sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

“AS MOSCAS” DE SARTRE NA FRANÇA SUBMETIDA. Carlos Russo Jr

Sarah Bernhardt foi a judia francesa considerada, na transição para o século XX, como "a mais famosa atriz de toda a história". E a casa teatral em que a genial Bernhardt mais se apresentara ganhou seu nome, quando da morte prematura em 1923.

Em junho de 1940, os alemães de Hitler invadiram e ocuparam a França. O velho Marechal Pétain assinou o acordo de rendição. Parte da França seria administrada por um governo fantoche, estabelecido ao sul, na cidade de Vichy.

Por ocasião do acordo assentou-se que todos os judeus franceses seriam entregues à Alemanha. E a Terceira República Francesa foi extinta. Pétain promulgou decretos que suspendiam a Constituição da Terceira República Francesa de 1875, transferindo ao mesmo tempo todo o poder para si próprio.

Liberdade, Igualdade e Fraternidade, lema nacional desde a Grande Revolução de 1789, foi substituído por Trabalho, Família, Pátria e Deus, acima de todos.

Pétain era, pelos direitistas e entreguistas chamado de “o salvador da Pátria” e ele se propunha a “uma nova revolução francesa”. Um de seus maiores sustentáculos era hierarquia da Igreja Católica, que apregoava o espírito de resignação e obediência ao invasor. Um novo país seria agraciado com uma nova aliança com “O Deus da História”.

Enquanto isso o povo francês deveria pagar pelos vícios da democracia derrubada, que haviam impedido uma aliança política com Hitler antes da guerra. “Vós pagais culpas que não são vossas, é uma dura lei que é preciso aceitar e compreender, antes de sofrer e se revoltar”, disse Pétein. As culpas coletivas alvo dos fascistas e da Igreja estavam na individualidade, na rebeldia juvenil, na dita libertinagem sexual, no convívio com os judeus e no perigo vermelho representado pela convivência com as esquerdas.

Para zelar pela Nova Ordem, Pétein nomeou Joseph Darnand como chefe da Milícia (Vichy Milice), a polícia em tempo de guerra contra a própria população francesa. Feito oficial da SS, o francês, amigo de Pétain, jurou lealdade a Hitler. Foram a forças milicianas as principais responsáveis pela repressão à resistência francesa e aos maquis e ainda por executar as leis raciais alemãs. Elas eram, na expressão de Camus, ainda mais violentas, sanguinárias e acanalhadas que as próprias SS nazistas.

Graças ao seu nome judeu, o Teatro Sarah Bernhardt foi rebatizado pelo Governo de Vichy como o Thèatre de la Cité.  E lá foi protagonizada pela primeira vez a peça teatral “Les Mouches”, “As Moscas”, de Sartre, em junho de 1943.

O que até hoje causa perplexidade é o fato de a peça ter sido submetida à censura, e os nazistas franceses não haverem se dado conta que ela era um grito de revolta contra os impostores e um grito que pugnava pela violência contra os traidores da França.

A peça teatral é uma releitura da “Orestíada” de Ésquilo, a tragédia grega em que Orestes, guiado por Apolo, retorna ao lar paterno e encontra sua irmã Electra feita serva do poder reinante, comandado este por sua própria mãe, Clitemnestra e por Egisto, seu amante, ambos assassinos do pai dos jovens, o herói de tomada de Troia, Agamêmnon. Orestes toma, então, sob orientação apolínea a decisão de matar Egisto e a própria mãe como vingança.

Muito bem, na peça de Sartre, Orestes não é guiado pela justiça de deus algum, mas encontrará o céu da cidade de Argos tomado por moscas sanguinárias. A Argos que Orestes e seu Guia encontram é um cenário físico e humano desolador. Moscas por toda parte, uma estátua horrenda e ensanguentada de Júpiter e habitantes esmagados pelo medo e pelo arrependimento compulsivo.

Argos é a França “sob as botas nazistas”, um grande cadáver coletivo, um país calado pelas armas e pelo remorso compulsivo; um país e um povo que tiveram a autonomia e o futuro sequestrados, calado, “morto”, dominado por outros.

O principal inimigo de Sartre em “As Moscas” é o catolicismo da Igreja colaboracionista com os invasores. Resistir é primeiramente resistir às ideias que fundam a colaboração. Resistir também era agir sem remorsos, assumindo a responsabilidade até pelas consequências mais danosas dessa ação.

Egisto, o usurpador de Ésquilo, é o Ocupante Alemão; Clitemnestra, a traidora colaboracionista, coautora da falsa religião do remorso. Júpiter, por sua vez, representa o braço eclesiástico da opressão de Vichy, o senhor das moscas sugadoras de sangue.

Orestes é o resistente, o homem comum que “decide” ser herói, desafiando todos os vínculos com a ordem estabelecida. Ele assassina os assassinos. Electra, sua irmã, também é uma revoltada, mas que não consegue ir até às últimas consequências para enfrentar um inimigo mortal. Seu ódio é apenas passivo, estéril e vulnerável.

Mas o povo aglomera-se na entrada do Palácio e hipnotizado pela servidão voluntária quer por as mãos no assassino do Rei Egisto. Júpiter intervém e oferece a Orestes o reinado e a própria liberdade, o que este recusa. Orestes, entretanto, consegue escapar à turba e dá um adeus a Argos e levando consigo as moscas.

Ele sinaliza um caminho, o da revolta e libertação. Ao mesmo tempo, deixa claro que a libertação é tarefa de cada um e de uma toda a coletividade. O contraponto é o servilismo ou a covardia.

Júpiter também deixa a cena, “pois os deuses nada podem contra o ser humano que se descobriu livre.”

Depois da libertação da França, Sartre diria que “As Moscas” é uma tragédia da liberdade em oposição à tragédia da fatalidade. “Se há fatalidade na condição humana esta é a própria liberdade”.

E o homem livre fatalmente contaminará a si mesmos e aos próximos, pois a epidemia da liberdade é o incêndio que corrói a ordem, arruína o discurso da ordem autoritária, e mesmo que disseminando o desespero, permite o renascimento do homem.

Encerramos com o belíssimo depoimento do filósofo e psicanalista Gilles Deleuze, para quem o “As Moscas” jamais cairão no vazio:

“Tristeza de gerações sem mestres... nossos mestres não são somente os professores públicos de nossa infância e juventude. No momento em que alcançamos a idade adulta, nossos mestres são aqueles que nos impressionam com uma nova radicalidade. Sartre foi isto para nós, para a geração pós Libertação. Quem nos ensinou novas maneiras de pensar? As primeiras representações de ‘’As Moscas”, a publicação de “O Ser e o Nada”, a conferência “O Existencialismo é um humanismo? Ali aprendíamos a identidade do pensamento e da liberdade.”

https://www.proust.com.br/post/as-moscas-de-sartre-na-fran%C3%A7a-submetida

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