Uma
denúncia que afronta garantias constitucionais, a liberdade de imprensa e a
democracia. Assim pode ser resumida a impressão causada pela peça acusatória do
procurador da República Wellington Divino de Oliveira contra o jornalista Gleen
Greenwald.
A
denúncia se baseia em uma conversa que teria acontecido após a imprensa
divulgar a invasão no celular do atual ministro da Justiça, Sergio Moro. No diálogo, Luiz Molição — considerado
porta-voz do grupo com jornalista — teria pedido orientação sobre o que fazer.
Glenn teria indicado que as mensagens já repassadas a ele deveriam ser
apagadas, para que o jornalista não fosse ligado à obtenção do material.
Para
o MPF, essa conversa caracteriza "clara conduta de participação auxiliar
no delito, buscando subverter a ideia de proteção a fonte jornalística em uma
imunidade para orientação de criminosos”.
Para
especialistas ouvidos pela ConJur, no entanto, as lacunas jurídicas da denúncia
são claras. Para começar, o procurador (aliás, o mesmo que denunciou o
presidente da OAB por críticas a Moro) passou por cima de uma liminar do
ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que proibia "atos que
visem à responsabilização do jornalista Glenn Greenwald pela recepção, obtenção
ou transmissão de informações publicadas em veículos de mídia".
Além
disso, os advogados também lembraram que Glenn não é sequer investigado na
operação, e destacaram que a forma como a conversa foi usada para justificar a
denúncia é um erro grave de interpretação que "beira o abuso de
autoridade".
Lenio Streck viu indícios de
lawfare na denúncia do MP contra o jornalista
Para
o jurista e colunista da ConJur, Lenio Streck, a denúncia tem elementos que
caracterizam a prática de lawfare — uso do Direito como instrumento de
perseguição política. "Uma denúncia que, segundo consta, está baseada em
uma gravação - que não diz nada de concreto contra Glenn — e o denunciado nem
estava no polo passivo da investigação — inquérito, parece a prática de
lawfare. Aliás, se Glenn não era investigado, como aproveitar gravação contra
ele? Mistério!", comenta.
Alberto
Toron acredita que o MP não só se excedeu como "fantasiou" na
denúncia
Entendimento
parecido com o advogado Alberto Zacharias Toron. O criminalista acredita que o
Ministério Público Federal não apenas se excedeu, mas fantasiou. "O fato
de o Glenn ter tentado preservar a fonte pedindo para apagar uma determinada
mensagem não serve para colocá-lo no polo passivo de uma ação penal", diz.
Toron
ainda lembra que a liminar do ministro Gilmar Mendes proibindo a
responsabilização do jornalista. "Isso que eles encontraram, e que
legitimaria a denúncia, beira o abuso de autoridade no poder de
denunciar", argumenta.
Segundo
o jornal Folha de S.Paulo, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar
Mendes, que teve a liminar desrespeitada, classificou a denúncia como "um
ato que visa à responsabilização do fundador do site The Intercept
Brasil".
O
ministro Marco Aurélio Mello, disse, também à Folha, que a denúncia contra
Glenn é perigosa. "Toda iniciativa que fustigue jornalista, que fustigue
veículo de comunicação tem que ser pensada muito antes de implementada. É o
caso da denúncia, julgamento. Tem que sopesar, analisar valores e decidir qual
é o valor que deve prevalecer", diz.
Criminalização do jornalismo
Kakay acredita que denúncias
como essa minam a credibilidade do MP
O
advogado criminalista, Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, afirma que
atitudes como a do procurador Wellington Divino de Oliveira tiram a
credibilidade do MP e têm a clara intenção de restringir a liberdade de
imprensa. "Neste caso, a inacreditável tentativa de responsabilização
criminal parece ser pautada por motivação política ou ter sido feita como
represália à atividade profissional desempenhada por esse importante jornalista
no caso conhecido como Vaza Jato, haja vista que a denúncia não apresenta os
mínimos requisitos técnicos para sua admissão", defende. "Mais uma
vez, o que se espera do Poder Judiciário é uma postura técnica e absolutamente
imparcial ao analisar a denúncia. Assim como um juiz não pode ser parcial e
instrumentalizar o Poder Judiciário também o Ministério Público tem que ter a
Constituição como norte."
Para
o advogado Thiago Turbay, a situação revela os traços antidemocráticos que
marcaram o país durante a "lava jato". "Apela-se para
confabulações simbólicas, com a nítida tentativa de demonizar o jornalismo
livre e amenizar a conduta ilegal revelada pelo The Intercept. A narrativa do
Ministério Público se aparta dos fatos para fomentar simulações e alucinações.
A conduta do jornalista, tampouco, configura os crimes capitulados. É uma
barbeiragem jurídica propositada e que configura abuso do poder de punir,
devido à clara ausência de justa causa para oferecimento de denúncia",
argumenta.
O
criminalista Conrado Gontijo também classifica a denúncia conta Glenn como um
verdadeiro absurdo jurídico. "A narrativa acusatória deturpa o teor das
conversas mantidas entre o jornalista e as suas fontes, para inseri-lo no
contexto das práticas delitivas. A interpretação dada aos diálogos, na minha
compreensão, é totalmente descabida é incompatível com as mensagens referidas
na denúncia. Essa denúncia pode representar, inclusive, violação à decisão do
Supremo, que havia assegurado a Gleen Greenwald o direito de exercer de forma
livre a atividade jornalística".
Abuso de autoridade
Gontijo
descarta, no entanto, a possibilidade de enquadrar o procurador na lei de abuso
de autoridade, considerados apenas os elementos existentes até agora. "A
denúncia é descabida, viola direitos fundamentais e, por isso, entendo que deva
ser rejeitada. Mas não vejo a possibilidade de sancionamento criminal do
procurador, consideradas as informações existentes no momento, com base no
artigo 30 da Lei de Abuso de Autoridade, segundo o qual é crime "dar
início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa
fundamentada ou contra quem sabe inocente", explica
David
Metzker, por sua vez, acredita que a denúncia pode, sim, ser enquadrada como
abuso. "Me estranha o fato de denunciá-lo mesmo afirmando que não pôde
investigar em razão da liminar. Se não houve investigação, não há fundamentos
para imputá-lo crimes. Se houve investigação, há uma clara afronta a decisão
liminar do STF, exarada pelo Ministro Gilmar Mendes", diz.
Fernando
Castelo Branco, criminalista e professor da pós-graduação da EDB, acredita que
poderia haver um abuso de autoridade se ficasse demonstrado que o Ministério
Público incluiu o nome do jornalista com o intuito específico e determinado,
por exemplo, de coibir e constranger a imprensa."O que me chama mais a
atenção é de classificar essa conduta de flagrante coautoria , numa pretensa
organização criminosa. Isso tem sido recorrente por parte do MP, tentando, ao
meu ver, trazer um destaque para algo que está muito distante , pela
classificação doutrinária e jurisprudencial, do conceito de organização
criminosa", comenta.
Entidades de classe
Quem
também condenou o episodio foi a Ordem dos advogados do Brasil. Em nota, a OAB
afirma que acompanha o caso com grande preocupação. "A denúncia descreve
fato que não pode ser considerado crime. A participação em qualquer delito
exige instigação ou colaboração efetiva para sua prática, e nenhuma das
mensagens do jornalista incluídas no expediente do MPF indica qualquer desses
comportamentos. A denúncia, portanto, criminaliza a mera divulgação de
informações, o que significa claro risco para a liberdade de imprensa",
diz trecho da nota.
O
Grupo Prerrogativas também se pronunciou, repudiando com veemência a denúncia
do MPF. "A denúncia ataca violentamente a liberdade de imprensa, na medida
em que busca a responsabilidade criminal de um jornalista em razão de sua
atividade profissional. Deturpa o conteúdo da prova arrecadada no curso das
investigações e promove ilações completamente fantasiosas. Os esforços para
caracterizar Glenn Grenwald como auxiliar ou mentor dos (supostos) hackers
esbarram em qualquer critério de boa-fé. Não há leitura possível dos diálogos
que comporte esse tipo de interpretação".
"É
ainda muito preocupante que o Ministério Público Federal se insurja contra a
autoridade da medida cautelar concedida na Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) nº 601, do Supremo Tribunal Federal, que protegeu o
exercício da liberdade de imprensa e, pelo menos até o dia de hoje, garantiu
que Glenn Grenwald não fosse criminalizado em razão do exercício de atividades
jornalísticas. Esta acusação é uma escalada perigosa na ascensão do
autoritarismo, além de consagrar o uso político do processo penal e a
fragilidade da nossa democracia", afirmaram, em nota.
Quem
também se manifestou foi a Associação Brasileira de Imprensa. Em nota, a
entidade disse que o episódio representa "um atentado à Constituição
Brasileira, um desrespeito ao STF e a Polícia Federal, bem como uma tentativa
grotesca de manipulação, para tentar condenar um jornalista".
O
texto, assinado pelo presidente da entidade, Paulo Jeronimo de Souza, conclama
a Justiça Federal a rejeitar a denúncia da mesma forma que, negou outra
recentemente feita contra o presidente do Conselho Federal da OAB, Felipe Santa
Cruz — "Por coincidência feita pelo mesmo procurador da República".
Rafa Santos é repórter da
revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2020-jan-21/advogados-denuncia-mp-glenn-absurdo-juridico
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