores de partido dedicados à formação dos militantes
e à construção interna. E houve ainda aqueles que assumiram tarefas
intelectuais complexas. Muitos foram levados às prisões sob os diferentes
regimes políticos que o país conheceu entre os anos vinte e os anos setenta.
Dirigiram sindicatos, associações de bairros, organizações camponesas.
Trabalharam, discretamente, na legalidade, e mergulharam na clandestinidade
quando se viram obrigados. Resistiram às desmoralizações que vieram com as
prisões, cisões e exílios. Fizeram história. Mas, foram, politicamente,
derrotados.
O partido, as crises e suas
ramificações
Permanecem
vivas as controvérsias de critérios para a apreciação histórica dos partidos
políticos. Partidos podem ser julgados pelo programa que apresentam para a
transformação da sociedade. Ou podem ser explicados pela história de suas
linhas políticas, e de suas lutas políticas, sobretudo, as internas; pelo
confronto entre suas posições quando estão na oposição, e quando se aproximaram
do poder; ou até pelos valores e ideias que inspiram sua identidade; pela
composição social de seus membros – militantes ou simpatizantes – ou dos seus
eleitores, ou da sua direção; pelo regime interno do seu funcionamento; pelas
formas de seu financiamento; ou pelas suas relações internacionais. Todos estes
critérios são válidos e significativos, e a construção de uma síntese exige uma
apreciação da sua dinâmica de evolução. Só não se pode é julgar um partido por
aquilo que ele pensa sobre si próprio.
Para
aqueles que usam o marxismo como método de análise das relações sociais e
políticas, todos estes elementos são significativos, mas uma caracterização de
classe é, finalmente, inescapável. O Partido Comunista foi, durante sessenta
anos, entre 1922 e 1982, o principal partido da esquerda brasileira: o mais
influente na classe operária, o mais ramificado em escala nacional, o mais
forte na intelectualidade e o maior na institucionalidade.
Mas,
como tudo que existe, os partidos se transformam, e a narrativa dessas mudanças
é o cerne da investigação histórica. Quando a história se resigna a procurar um
fio de permanência nas organizações político-sociais ela renuncia ao seu maior
desafio. Não é razoável que, qualquer uma das organizações que celebram o
partido que nasceu em 1922, reivindique, exclusivamente, para si a continuidade
direta da reunião de Niterói. Além do PCdB e PCB, que mantém uma identidade
clara, há comunistas no PSOL e, também, em todas as organizações que se
reconhecem como herdeiras da revolução de Outubro.
Acontece
que as mudanças não são possíveis sem crises. O PCB conheceu em sua longa
história cinco crises devastadoras. Foram períodos dramáticos. O elemento comum
a essas cinco grandes crises foi que o PCB quase desapareceu nas quatro
primeiras, para ressurgir em imprevistas reorganizações e, finalmente,
sucumbir, irremediavelmente, na última. Recuperou-se das primeiras quatro
grandes crises da sua história, mas o fez deixando de ser o que era, porque se
transformou de tal forma que reapareceu quase irreconhecível.
A
primeira e menos estudada foi a crise da fase da sua stalinização no final dos
anos vinte e início dos anos trinta, um processo que consumiu várias rupturas,
as principais delas dirigidas por Mário Pedrosa e Hermínio Sacchetta que deram
origem à Quarta Internacional no Brasil. A segunda foi a provocada pela derrota
da insurgência militar de 1935 quando parecia ter sido eliminado pela repressão
implacável, e saiu da mais estrita clandestinidade para se transformar, quase
da noite para o dia, em um dos maiores partidos comunistas da América do Sul.
A
terceira foi a crise aberta após o golpe de 1964 e a consolidação da ditadura
militar, quando o duplo impacto da derrota diante da contrarrevolução no Brasil
e da vitória da Revolução Cubana, provocou uma explosão do Comitê Central que
tinha resistido à cisão alinhada, após alguns anos com a corrente internacional
pró-chinesa/albanesa que originou o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), sob a
liderança de João Amazonas, Pedro Pomar e Arruda Câmara.
A
quarta foi a incrível ruptura com Luís Carlos Prestes, a principal liderança
histórica, durante meio século. A última foi a crise final, aquela que se abriu
após 1989/1991, quando da derrubada do regime burocrático na ex-URSS, quando a
restauração capitalista conduzida por uma fração dirigente do próprio Partido
Comunista, chefiada pro Gorbatechev, precipitou a desagregação internacional
dos partidos até então associados a Moscou.
Ziguezagues e fragmentações
A
desqualificação do papel histórico que as organizações sindicais e políticas
dos trabalhadores e das massas populares tiveram na história do país é um
capítulo da batalha ideológica dos nossos tempos. Ao escrever sobre as lutas do
passado, os historiadores estão, conscientemente ou não, envolvidos nos
combates do presente. O peso social, político, ideológico e até cultural que o
Partido Comunista teve na sociedade brasileira foi, proporcionalmente, muito
maior que o peso dos Partidos Comunistas na Argentina e no México, os outros
dois países chaves da América Latina.
Mas
há um paradoxo na historiografia disponível sobre a história do Partido
Comunista. Tanto aquela simpatizante do PCB, quanto a que lhe foi adversa, coincidiram
em identificá-lo como um partido marxista-revolucionário, o que é insensato.
Nos anos trinta, o Partido Comunista de Luís Carlos Prestes já não era o mesmo
partido de Astrogildo Pereira dos anos vinte. A pesquisa rigorosa nos apresenta
a história errática da evolução das orientações políticas do PCB, que oscilou
da formação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), como Frente Nacional
Democrática para a insurreição militar de 1935, da tática da União Nacional
antifascista contra o governo Vargas para o queremismo de apoio a Getúlio em
1945. O PCB oscilou de uma posição sectária diante de Vargas depois da eleição
de 1950 para um papel auxiliar da corrente nacional-desenvolvimentista durante
o governo Juscelino e Jango. O PCB foi incapaz de compreender que, a partir das
greves de trabalhadores de 1978/79 e o surgimento do PT, era possível derrotar
a ditadura nas mobilizações de massas nas ruas, insistindo no seguidismo da
liderança burguesa liberal do MDB que culminou com a eleição de Tancredo no Colégio
Eleitoral da ditadura em 1985.
Somente
contextualizando as flutuações da linha do PCB nos marcos das suas relações com
Moscou, do blanquismo tardio do terceiro período ao seguidismo diante de
Getúlio, da impotência diante da preparação do golpe contrarrevolucionário de
1964 ao sectarismo diante da formação do PT, da capitulação diante de Tancredo
e apoio ao governo Sarney à dissolução de sua maioria em um partido de aluguel
que se transformou em satélite do PSDB, o maior partido burguês liberal das ultimas
décadas.
Os
estonteantes ziguezagues da política do PCB ainda exigem uma explicação
histórica. A principal razão para essa ausência repousou na dificuldade de
compreensão do que foi o stalinismo. O stalinismo emergiu nos anos vinte como
um fenômeno histórico novo, e tudo o que é, historicamente, original é, para os
seus contemporâneos, mais difícil de explicar. A distância de cem anos nos
oferece uma vantagem de perspectiva que pode, também, nos enganar.
A
principal singularidade do stalinismo é que ele não foi uma doutrina, nem muito
menos uma política. O stalinismo mudou tantas vezes de política, e abraçou
orientações tão diversas e realizou giros tão espetaculares, que os esforços de
encontrar coerência interna na evolução das idéias que saíam de Moscou para
conduzir a III Internacional e, depois do fim da segunda guerra mundial, a
corrente internacional sob sua influência, frustraram a maioria dos seus
estudiosos, fossem eles simpáticos ou avessos aos destinos do regime no poder
na União Soviética.
Programaticamente,
o stalinismo foi a ideologia nacionalista de um Estado controlado por um
aparelho burocrático gigantesco, os pelo menos 5 milhões de funcionários que
compunham a denominada nomenklatura, ou seja, o contrário do internacionalismo.
Quando a liderança de Stálin à frente da URSS girou da defesa da orientação da
Frente Populares contra o fascismo para o Pacto Molotov/Ribbentrop – ao mesmo
tempo em que, entre 1936 e 1939, os Processos de Moscou liquidavam fisicamente
o que ainda existia de bolcheviques dentro do Partido – os partidos comunistas
no Ocidente foram colocados diante do desafio de justificar o inexplicável.
Quando Gorbatchev iniciou a restauração capitalista com a Perestroika, de novo,
o inimaginável aconteceu, e foi com a mesma paixão que muitos o defenderam.
Mas
é possível sentir orgulho da história dos comunistas brasileiros, e abraçar a
paixão que os levou a sacrifícios gigantes e, ao mesmo tempo, aprender com seus
erros.
Sobre os autores
VALERIO ARCARY
é historiador, militante do PSOL (Resistência) e autor do livro "O Martelo da História. Ensaios sobre urgência da revolução contemporânea"(Sundermann, 2016).
https://jacobin.com.br/2022/03/entre-o-heroismo-e-a-tragedia-os-100-anos-do-partido-comunista/
VALERIO ARCARY
é historiador, militante do PSOL (Resistência) e autor do livro "O Martelo da História. Ensaios sobre urgência da revolução contemporânea"(Sundermann, 2016).
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