A
análise das decisões do STF que declararam a inconstitucionalidade da
diferenciação das regras de concorrência sucessória entre cônjuge e companheiro
(CC, artigo 1.790) e mandaram aplicar à união estável o artigo 1.829 do
CC/2002, conduz o intérprete por um caminho de dúvidas e de insegurança, pois
diversas questões remanescem obscuras, propiciando interpretações muitas vezes
colidentes.
Uma
dessas questões relaciona-se à modulação dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade do artigo 1.790. Com relação aos recursos extraordinários
878.694 e 646.721, o STF decidiu que “o entendimento ora firmado é aplicável
apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da
sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja
escritura pública”[1].
Destaca-se,
inicialmente, a atecnia da modulação proposta, por se afastar dos parâmetros
tradicionais e universais do direito intertemporal, a impor a regência da
matéria sucessória pela lei vigente à data da abertura da sucessão, de modo a
considerar como odiosa retroatividade a aplicação do novo entendimento aos
processos em curso, ou seja, às sucessões já abertas em data anterior, pouco
importando o estágio processual do inventário.
A
doutrina tradicional, em litania uníssona, afirma ser pela lei vigente no tempo
da abertura da sucessão, “que, em geral, se regulam as sucessões. Essa lei dirá
se o domínio e a posse da herança se transmitem aos herdeiros legítimos e
testamentários, pelo só fato do falecimento do de cujus, fixará a quota
hereditária disponível e determinará a capacidade sucessória”[2].
Ou
seja, as novas regras (e também uma nova interpretação) só valem para as
sucessões abertas após a entrada em vigor da lei posterior ou da mudança
jurisprudencial[3]. O momento exato em que ocorrido o evento morte constituirá
a linha divisória entre os dois sistemas. Assim, ainda que a lei ou
interpretação posterior tenha admitido outros herdeiros à sucessão, apenas
aqueles que já o eram à data do óbito partilharão a herança.
Nas
sucessões abertas antes da declaração de inconstitucionalidade, quando a norma
então vigente (artigo 1.790) impunha a partilha dos bens particulares
exclusivamente entre os descendentes, excluindo-se o companheiro sobrevivente,
essa é a regra que deveria prevalecer, em respeito à situação jurídica dos
demais herdeiros, que se tornou concreta com a abertura da sucessão. Roubier
distingue as situações jurídicas concretas em oposição às situações jurídicas
abstratas. Estas seriam próprias de “uma categoria mais ou menos numerosa de
pessoas, genericamente integradas num quadro ou grupo social pela lei, que lhes
será aplicável quando se realize certo ato ou fato jurídico”[4].
Praticado
o ato ou realizado o fato, a situação jurídica de abstrata passa a concreta.
Quando falamos que João é herdeiro de seu pai, Pedro, estando este ainda vivo,
estamos nos referindo à situação jurídica abstrata de herdeiro, que se
transmudará em uma situação jurídica concreta após a abertura da sucessão com o
óbito de Pedro. Antes do óbito, João será titular de uma mera expectativa de
direito. Após a morte de Pedro, torna-se titular efetivo dos direitos e deveres
que a lei vigente à data da abertura da sucessão lhe conferir e/ou impuser, os
quais não poderão, a princípio, serem suprimidos por lei posterior.
A
data de publicação da jurisprudência inovadora, que altera jurisprudência
anterior, especialmente nos casos de repercussão geral, constitui linha
divisória intransponível. Todos os atos e fatos pretéritos, praticados sob a vigência
do precedente superado, deveriam obrigatoriamente estar protegidos e não
poderiam ser atingidos pela nova decisão[5].
De
qualquer forma, retomando a análise da modulação realizada pelo STF, temos que
a referência ao “trânsito em julgado da sentença de partilha” não pode ser
interpretada de forma literal e absoluta, sob pena de atingir um universo de
outras situações já consolidadas, independentemente da conclusão do processo de
inventário. Basta citar, por exemplo, os negócios jurídicos comumente utilizados
nas operações de planejamento sucessório, especialmente contratos de doação e
de constituição de holdings patrimoniais, por meio dos quais se promove a
antecipação em vida dos quinhões hereditários. Ou ainda a partilha em vida,
prevista no artigo 2.018 do Código Civil. Muitos desses atos, realizados antes
da decisão do STF, levaram em conta a redação então vigente do artigo 1.790, a
excluir, expressamente, a concorrência sucessória do companheiro sobrevivente
com os descendentes e ascendentes, no tocante aos bens particulares do autor da
herança. Obedecidos os requisitos de validade vigentes quando de sua
celebração, tornaram-se “atos jurídicos perfeitos”, fora do alcance, tanto da
lei nova como da nova orientação jurisprudencial.
Portanto,
não se poderia admitir, sob pena de ferir de morte a própria segurança jurídica
que a modulação quis preservar, que tais atos e negócios jurídicos sejam
atingidos pela declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790, mesmo que o
processo de inventário esteja em curso ou que ainda não tenha sido lavrada
escritura de partilha.
Em
outras palavras, podem-se divisar diversas outras situações consolidadas que
ficarão ao abrigo da declaração de inconstitucionalidade, mesmo antes de
lavrada a escritura ou proferida a sentença de partilha nos autos do
inventário. São relações jurídicas que se constituíram e se consolidaram à luz
da lei censurada, de modo que a retroação dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade acarretaria prejuízos de difícil reparação aos jurisdicionados
e à sociedade.
A
decisão do STF pretendeu resguardar as situações já consolidadas ou
estabilizadas e foi esse, precisamente, o sentido da referência feita ao
“trânsito em julgado das sentenças de partilha”. O que se quis dizer, ou se
preferirmos, o que se quis modular, in concreto, foi a proteção da confiança e
da estabilidade das relações jurídicas.
É
de se afastar, pois, qualquer pretensão de exegese literal da referência ao
“trânsito em julgado da sentença de partilha”, de modo a prejudicar situações
jurídicas completamente idênticas àquelas que a modulação quis preservar. A
interpretação deve ser necessariamente teleológica, de que resulta aplicar-se a
modulação a casos que, embora aparentemente não mencionados no texto da
decisão, estão abrangidos no seu espírito.
Os
elementos lógico e sistemático devem fazer o espírito, a ratio, da decisão de
modulação prevalecer sobre a expressão literal da fórmula, ampliando a sua
aplicação a hipóteses que a redação do acórdão parece não abranger, mas que
indubitavelmente fazem parte do seu conteúdo, segundo aqueles elementos. Assim,
apesar de não incluídas expressamente as situações consolidadas no dispositivo
modulador, cabe ao intérprete e aplicador fazê-lo, lendo subjacentemente que a
declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 será “aplicável apenas aos
inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença
de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura
pública” quando não prejudicar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito, a
coisa julgada, o fato consumado e as situações consolidadas, para que se possa
compatibilizar a decisão com a cláusula pétrea constitucional do inciso XXXVI
do artigo 5º .
Em
resumo, a modulação dos efeitos da decisão do STF não pode ser aplicada “em
tiras”, isoladamente, interpretação meramente literal, fora de seu contexto
sistemático. As consequências seriam nefastas à própria efetividade das
decisões do STF, à medida em que proporcionaria o enfraquecimento de sua
autoridade, pela vulneração do princípio da segurança jurídica, ante a
desnaturação dos institutos do ato jurídico perfeito e do direito adquirido e
violação do princípio da irretroatividade, veiculado em cláusula pétrea.
[1]
Vide decisão proferida no Recurso Extraordinário 878.694, que se reproduziu no
Recurso Extraordinário 646.721 e deu origem ao Tema 809 de repercussão geral.
[2]
BATALHA, Wilson de Souza Campos. Direito Intertemporal. Rio de Janeiro:
Forense, 1980, p. 400.
[3]
A mudança de interpretação da lei pelos tribunais produz os mesmos resultados
que a mudança legislativa, como bem ressalta Suárez Collía: “Se puede
argumentar, que estos cambios jurisprudenciales no se ven afectados por la
prohibición de irretroactividad de las leyes penales, toda vez que sólo cambia
el criterio de interpretación; pero es evidente que ello supone en la práctica
los mismos resultados que una modificación legislativa, razón que los hace
desaconsejables, pero indudablemente han de ser admitidos pues en otro caso los
tribunales se verían ‘atados’ por sus anteriores decisiones, y se produciría
una ‘fosilización’ de la jurisprudencia” (SUÁREZ COLLÍA, José M.ª. El principio
de la irretroactividad de las normas jurídicas. Madrid: Atlas, 1994, p.67).
[4]
MAXIMILIANO, Carlos. Direito intertemporal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1955, p. 12.
[5]
Para Heleno Taveira Torres, “o momento da vigência da jurisprudência inovadora
(por repercussão geral, especialmente), que altera jurisprudência anterior,
deverá ser o marco decisivo. Todos aqueles atos-fatos pretéritos (porque
ocorridos antes do início da vigência da nova jurisprudência), sob a vigência
do precedente superado, deverão ser protegidos. Resulta daí que nem os fatos,
propriamente ditos, nem os efeitos que deles decorrem poderão ser atingidos
pela mudança de orientação, pela jurisprudência inovadora. A modulação dos
efeitos da decisão nova deve ser a regra, tal a força do princípio da
irretroatividade entre nós. Assim como a confiança é pressuposta em relação às
leis, o mesmo raciocínio, mais objetivo, deverá comandar a aplicação do
princípio da irretroatividade às modificações jurisprudenciais” (Segurança
jurídica do sistema constitucional tributário. Tese apresentada ao concurso público
de títulos e provas para provimento do cargo de professor titular de Direito
Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo,
2009, p.705).
Mário
Luiz Delgado é advogado, professor da Faculdade Autônoma de Direito de São
Paulo (Fadisp) e da Escola Paulista de Direito (EPD), doutor em Direito Civil
pela USP, mestre em Direito Civil Comparado pela PUC-SP e especialista em
Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de
Direito de Família (IBDFam), diretor do Instituto dos Advogados de São Paulo
(Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC).
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-jul-08/processo-familiar-direitos-sucessorios-uniao-estavel-situacoes-consolidadas
Nenhum comentário:
Postar um comentário