As
falácias e resistências que nos fizeram chegar até 20 de novembro.
Em
sua nova coluna para a VICE, o autor de sci-fi & fantasia afro-americana e
pesquisador Ale Santos traz os contextos das causas raciais em questões
culturais, políticas e até do entretenimento de nosso país. Esta coluna é um
esforço de compartilhamento de conhecimento numa época em que o negacionismo
cresce e influencia diretamente o imaginário das pessoas. Bem-vindo ao Guia
Historicamente Correto do Brasil.
Publicidade
Em
1988, o Rio de Janeiro acordou tomado por milhares de pessoas. Militares
ocuparam o centro para vigiar o acontecimento, mas acabaram destruindo
palanques em frente à Central do Brasil, prenderam ativistas que chegavam dos
subúrbios e da Baixada Fluminense e tentavam destruir faixas e cartazes que as
pessoas levantavam.
O
protesto acontecia nas vésperas do centenário da abolição da escravatura e
estava ali exatamente para revelar a farsa que essa abolição significava. Quem
dera fosse apenas um problema do descaso do governo com a população preta. Ele
foi além e trabalhou com ideais eugenistas, posteriormente transformados em
leis para exterminar a descendência africana do país.
Um
dos nomes que liderou essa marcha foi Abdias Nascimento, primeiro negro a
chegar à câmara como deputado federal. Ele exaltou a todos com seu discurso:
“É
a primeira vez, após a abolição da escravatura, que nós apresentamos, em um ato
memorável como este, a nossa maturidade política, a consciência dos nossos
direitos irreversíveis. Nós estamos aqui não para mendigar, não para estender a
nossa mão para a mendicância da classe dirigente. A nossa mão está estendida à
solidariedade, mas essa solidariedade tem um preço, e é o preço que a sociedade
dominante tem que pagar”.
Em
2003, Abdias lutou pela criação do Dia da Consciência Negra, que agora é
celebrada na data de 20 de novembro, em memória ao dia do assassinato de Zumbi
dos Palmares. Essa conexão entre o passado da luta negra e aquele momento
pós-governo militar explica muito sobre a importância da data e a sua relação
com o movimento negro.
O que é o movimento negro
Quando
discutimos na internet, a impressão é que existe um grande movimento com regras
rígidas, antagonista dos brancos e que busca uma divisão racial no Brasil –
essa é a principal falácia levantada pelos militares, os mesmos que estavam
coibindo a marcha em 1988 com a desculpa que aquele protesto estaria
depreciando a imagem do Duque de Caxias, pasmem.
Para
destruir preconceitos e sofismas é importante entender que o movimento negro
não é um único movimento. Assim como a África é um continente repleto de
realidades diferentes, etnias, culturas e formas de lutar distintas, o
movimento negro no Brasil e no mundo tem encontrado faces múltiplas. Porém,
todas elas têm um único direcionamento: a luta contra o racismo e em favor da
população negra por meio da reparação histórica e de políticas afirmativas.
Joel
Rufino dos Santos, escritor e um dos maiores nomes brasileiros em estudos de
culturas africanas, define o movimento negro assim:
“Todas
as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer tempo [aí
compreendidas mesmo aquelas que visavam à autodefesa física e cultural do
negro], fundadas e promovidas por pretos e negros (...) Entidades religiosas
[como terreiros de candomblé, por exemplo], assistenciais [como as confrarias
coloniais], recreativas [como “clubes de negros”], artísticas [como os inúmeros
grupos de dança, capoeira, teatro, poesia], culturais [como os diversos
“centros de pesquisa”] e políticas [como o Movimento Negro Unificado]; e ações
de mobilização política, de protesto anti-discriminatório, de aquilombamento,
de rebeldia armada, de movimentos artísticos, literários e ‘folclóricos’ – toda
essa complexa dinâmica, ostensiva ou encoberta, extemporânea ou cotidiana,
constitui movimento negro."
Particularmente,
entendo a Consciência Negra como o reconhecimento de toda a luta ancestral para
a sobrevivência e o “resgate da nossa dignidade humana, da nossa história e dos
nossos valores culturais” – como evocado pelo próprio Abdias Nascimento. Então,
os grupos de negros que reconhecem a desigualdade racial e lutam contra ela são
os considerados parte do movimento negro.
Na
história do Brasil, alguns grupos liderados por negros foram patrocinados por
oligarquias e governos, mas como um subterfúgio, uma verdadeira manobra
política evasiva para dizer ao povo “não somos tão maus assim, tampouco
racistas, tenho até negros aqui no governo”.
Em
1812, por exemplo, a coroa patrocinou o surgimento de uma associação negra, a
Companhia de Pretos de Pernambuco, como uma resposta às rebeliões que
aconteceram na época. Também aconteceu no Brasil um movimento que mitificou a
princesa Isabel, o Isabelismo – ele defendia a volta da monarquia e considerava
a princesa como "A Redentora". Apesar de um aparente protagonismo
negro, possivelmente seus ideais colocariam o negro numa situação de
inferioridade na sociedade.
Os primeiros movimentos no
Brasil
Não
há como deixar de reconhecer os quilombos como as primeiras grandes
representações do movimento negro brasileiro. O sociólogo Clóvis Moura afirmou
que onde quer que a escravidão existisse, o negro marrom [rebeldes livres, como
quilombolas] aparecia como sinal de rebeldia permanente contra o sistema que o
escravizava. Foram várias lideranças nessa época, Zacimba, Tereza de Benguela,
Manuel Congo e o Zumbi que se tornou o mais conhecido da nossa história.
Palmares
resistiu por quase um século, em meio a inúmeras tentativas de invasão e
ataques brutais. As histórias sobre Zumbi haviam se espalhado e inflado o
coração de outros negros. Ele era um símbolo tão forte que a Coroa Portuguesa
tentou profaná-lo, arrastando sua cabeça para ser espetada numa lança e exibida
durante seis dias de comemoração a seu assassinato. Essa tragédia não foi capaz
de silenciar o movimento negro, que sempre voltou com outros líderes em outras
épocas.
Em
1798, inspirados pelos ideais iluministas, pela Inconfidência Mineira e
impulsionados também pelas histórias da revolta do Haiti, explodiu na Bahia um
movimento popular anticolonialista conhecido como Revolta dos Búzios ou (mais
popularmente) Conjuração Baiana.
Diferente
da Inconfidência Mineira, a revolta baiana desejava a abolição da escravatura e
o término do preconceito racial. Tinha entre seus líderes vários negros
escravos e libertos, como Lucas Dantas do Amorin Torres e Manoel Faustino do
Santos Lira.
Alguns
revoltosos espalharam cartas e panfletos na cidade, fato que chamou a atenção
das autoridades e motivou investigações com uma dura repressão. À base de
ameaças, várias pessoas delataram seus companheiros, levando a morte dos seus
líderes. Partes dilaceradas de seus corpos foram exibidas durante cinco dias e
espalhadas pela cidade – que chegou a ser tomada por urubus. A sentença ainda
declarou seus nomes e memórias infames até a terceira geração.
No
governo militar, contra a mentira da democracia racial
Após
a abolição da escravatura e a queima dos registros históricos sobre a
escravidão, as elites brancas no Brasil patrocinaram um movimento de negação intensa
do racismo, promovendo a produção de literatura, música e todo tipo de arte que
escondesse o seu passado criminoso.
Esse
plano tinha um ponto cego, que é a vida do próprio negro. Se o país fosse o
paraíso racial que vendia internacionalmente, não haveria necessidade de
reivindicar mais nada. Porém o racismo dos escravagistas não foi abolido com a
Lei Áurea. Os filhos de fazendeiros e donos de engenhos estavam vivos e
propagando sua moral miserável.
No
meio desse tumulto, grupos de intelectuais negros voltaram a se organizar e
fundaram em 1931 a Frente Negra Brasileira. Eles se tornaram a principal
referência de luta contra o racismo após a abolição e reivindicavam,
principalmente, o fim da discriminação de cor e raça que acontecia em órgãos
públicos e estabelecimentos privados. Os esforços do movimento negro dessa
época levaram a criação da primeira lei que combatia o racismo no país, a Lei
Afonso Arinos, em 1951.
Infelizmente,
a Frente Negra não sobreviveu para apreciar essa vitória. Com o golpe militar
que instituiu o Estado Novo em 1937, Getúlio Vargas, embebido das ideologias
eugenistas, encontrou na ideologia da democracia racial a mentira perfeita para
findar qualquer expressão cultural étnica que fosse contra a “identidade
nacional” que eles estavam pregando (criadas pelo movimento eugenista e
difundida até os dias de hoje em publicações do Clube Militar).
Teatros,
partidos, jornais e muitas outras expressões negras foram caçadas e destituídas
nesse período em nome da tal democracia racial – basicamente fundada na ideia
de que o Brasil era tão mestiço que o racismo aqui era impossível de acontecer.
Enquanto
o governo militar insistia no negacionismo, o racismo continuou acontecendo e
isso continuou a mobilizar o movimento negro.
Em
1978, Robson Silveira da Luz, um feirante, foi acusado de roubar frutas. Levado
por policiais, o jovem negro de 27 anos acabou torturado e morto. Foi um dos
estopins para que nomes como Lélia Gonzalez, Hélio Santos e Abdias Nascimento
reunissem o Movimento Negro Unificado (MNU), que sobreviveu ao governo militar
em meio a várias perseguições e contra a propaganda que queria vender um país
sem preconceitos para a população.
Quando
a marcha contra a farsa da abolição (citada no início deste texto), aconteceu
em 1988 foi como a ebulição de tudo o que estava sendo preparado pelo movimento
negro no período da ditadura. Foi também o ano em que, finalmente, a
Constituição compreendeu que existia o racismo e ele deveria ser combatido.
Hoje,
existem vários grupos, ONGs, instituições e movimentações partidárias que fazem
parte do movimento negro. Para Silvia Nascimento, jornalista e produtora de
conteúdo com foco na comunidade negra há 18 anos, a maior diferença entre o
movimento negro do passado e o de agora é a liberdade. "Nossa geração tem
avós que estiveram muito próximo da escravidão. Com certeza isso reflete na sua
mobilização política. Você tem medo de cerceamentos, você tem medo de risco de
vida e de danos financeiros por se posicionar politicamente”, afirma.
Eu
nasci em 1986, em um país que não criminalizava o racismo, um país em que a
Constituição não compreendia negros como cidadãos brasileiros, apenas fingia
que todo mundo entendeu que “agora negro é gente”. Ter a consciência negra não
é entender minha existência única como um negro nesse país e minha liberdade
para fazer o que quiser, mas, sim, me conectar com esse passado, com esses
nomes e essas lutas que me deram a liberdade de estar aqui escrevendo para
vocês.
É
olhar com os mesmos olhos dos líderes abolicionistas e do mestre Abdias
Nascimento para a história afro-brasileira. Só assim fará sentido dizer quando
chegar o dia 20 de Novembro: viva Zumbi!
Nenhum comentário:
Postar um comentário