Mesmo
que se trate de tema altamente debatido e controverso, seja no meio acadêmico,
seja no plano da mídia e outros tantos foros, mobilizando e polarizando setores
de todas as colorações político-partidárias e grupos sociais, a querela em
torno da legitimidade constitucional da execução provisória da pena segue acesa
e, ademais disso, adquirindo novos contornos, em especial protagonizados pelo
STF, sem que aqui se esteja a fazer — por ora — qualquer juízo de valor
pessoal.
Além
disso, embora já tenhamos — neste mesmo espaço privilegiado — tecido uma série
de considerações advogando a substancial inconstitucionalidade do instituto da
execução provisória da pena, sublinhando sempre e também agora mais do que
nunca que tal posição em absoluto implica leniência com a prática delitiva,
inclusive e especialmente quando em causa delitos que impactam o patrimônio e a
moralidade pública, aqui abarcando tanto os atos (e omissões) de agentes
estatais quanto de atores privados que lucram com tais práticas.
Da
mesma forma — para espancar qualquer resquício de dúvida — a posição aqui
perfilhada não representa (e nem poderia num ambiente plural e democrático)
qualquer tentativa de hostilizar entendimentos em sentido contrário (e muito
menos seus autores) visto que em geral calçados em argumentos racionais e
razoáveis, também estribados no marco normativo jurídico-constitucional,
ademais de direcionados a combater uma impunidade (e, portanto, também um
punitivismo) seletiva e que costuma jogar nos calabouços desumanos do nosso
Brasil uma quantidade cada vez maior de pobres e mesmo — do ponto de vista da
discriminação étnico-racial — afrodescendentes.
Mas
o fato é que transcorridos já cerca de dois anos da coluna anterior sobre o
tema, não sobrevieram razões que pudessem mudar o meu próprio entendimento,
pelo contrário, apenas levaram ao seu fortalecimento.
Antes
de mais nada, calha, portanto, recuperar os principais argumentos que sustentam
a tese (compartilhada por setores significativos da academia e do meio
jurídico-judiciário) de que inconstitucional a execução provisória da pena no
Brasil. Aliás, desde que recolocado o debate na pauta do STF também lá não se
chegou a um consenso, pelo contrário, a divisão e o dissídio é notório e cada
vez mais acirrado, inclusive tendo resultado em decisões de alguns ministros
contrariando a posição majoritária formada em controle abstrato de
constitucionalidade.
Recordemos,
nessa quadra, que um dos argumentos esgrimidos em prol da execução provisória é
a falência do sistema judiciário e a possibilidade de diferir uma efetiva
punição por muitos anos, em regra levando à prescrição.
Mas
aqui o que já dissemos antes segue válido! Em vez de se implantar e acelerar
reformas, algumas das quais dependentes apenas de uma atitude proativa dos
tribunais (alteração regimental e mudança de alguns entendimentos, priorizar os
feitos, etc.), passa a ser preferível, de uma perspectiva pragmática — ainda
que bem intencionada —, relativizar a ratio e o telos da garantia
constitucional da presunção da inocência, tal qual plasmada no texto da
Constituição Federal de 1988.
Outra
linha argumentativa favorável à execução provisória sustenta que esta permite
que se estabeleça uma maior isonomia entre a grande massa de pessoas que
abarrota os nossos estabelecimentos carcerários em condições geralmente
indignas (o que o STF enfaticamente reconheceu em decisões paradigmáticas!) e
os criminosos da elite política e econômica, que, mesmo quando condenados (e
isso normalmente em tempo muito maior do que o corriqueiro) muito raramente
acabam cumprindo a pena imposta.
Novamente,
embora a situação assim se configure em termos majoritários, ousamos questionar
o quanto isso realmente serve aos propósitos de uma isonomia. Com efeito,
embora sedutor o argumento, haveria como objetar que justamente quem será mais
afetado com a execução provisória seguirá sendo a grande massa da população
mais pobre, pois ainda que todos os criminosos do colarinho branco sejam
processados, julgados e, quando culpados, condenados, sempre seguirão
representando parcela da parcela menor da população. Dito de outro modo,
corre-se o risco de se igualar “por baixo”, novamente em possível detrimento de
garantia constitucional expressa.
Passados
os anos, é de fato isso que se verifica. O número de presos por força de
execução provisória da pena subiu drasticamente, embora — e para não falsear a
verdade isso deve ser enfatizado — parte significativa dos mesmos já estivesse
presa preventivamente durante o andamento do feito até o julgamento na segunda
Instância.
Contudo,
mesmo que seja este o caso e que a prisão poderia legitimamente ser mantida por
presentes os requisitos legais da prisão preventiva, a mudança de qualidade
jurídica para uma execução provisória da pena arrosta a regra constitucional da
presunção de inocência, visto que prisão preventiva é sempre temporária e
execução da pena mesmo em caráter precário indica um juízo de culpa formado mas
que poderá eventualmente ser desconstituído.
Colaciona-se
também outros trechos da coluna anterior!
Do
ponto de vista estritamente jurídico-constitucional-normativo um dos (se não
o!) argumentos favoráveis de maior peso é o de que a garantia da presunção de
inocência na Constituição Federal foi veiculada por norma-princípio, ou seja,
que exige a ponderação (ou balanceamento, se preferirmos) com outros direitos
ou bens constitucionais.
Ora,
não se cuida de negar a existência de um princípio da presunção de inocência,
mas de questionar o quanto tal classificação condiz com os limites textuais da
nossa Constituição Federal, que, salvo melhor juízo, indicam que se trata de
uma regra, que proíbe uma determinada conduta, pois, apenas para relembrar, o
artigo 5º, LVII, estabelece, categoricamente, que “ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Ora,
se regras por definição não se submetem a um juízo de ponderação, ao menos não
(para os que admitem a possibilidade de superação das regras) no sentido
habitual atribuído aos princípios, um aspecto que restaria é discutir o que se
pode legitimamente entender por trânsito em julgado. Ainda que se possa aduzir
que se cuida de uma definição legal, já que a Constituição Federal assegura a
sua blindagem como garantia fundamental sem enunciar uma definição, o conceito
haverá de estar em sintonia com a Constituição, ademais de ser interpretado – mormente
em sede criminal e em caso de condenação à pena privativa de liberdade – de
modo extensivo, ou seja, reforçado, já que do contrário se estaria a romper com
o critério de que restrições a direitos e garantias devem ser restritivamente
interpretadas.
Além
disso, se por trânsito em julgado se entende sentença irrecorrível, da qual não
cabe mais recurso, parece problemático sustentar que uma vez respeitado o Duplo
Grau de Jurisdição e não cabendo mais recurso com efeito suspensivo, mas
cabendo sim, ainda que em caráter excepcional, algum recurso, se possa falar
propriamente em trânsito em julgado. Aliás, é de se questionar inclusive a
própria constitucionalidade da generalizada (portanto, sem exceção) ausência de
efeito suspensivo, em especial quando se trata de privação da liberdade.
Outro
argumento favorável que busca reforçar a tese de que a execução provisória
estaria a preservar tanto a garantia plena do duplo grau de jurisdição quanto o
núcleo essencial do princípio (para nós, regra) da presunção de inocência, vai
no sentido de que, no STF, a cota de êxito dos Recursos Extraordinários em
matéria criminal é ínfima, menos de um por cento, o que reduziria ainda mais um
suposto impacto desproporcional causado pela execução provisória.
Mas
aqui novamente (assim como no caso do argumento relativo ao sistema que induz à
impunidade) há de se perguntar se a execução provisória de pena de reclusão
ainda se justifica mesmo que um em cem (ou mesmo menos) casos julgados pelo STF
resultem em absolvição ou anulação do processo ou mesmo em redução de pena que
afaste a prisão? E se no STJ, onde, de resto, se julgam bem mais recursos
criminais do que no STF, o percentual for bem maior?
Assim,
mesmo que aqui só tenhamos apresentado esquematicamente os principais argumentos
favoráveis e contrários, já pensamos ser possível questionar, assim como já o
fizerem alguns dos ministros do STF, a legitimidade constitucional da execução
provisória da pena e isto mesmo em se considerando que a presunção de inocência
é princípio e não regra.
Com
efeito, admitindo-se, ad argumentandum, que viável um juízo de ponderação, será
mesmo proporcional (ou razoável, para quem preferir seguir essa linha) apostar
na execução provisória?
Não
seria mais correto reconhecer, como possível alternativa, que uma vez
confirmada decisão condenatória a pena restritiva da liberdade em regime
fechado (no caso dos demais regimes e na ausência de estabelecimento apropriado
há de se admitir a prisão domiciliar e outras medidas cautelares), reforçada a
legitimidade da decretação e mais ainda a manutenção da prisão preventiva
quando a condenação for em sede de Duplo Grau?
O
que nos parece de fato inadmissível é, existindo alternativas (desde
modificações não tão difíceis de caráter institucional e processual até
reforçar a necessidade da segregação preventiva — devidamente motivada — uma
vez ocorrida condenação no Segundo Grau de Jurisdição), adotar a execução
provisória da pena e com isso admitir que se possa considerar culpado alguém
que teve recurso admitido e que, mesmo que em caráter excepcional, poderá ter
revertida a sua situação.
Avançando
agora em relação ao texto da coluna anterior, é de se considerar, pelo menos em
caráter argumentativo, a possibilidade de alteração do conceito de trânsito em
julgado, que não tem origem nem por si só status constitucional. Dito de outro
modo, ao invés de se definir (como é o caso e a regra tradicionalíssima — e por
motivos que soam óbvios — do ordenamento brasileiro e da absoluta maioria dos
Estados Democráticos de Direito) trânsito em julgado como decisão da qual não
cabe mais nenhum recurso, poder-se ia cogitar que para a configuração do
trânsito em julgado bastaria não ser mais manejável recurso com efeito
suspensivo.
Mas
também esta solução não nos parece tranquila do ponto de vista constitucional,
pois o seu efeito seria na prática o mesmo. Alguém com chance real (ainda que
diminuta) de ver revertida a sua condenação (ainda que para efeito de redução
da pena, mudança de regime de cumprimento, etc.) seguiria tendo uma pena (não
completamente definitiva) executada como se já culpado fosse...
Por
isso, mais do que uma questão de regras e de princípios no sentido de normas
que se distinguem por sua estrutura normativa, seu modo de aplicação, efeitos,
etc., se trata de uma verdadeira questão de princípio.
Mais:
a eventual consolidação do entendimento de que para uma execução provisória se
deva então aguardar uma decisão do STJ pode até diminuir ainda mais as
possibilidades reais de alteração do resultado do juízo condenatório (dando em
tese maior peso aos argumentos favoráveis), mas não afastam as razões
contrárias ao instituto acima revitalizadas.
Com
efeito, seguir-se á executando uma pena sem formação de culpa e juízo
condenatório definitivo (sem prejuízo da eventual possibilidade de uma exitosa
revisão criminal que, contudo, opera justamente para desconstituir uma coisa
julgada e não opera como recurso) e com isso superando-se o teor literal do
texto constitucional que exige o trânsito em julgado e — também — uma culpa
formada.
Mesmo
que se possa dizer que tal entendimento assume uma dimensão em regra mais
simbólica, é precisamente este argumento que reforça — salvo melhor juízo — a
tese aqui retomada, no sentido que não se deve subverter — ainda que com
legítimos objetivos — texto constitucional expresso que consagra direito e
garantia fundamental, ainda mais em existindo mecanismo alternativo legítimo na
nossa ordem jurídica e que basta ser aplicado com critério e rigor, mas sempre
de modo motivado na esfera do marco normativo jurídico-constitucional.
Ao
fim e ao cabo, o que aqui se reafirma é que no sistema legal brasileiro existem
instrumentos adequados e efetivos (quando bem manejados) para dar conta da real
necessidade de se combater uma impunidade seletiva e odiosa, especialmente onde
se está a saquear os cofres públicos e retirando do Estado a sua capacidade de
dar concretude aos objetivos fundamentais do artigo 3º da CF e da efetividade
dos direitos fundamentais, sem que se careça de recorrer à execução provisória
da pena.
Mas
o debate segue e o contraditório só faz crescer.
Ingo Wolfgang Sarlet é
professor titular da Faculdade de Direito da PUC-RS, desembargador no TJ-RS,
doutor e pós-doutor em Direito.
Revista
Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-ago-25/direitos-fundamentais-questao-regra-ou-principio-execucao-provisoria-pena
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