Tanto
Freud quanto Nietzsche afirmaram ser o último romance escrito por Fiodor
Dostoiévski a maior obra literária jamais escrita na história da humanidade.
Stefan
Zweig, ao terminar de escrever seu livro “Os Construtores do Mundo”, foi
convidado a realizar um resumo comentado da última e principal obra do grande
escritor russo: “Os Irmãos Karamazovi”. Infelizmente, uma série de
circunstâncias como o advento da Segunda Guerra Mundial e seu falecimento
prematuro impediu que executasse tal projeto. O título provisório para o
trabalho seria o mesmo que o próprio Dostoiévski designara para o local onde se
passa a tragédia dos Karamazovi: “Skotoprigonievski”.
Dostoiévski
tinha por hábito justapor palavras em russo. Skotoprigonievski tem o
significado de “um depósito de animais”. O grande depósito de animais que
simboliza um universo, microcosmo de nosso mundo de humanidades, no dizer de
Ivan Karamazov, repleto de “focinhos humanos”.
Karamazov
é originário etimologicamente de kara (castigo) e mazat ( sujar). Desde o
título ele nos dirige para “aquela pessoa cujo erro o leva à própria punição”,
ou se o quisermos dentro do trágico, aquele que ultrapassa suas medidas e
caminha para a própria condenação, uma etapa necessária à redenção ou à
perdição.
A
cidadezinha de Skotoprigonievski, onde a trama se desenvolve, é um “depósito de
animais”, onde todos nós poderemos de um modo ou outro encontrar nossa “isbá”,
o nosso lar. Uma aldeia que arde pelas paixões, ódios, desmedidas, mas que
também é capaz de gerar um Alieksei , um homem que procura a verdade e a
fraternidade.
Hoje
como no passado, os habitantes de nossas imensas Skotoprigonievski, o que tanto
desejam? Serem felizes, possuírem riqueza, poder e, quem sabe, acima de tudo,
consumir e poderem se exibir socialmente. Pois os personagens de “Irmãos
Karamazovi” nunca aspiram a nada disso diretamente, mesmo porque eles não se
estabelecem em lugar algum, nem mesmo diante da própria felicidade. Necessitam
seguir um caminho, têm uma espécie de alma interior que tortura a si mesma num eterno seguir em
frente. Desprezam a fortuna ainda mais do que a desejam, talvez porque nada
almejem de particular neste mundo; mas se nada querem de particular, no geral
aspiram a tudo, à plenitude dos sentimentos, à vida inteira.
Os Karamazovi, para Zweig, têm músculos de aço,
sede de vida brutal, “essas bestas ferozes de sensualidade, de alegria do
viver”, indecentes e fanáticas, que sorvem as últimas gotas do cálice antes de
o quebrarem. São do tipo que querem o tudo e o nada, desejam o bem e o mal e
tais quais os heróis das tragédias gregas excedem seus limites, mesmo porque
estão permanentemente a testá-los.
Essa
inquietude e ansiedade são do mesmo modo suplícios e o sofrimento dilacera a
todos; quando se embebedam, não buscam o prazer ou o sono, mas na embriaguez
tentam o esquecimento da loucura; jogam
um dia inteiro para matar o tempo e entregam-se à dissolução, não por prazer,
mas para perderem o controle nos excessos que cometerão.
Não
por acaso o romance, por ser religioso, é dividido em quatro partes,
totalizando doze capítulos, e um epílogo. Dostoiévski expressa da maneira mais
acabada sua religiosidade cristã e ortodoxa. O número de capítulos simboliza a
atuação de Deus sobre o espírito, na dualidade das coisas e do homem. O doze
simboliza Jesus, sendo ainda o número dos apóstolos de Cristo, o número de
estações de sua Via Crucis, das tribos de Israel, assim como a base dos cento e
quarenta e quatro mil salmos bíblicos.
O
patriarca da família é Fiódor Karamazov, um velho devasso, palhaço e mesquinho,
que fez fortuna devido aos dotes de suas duas mulheres mortas precocemente.
Teve três filhos aos quais abandonou. Com a primeira, Dmitri, criado
primeiramente pelo seu criado e depois por Miússov, parente de sua falecida
mãe. Com a segunda mulher, mais dois: Ivan e Aliêksei, que terminaram sendo
criados por outro parente.
Enquanto
Ivan que cresce na cidade grande e se torna um intelectual atormentado por sua
inteligência, Aliêksei se transforma numa pessoa mística e pura, entrando para
um mosteiro em Skotoprigonievski.
Será
Ivan quem transportará para a obra polifônica muito mais do autor que qualquer
outro personagem; seu alimento não é o pão, a carne e ou vinho, mas as
reflexões; ele não age impulsionado nem pelo amor, nem pelo ódio, na medida em
que somente luta por ideias, mesmo ao custo de o alucinarem.
Dmitri
ou Mitia, o primogênito, torna-se homem na devassidão; incorporado ao Exército,
do mesmo é expulso. Seu nome deriva de Demeter, fruto da mãe Terra e como tal
possuidor de força brutal e ingênua, agindo sempre infantilmente e em
desespero, possuindo até mesmo a capacidade de amar simultaneamente duas
mulheres, cada qual a seu modo.
A
partir da disputa financeira pela herança materna, entre o pai e Mitia, nasce o
conflito por uma mulher, Gruchénka, que levará ambos a brigas e até ameaças de
morte. Gruchénka é uma das personagens dramáticas que são mulheres “decaídas”.
Se ela devota aos homens que por si se apaixonam apenas o ódio travestido de
boas maneiras, possui também um coração de ouro para aqueles a quem chega a
amar, o que ocorrerá quando apaixona por Dmitri.
Além
dos três filhos legítimos, Fiódor também agrega como servo o filho fruto do
estupro de uma mulher amalucada, estupro que cometera na mocidade. Trata-se de
Smerdiakov, um ser trágico, que simboliza a dissuasão, a hipocrisia, a inveja
incontida dentro de uma vida sem sentido. Smerdiakov é niilista, feio, bastardo
e “eunuco” e será o instrumento da morte paterna, do parricídio que,
entretanto, ambos os irmãos, Ivan e Mítia, no subconsciente gostariam de haver
cometido.
Encontramos
desenvolvida nesse romance, com toda profundidade, a problemática essencial da
existência ou não de Deus, questão que tanto angustiou a vida do autor. A
existência de um Deus que esteja lado a lado com as questões como o bem e o
mal, assim como a consequente responsabilidade humana no livre-arbítrio, na
liberdade de salvar-se e de libertar-se.
Por
isso mesmo Dostoiévski impulsiona todo o drama para um momento superior,
religioso, em que personagens procuram a fraternidade universal no mistério da
reconciliação geral e no reconhecimento fraterno. Ao final do romance uma
propensão para o alto, para a redenção. Os “criminosos e pecadores” de certa
forma são penetrados pela divindade, buscando no sofrer e no arrependimento se
elevarem espiritualmente.
Se
Cristo pedia “deixai vir a mim as criancinhas”, o mesmo o faz Aliocha, sempre
rodeado por elas, buscando que cultivem as memórias de seus momentos felizes na
pureza da infância, essenciais à felicidade do futuro adulto. As crianças que
constituem o símbolo da pureza, da capacidade de redenção do homem e, no dizer
de Ivan, “o maior dos crimes consiste em agredi-las, degradá-las”.
A Revolta em “Os Irmãos Karamazovi”
A
Revolta é o décimo quinto capítulo do romance de Dostoiévski, aquele que
antecede e prepara o leitor para o “O Grande Inquisidor”. Trata-se um longo
colóquio entre dois irmãos Ivan, o livre pensador e Aliocha, o seminarista.
A
revolta de Ivan vai ao encontro de um mundo que se desfaz em injustiças e
violência. Primeiramente ele avança contra o preceito cristão do “amais-vos uns
aos outros”. “Jamais pude compreender como se possa amar o próximo. Não se pode
amar o próximo, a não ser que ele esteja distante; para que se possa amar
alguém é preciso que ele esteja oculto, pois desde que ele se mostra, o laço se
desfaz… O amor de Cristo pelos homens é uma espécie de milagre impossível na terra,
pois nós não somos deuses… Pode-se, isso sim, amar as crianças de perto, mesmo
sujas, mesmo feias, aliás, eu nunca as acho feias. Já os adultos, esses comeram
o fruto proibido, discerniram o bem do mal, tornaram-se semelhantes aos deuses.
Mas as criancinhas não, são inocentes”.
Prossegue
Ivan dizendo que comparar a crueldade humana com a dos animais silvestres seria
uma enorme injustiça para com esses, pois as feras jamais atingiriam os
refinamentos do homem na maldade. “Se o diabo não existe e foi criado pelo
homem, este deve tê-lo feito à sua imagem e semelhança.”
Ivan
Karamazov, ou melhor, Dostoiévski, relata a Aliocha cinco casos reais
publicadas em jornais, na forma de cinco pequenas “histórias” ilustrativas da
maldade a que pode chegar o homem:
Episódio 1. A história trata de um adolescente que
se converteu ao cristianismo antes de morrer. Havia sido “dado”, aos seis anos
de idade, por seus pais a uns pastores que o “educaram” para o trabalho, ou
seja, para ser um escravo. Richard crescera como um pequeno selvagem faminto,
sem roupas, a pastorear desde os sete anos de idade. A fome o obrigara a comer
até mesmo a lavagem que era dada aos porcos, embora quando era pego surravam-no
sem piedade. Ao tornar-se jovem, ele passou a roubar e chegou mesmo ao
assassinato. Na prisão cercou-o uma multidão de almas caridosas, pastores
calvinistas e senhoras da sociedade. Ensinaram-no a ler e a escrever, assim
como todo o Evangelho. Catequizaram-no e, em decorrência da fé adquirida, ele
confessou seu crime ao Tribunal dizendo-se um monstro, mas que Deus o
esclarecera de toda a sua maldade. Toda Genebra filantrópica e pia emocionou-se
com o caso.
Julgado
culpado, no dia da execução, Richard chorava e repetia que aquele era o dia
mais lindo de sua vida, pois iria arrependido até Deus. Toda a sociedade
genebrina segue a carreta que o conduz ao cadafalso. “Morre irmão, morre no
Senhor”, gritavam. E, coberto de beijos, Richard sobe ao cadafalso e a sua
cabeça rola com a graça divina.
Episódio 2. “Entre nós, torturar batendo constitui
uma tradição histórica, um gozo pronto e imediato”. O poeta Nekrassov relata como um mujique bate
com seu chicote nos olhos de um cavalo que não consegue atravessar um lamaçal.
“É um bom russo. Quem já não viu isso? Ele bate encarniçadamente, sem saber
muito bem o que faz e os golpes chovem numa espécie de embriaguez. A besta sem
defesa se debate desesperadamente enquanto seu dono açoita seus olhos doces, de
onde rolam lágrimas… Mas por que as pessoas se chocariam com o caso? Não se trata
apenas de um cavalo que Deus criou para ser chicoteado? Afinal, os tártaros nos
legaram o chicote para quê? Para isso.”
Episódio 3.
As pessoas também podem ser espancadas. Um senhor culto e sua mulher
sentem prazer em açoitar com varas sua filhinha de sete anos. E o pai está
feliz porque a vara tem espinhos. Há seres que se excitam a cada golpe e
chegam, progressivamente, ao sadismo. Bate-se na criança um minuto, depois
cinco, após dez…, sempre mais e mais forte. O caso torna-se escandaloso e chega
ao Tribunal. Toma-se um advogado, mas “há muito tempo o povo russo chama ao
advogado de uma consciência de aluguel”. Trata-se apenas de um caso em família,
o rábula argumenta. E o júri absolve o marido e a mulher e o povo o aplaude.
Episódio 4. Existe um pendor especial, em muitos,
para o prazer de açoitar crianças. Pois cada homem oculta em si um demônio:
acesso de cólera, sadismo, paixões ignóbeis, doenças contraídas na devassidão.
No caso, os pais eram instruídos, mas praticavam sevícias numa pobre menina.
Açoitavam-na e seu corpo vivia repleto de equimoses. Refinaram, então, sua
crueldade: nas noites de inverno encerravam a menina na privada para que ela
não perdesse tempo urinando na cama. Esfregavam os excrementos na pequena face
e a mãe obrigava-a a comê-los. E essa mãe dormia tranquila, insensível aos
gritos da pobre criança. E o pequeno ser, sem saber ao certo o que acontece,
bate em seu pequeno peito, chamando o bom Deus em socorro! “Ora, toda a ciência
do mundo não vale as lágrimas de uma criança”, conclui Ivan.
Episódio 5. No começo do século XIX, um general
rico proprietário vivia em uma fazenda com mais de duas mil almas de servos.
Tratava a todos com desdém e tinha uma centena de capatazes e matilhas de cães amestrados. Um dia, um pequeno servo
de oito anos acertou uma pedra em um de seus cães favoritos. O general ordenou
arrancar a criança dos braços da mãe e jogou-a numa masmorra. No dia seguinte,
ele, em uniforme de gala, montado para ir à caça e cercado por seus parasitas,
reúne todas as almas “que lhe pertenciam”, para “dar um exemplo”.
Trazem
a mãe e o menino. “O general ordena que, na manhã fria, tire-se toda a roupa do
garoto que tremia de medo, sem dizer palavra”. “Façam-no correr, ordena”. Nisso
ele açula a matilha e os cães que estraçalham a criança diante de sua mãe.
Ao
terminar de contar esses casos, Ivan conclui: “Aliocha, limitei-me às crianças.
Nada disse sobre as lágrimas humanas de que a terra está encharcada. Não
compreendo esse estado de coisas. Os homens são os únicos culpados… Não
merecem, pois, compaixão.”
Ivan
prossegue: “Os carrascos e torturadores sofrerão no inferno, tu me o dizes,
Aliocha. Mas de que serve o castigo se as crianças já tiveram seus infernos?
Aliás, de que vale essa harmonia que comporta um inferno?” E prossegue Ivan:
“Querer o perdão, o beijo universal, a supressão do sofrimento. Mas se o
sofrimento das crianças serve para perfazer a soma das dores necessárias à
aquisição da verdade, afirmo que ela não vale tal preço. E se o direito de
perdoar não existe que vem a ser a harmonia? Pelo amor pela humanidade é que eu
não quero essa harmonia. Prefiro conservar a minha indignação persistente mesmo
se não tiver razão. Aliás, deram excessivo valor a essa harmonia, cujo preço
nos é demasiado caro. Entrego meu bilhete na entrada. Como homem de bem tenho o
dever de entregá-lo o mais rápido possível. Não recuso admitir Deus, mas muito
respeitosamente, devolvo-lhe o meu bilhete”.
Aliocha,
o seminarista, não encontra argumento para refutar o raciocínio de Ivan.
Resta-lhe repetir o que quase sempre se fez: retruca que “tudo isso não é nada
mais que revolta, uma revolta contra Deus”!
Ivan
contra argumenta: “Pode-se viver revoltado? Ora, eu quero viver. Imaginas que
os destinos da humanidade estejam em tuas mãos e que para tornar as pessoas
definitivamente felizes, seria necessário torturar um ser, um ser apenas, tu o
consentirias?” Eu, jamais.
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