Sarah Bernhardt foi a judia francesa considerada, na
transição para o século XX, como "a mais famosa atriz de toda a
história". E a casa teatral em que a genial Bernhardt mais se apresentara
ganhou seu nome, quando da morte prematura em 1923.
Em junho de 1940, os alemães de Hitler invadiram e
ocuparam a França. O velho Marechal Pétain assinou o acordo de rendição. Parte
da França seria administrada por um governo fantoche, estabelecido ao sul, na
cidade de Vichy.
Por ocasião do acordo assentou-se que todos os judeus
franceses seriam entregues à Alemanha. E a Terceira República Francesa foi
extinta. Pétain promulgou decretos que suspendiam a Constituição da Terceira
República Francesa de 1875, transferindo ao mesmo tempo todo o poder para si
próprio.
Liberdade, Igualdade e Fraternidade, lema nacional desde a
Grande Revolução de 1789, foi substituído por Trabalho, Família, Pátria e Deus,
acima de todos.
Pétain era, pelos direitistas e entreguistas chamado de “o
salvador da Pátria” e ele se propunha a “uma nova revolução francesa”. Um de
seus maiores sustentáculos era hierarquia da Igreja Católica, que apregoava o
espírito de resignação e obediência ao invasor. Um novo país seria agraciado com
uma nova aliança com “O Deus da História”.
Enquanto isso o povo francês deveria pagar pelos vícios da
democracia derrubada, que haviam impedido uma aliança política com Hitler antes
da guerra. “Vós pagais culpas que não são vossas, é uma dura lei que é preciso
aceitar e compreender, antes de sofrer e se revoltar”, disse Pétein. As culpas
coletivas alvo dos fascistas e da Igreja estavam na individualidade, na
rebeldia juvenil, na dita libertinagem sexual, no convívio com os judeus e no
perigo vermelho representado pela convivência com as esquerdas.
Para zelar pela Nova Ordem, Pétein nomeou Joseph Darnand
como chefe da Milícia (Vichy Milice), a polícia em tempo de guerra contra a
própria população francesa. Feito oficial da SS, o francês, amigo de Pétain,
jurou lealdade a Hitler. Foram a forças milicianas as principais responsáveis
pela repressão à resistência francesa e aos maquis e ainda por executar as leis
raciais alemãs. Elas eram, na expressão de Camus, ainda mais violentas,
sanguinárias e acanalhadas que as próprias SS nazistas.
Graças ao seu nome judeu, o Teatro Sarah Bernhardt foi
rebatizado pelo Governo de Vichy como o Thèatre de la Cité. E lá foi protagonizada pela primeira vez a
peça teatral “Les Mouches”, “As Moscas”, de Sartre, em junho de 1943.
O que até hoje causa perplexidade é o fato de a peça ter
sido submetida à censura, e os nazistas franceses não haverem se dado conta que
ela era um grito de revolta contra os impostores e um grito que pugnava pela
violência contra os traidores da França.
A peça teatral é uma releitura da “Orestíada” de Ésquilo,
a tragédia grega em que Orestes, guiado por Apolo, retorna ao lar paterno e
encontra sua irmã Electra feita serva do poder reinante, comandado este por sua
própria mãe, Clitemnestra e por Egisto, seu amante, ambos assassinos do pai dos
jovens, o herói de tomada de Troia, Agamêmnon. Orestes toma, então, sob
orientação apolínea a decisão de matar Egisto e a própria mãe como vingança.
Muito bem, na peça de Sartre, Orestes não é guiado pela
justiça de deus algum, mas encontrará o céu da cidade de Argos tomado por
moscas sanguinárias. A Argos que Orestes e seu Guia encontram é um cenário
físico e humano desolador. Moscas por toda parte, uma estátua horrenda e
ensanguentada de Júpiter e habitantes esmagados pelo medo e pelo arrependimento
compulsivo.
Argos é a França “sob as botas nazistas”, um grande
cadáver coletivo, um país calado pelas armas e pelo remorso compulsivo; um país
e um povo que tiveram a autonomia e o futuro sequestrados, calado, “morto”, dominado
por outros.
O principal inimigo de Sartre em “As Moscas” é o
catolicismo da Igreja colaboracionista com os invasores. Resistir é
primeiramente resistir às ideias que fundam a colaboração. Resistir também era
agir sem remorsos, assumindo a responsabilidade até pelas consequências mais
danosas dessa ação.
Egisto, o usurpador de Ésquilo, é o Ocupante Alemão;
Clitemnestra, a traidora colaboracionista, coautora da falsa religião do
remorso. Júpiter, por sua vez, representa o braço eclesiástico da opressão de
Vichy, o senhor das moscas sugadoras de sangue.
Orestes é o resistente, o homem comum que “decide” ser
herói, desafiando todos os vínculos com a ordem estabelecida. Ele assassina os
assassinos. Electra, sua irmã, também é uma revoltada, mas que não consegue ir
até às últimas consequências para enfrentar um inimigo mortal. Seu ódio é
apenas passivo, estéril e vulnerável.
Mas o povo aglomera-se na entrada do Palácio e hipnotizado
pela servidão voluntária quer por as mãos no assassino do Rei Egisto. Júpiter
intervém e oferece a Orestes o reinado e a própria liberdade, o que este
recusa. Orestes, entretanto, consegue escapar à turba e dá um adeus a Argos e
levando consigo as moscas.
Ele sinaliza um caminho, o da revolta e libertação. Ao
mesmo tempo, deixa claro que a libertação é tarefa de cada um e de uma toda a
coletividade. O contraponto é o servilismo ou a covardia.
Júpiter também deixa a cena, “pois os deuses nada podem
contra o ser humano que se descobriu livre.”
Depois da libertação da França, Sartre diria que “As
Moscas” é uma tragédia da liberdade em oposição à tragédia da fatalidade. “Se
há fatalidade na condição humana esta é a própria liberdade”.
E o homem livre fatalmente contaminará a si mesmos e aos
próximos, pois a epidemia da liberdade é o incêndio que corrói a ordem, arruína
o discurso da ordem autoritária, e mesmo que disseminando o desespero, permite
o renascimento do homem.
Encerramos com o belíssimo depoimento do filósofo e
psicanalista Gilles Deleuze, para quem o “As Moscas” jamais cairão no vazio:
“Tristeza de gerações sem mestres... nossos mestres não
são somente os professores públicos de nossa infância e juventude. No momento
em que alcançamos a idade adulta, nossos mestres são aqueles que nos
impressionam com uma nova radicalidade. Sartre foi isto para nós, para a
geração pós Libertação. Quem nos ensinou novas maneiras de pensar? As primeiras
representações de ‘’As Moscas”, a publicação de “O Ser e o Nada”, a conferência
“O Existencialismo é um humanismo? Ali aprendíamos a identidade do pensamento e
da liberdade.”
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