Uma vertente
consumista, já abraçada por grandes corporações, nada diz sobre a desigualdade
e exploração. Mas o veganismo ético propõe novas relações com a natureza e
entre os seres humanos. O primeiro contradiz e sabota o segundo
O
Veganuary, janeiro vegano, de 2020 foi, em diversos países do mundo, o maior de
todos os tempos. No Reino Unido, por exemplo, mais de 250 mil pessoas haviam
prometido ser veganas em janeiro de 2019. Neste ano, os números são ainda
maiores. Não é tendência passageira. Mais de 800 mil pessoas deixaram de comer
produtos animais no país, no ano passado, e uma parcela ainda maior da
população – em torno de 6%, ou 3,5 milhões de pessoas – identificam a si mesmas
como veganas.
Esta
mudança de dieta reflete uma preocupação cada vez mais popular sobre a
necessidade de sistemas alimentares que melhorem a saúde humana e o bem-estar
animal, sem destruir o planeta. É particularmente difundida entre os jovens,
que tendem a ser mais politicamente ativos e preocupados com a crise climática
global que as gerações anteriores.
Embora o
veganismo seja frequentemente apresentado, na mídia mainstream como mais um
comportamento de moda, a realidade é que ele compreende duas abordagens
distintas sobre nosso lugar no mundo.
Por um
lado, ele é big business – como mostram o hambúrguer vegano “rebelde” do Burger
King e a rápida expansão de substitutos de carne nas redes de varejo. O
veganismo consumista apela ao individualismo e a uma fé no poder dos mercados
capitalistas. Segundo esta perspectiva, se um número suficiente de pessoas
mudar para dietas baseadas em vegetais, os mecanismos de mercado produzirão
saídas ambientalmente saudáveis.
Por outro
lado, uma política vegana mais radical está chegando às manchetes. É o que
mostra a vitória judicial de Jordi Casamitjana, trabalhador inglês demitido da
Liga Contra os Esportes Cruéis após revelar que a empresa investia em fundos de
aposentadoria envolvidos em testes com animais.
Casamitjana
argumentou ter sido discriminado em seu local de trabalho devido a sua postura
de ética vegana. Como vegano, ele mantém uma dieta baseada em vegetais. No
entanto como ético vegano, ele também busca evitar contato com qualquer produto
derivado da exploração animal, ou capaz de provocá-la. O tribunal julgou que o
veganismo ético é uma postura filosófica protegida por lei contra
discriminação.
Outro
exemplo é a petição massiva para que a Sociedade Vegana classifique o óleo de
palma [ou óleo dendê] como um produto não vegano. Segundo o Greenpeace, a
produção do óleo da palma na Ásia destruiu, nos últimos três anos, uma área de
floresta tropical quase duas vezes maior que Singapura, colocando o orangotango
e outras espécies à beira da extinção
A
produção de óleo de palma é talvez o aspecto mais visível de como mesmo
produtos não relacionados à carne podem ter efeito devastador sobre os animais.
O
agronegócio – produção em monocultivos, baseada no uso intenso de pesticidas, herbicidas
e fertilizantes – está extinguindo as populações de insetos numa escala
inédita. Isso, por sua vez, atinge redes alimentares mais amplas, contribuindo
para a queda abrupta das populações de pássaros.
O que há
em comum entre o caso judicial de Casamitjana e a petição contra o óleo de
palma é a noção política do veganismo. O primeiro caso indica a necessidade de
proteger a ética vegana, limitando o poder das corporações para empregar e
demitir. O segundo mostra que uma sociedade vegana exige regular as forças de
mercado envolvidas na produção e consumo de alimentos e outros produtos.
A
Sociedade Vegana, fundada no Reino Unido em 1944, buscava estabelecer uma
filosofia e modo de vida que excluíam, tanto quanto possível, todas as formas
de exploração e crueldade com os animais. Os primeiros veganos apresentavam
esta filosofia como “um modo de vida preocupado em viver sem ferir outros
seres… o que evita explorar nossos semelhantes humanos, a população animal ou o
solo, do qual dependemos para nossa própria existência”.
Um abismo
ideológico separa o veganismo consumista mainstream, que nada tem a dizer sobre
a exploração de “nossos semelhantes humanos” das bases mais políticas do
veganismo ético. Em diversos sentidos, o primeiro contradiz e potencialmente
sabota o segundo.
Os
impactos do veganismo consumista no sistema global de produção de alimentos
serão similares a processos anteriores de ampliação dos mercados – a captura de
terras camponesas, a devastação ambiental e a exploração do trabalho. O caso
emblemático é o atual boom do avocado: a crescente demanda pela fruta de moda
está acelerando o desflorestamento e a contaminação do solo no México e Chile.
A
exploração do trabalho por meio de salários de miséria desestrutura muitos
sistemas agrícolas. Nos EUA, por exemplo, cerca de um terço dos agricultores,
muitos dos quais são migrantes sem direitos civis efetivos, recebem renda
abaixo da linha nacional de pobreza. O trabalho forçado é comum, no setor de
vegetais e frutas do sul da Europa, que supre muitos supermercados na zona rica
do Velho Continente.
A adoção
de linhas de produtos sem carne pelas redes de fast food como o Burger King é
orientada pela intenção de maximizar lucros, não pela busca de bem-estar
animal. Tais estratégias procuram atrair novos consumidores a comprar um mix de
produtos inovadores e mais tradicionais. Como notou José Cil, o exegutivo-chefe
da controladora do Burger King, “Não vemos os clientes trocar o hambúrguer
original pelo vegano. Vemos que estamos atraindo novos consumidores”.
O
resultado geral é fortalecer, e não alterar fundamentalmente, o modelo de
negócios atual. No caso de setor de fast food, significa manter as vendas de
produtos baseados em carne.
O
veganismo ético, ao contrário, baseia-se em notáveis fundamentos filosóficos
anti mercado. Ele aponta para uma compreensão mais holística do mundo,
enraizada na aversão à exploração. No contexto atual, tem muito em comum com
outros protestos políticos, como as greves globais pelo clima e o Extintion
Rebellion.
A produção
e o consumo de alimentos saudáveis e ambientalmente sustentáveis, livres de
exploração humana e animal, exige mais que mudanças de dieta. Requer nada menos
que uma transformação fundamental no modo como os humanos relacionarem-se entre
si e com a natureza.
Enquanto
o veganismo orientado pelo consumo contribui para a contínua expansão de um
mercado devastador, o veganismo ético acentua como a construção de um mundo
mais justo exige restringir a operação dos mercados capitalistas. As duas almas
do veganismo são antagônicas: a variante consumista promete sabotar os
objetivos do veganismo ético.
Muito do
entusiasmo em torno do Veganuary reflete os desejos das grandes corporações por
novas oportunidades de lucro. Mas o potencial político do veganismo ético está
se tornando cada vez mais visível. Se ele florescer e puder influenciar nosso
pensamento sobre as políticas necessárias para melhorar as condições de vida
dos humanos, dos animais e do mundo natural, então grandes mudanças estarão à
vista.
Por
Benjamin Selwyn, no Le Monde Diplomatique, edição inglesa | Tradução: Antonio
Martins| Imagem: Hartmut Kievert
Nenhum comentário:
Postar um comentário