Estado Democrático de
Direito
Após
as revoluções liberais ou burguesas – inglesa, francesa e americana –, podemos
observar que o Estado moderno passou a existir sob duas configurações básicas:
Estado Democrático de Direito – no qual as decisões políticas são adotadas por
maioria, garantindo-se os direitos contramajoritários, e em que os direitos são
estabelecidos não apenas no plano político, mas também no plano jurídico,
principalmente no período pós-guerra, quando se adotaram constituições rígidas
e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 – e Estado de exceção.
Muito
se fala nas crises econômicas cíclicas dos Estados capitalistas, mas pouco se
analisam as crises políticas que periodicamente neles ocorrem, as quais são
desencadeadoras de paradigmas autoritários de Estado. O Estado de exceção é o
segundo modelo geral que o Estado moderno adquiriu até o fim do século XX.
Estado de exceção
A
expressão Estado de exceção surge na Constituição de Weimar, de 1919, que
declara a Alemanha uma república democrática parlamentar. Em seu artigo 48, a
Carta apresenta um instituto jurídico que serviria ao atendimento de uma
situação fática de emergência. Essa emergência poderia ter como causa um
cataclismo natural, gerador de calamidade pública, ou uma situação de guerra em
que houvesse grave ameaça à segurança e à paz da sociedade. Nessas situações,
poderia haver a declaração do Estado de exceção, que suspenderia
provisoriamente os direitos dos cidadãos para atender a emergência em questão.
Portanto, a expressão “Estado de exceção” tem origem no direito constitucional
alemão, diretamente vinculada ao ato de suspender direitos e conceder ao Estado
maior soberania.
As ditaduras, os
bonapartismos e o nazifascismo
Esse
conceito, no entanto, acabou sendo apropriado pela Teoria Geral do Estado e
passou a ser utilizado como sinônimo das várias conformações de Estado autoritário
surgidas a partir das revoluções ditas burguesas ou liberais. O jurista e então
Professor da Sorbonne, Nico Poulantzas, por exemplo, chamava de Estado de
exceção um gênero de Estado que inclui as ditaduras, os bonapartismos e o
nazifascismo. O conceito passa a caracterizar um modelo de Estado autoritário e
totalitário que se constitui a partir da ideia do ataque do inimigo.
Regime jurídico de
guerra transplantado para dentro das nações
Carl
Schmitt, um dos principais pensadores do tema, é quem teoriza como esse regime
jurídico da guerra, relacionado ao ataque do inimigo e à necessidade de
combatê-lo, é transplantado para o campo interno das nações, para a relação
entre Estado e indivíduo ou grupo de pessoas, e não mais somente entre Estados.
Schmitt constrói uma teoria do Direito e do Estado que fala da possibilidade de
se tratar como inimigos indivíduos ou grupos que estejam associados à ideia de
ameaça à unidade e à homogeneidade de um determinado povo. Todos que ofereçam
risco a essa unidade social ou à pureza que dela emana podem ser tratados como
inimigos e, assim, ter seus direitos suspensos. É como se Schmitt imaginasse
que o Estado de Direito e os direitos são uma boa forma de reger a vida
política em tempos de paz. Porém, havendo risco à segurança e à unidade do
povo, a preservação do Estado deveria se sobrepor aos direitos individuais.
Suspensão de direitos,
sob pretexto de combater o inimigo
O
modelo que veio a ser nomeado como Estado de exceção é o que prevalece desde o
bonapartismo e vai até o fim do século XX, que podemos arbitrariamente fixar em
1989, com a queda do muro de Berlim. Durante todo esse período, o que se
observou foi o autoritarismo manifestando-se por meio de governos e Estados de
exceção que, sob o pretexto de combater o inimigo, suspenderam os direitos
individuais e o Direito pelo prazo necessário ao enfrentamento desse inimigo.
Trata-se, portanto, de soberanias excepcionais e provisórias, que subtraem os
direitos da sociedade como um todo ou, em alguns casos, apenas de determinados
grupos sociais. Importante dizer que esses governos de exceção, totalitários,
assenhoraram-se do poder não só pela via do golpe militar, como ocorreu na
América Latina, mas também pela via democrática, como é o caso do nazismo e do
fascismo na Europa
A transformação dos
modelos de autoritarismo pelo neoliberalismo
O
surgimento do neoliberalismo, que começa a ser gestado a partir das décadas de
60 e 70, com o capital financeiro passando cada vez mais a assumir um papel
central no capitalismo, vai transformando os modelos de autoritarismo. Não que
o autoritarismo acabe, mas vai se modificando. A experiência do nazismo, do
fascismo e das ditaduras militares, representativos da barbárie, do genocídio,
de formas extremamente desumanas de se tratar o ser humano, contrapôs a ideia
de Estado de exceção à ideia de civilização.
Pós-guerra: direitos
humanos deixam de ser meramente formais
No
pós-guerra se constitui um pacto humanístico e democrático que refunda o
entendimento de democracia, que deixa de ser interpretada como um conceito
meramente formal de procedimento de disputa e debate pacífico entre grupos
sociais que levam a uma decisão majoritária, passando a ser concebida também
como regime que dá garantia a direitos, ou seja, no qual essa decisão
majoritária não agride os chamados direitos negativos, os direitos de
liberdade. Os direitos de liberdade, integrados numa noção de direitos humanos,
deixam de ser mera declaração política e passam a ser imposição jurídica
superior na estrutura de Estado, por meio das constituições rígidas, no plano
interno e, no plano internacional, pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos.
Após
o trauma que a segunda guerra mundial produziu, sobretudo, no mundo ocidental,
não havia condições políticas para se defender ditaduras e formas autoritárias
de governo, o que fez com que regimes de exceção perdessem significativamente
sua capacidade de validação discursiva.
O autoritarismo sob
nova fórmula
O
autoritarismo passa então a se manifestar sob uma nova fórmula, que são as
medidas de exceção presentes no interior das democracias. Governos declarados
democráticos, nos quais estruturas próprias da democracia, como eleição e voto
são mantidas, passam a produzir medidas características de regimes
autoritários, totalitários, elegendo e combatendo inimigos, suspendendo
direitos e estabelecendo um regime jurídico próprio da guerra na relação entre
Estado e indivíduo.
Europa e Estados Unidos
Na
Europa e nos Estados Unidos essas medidas de exceção, em geral, são ou
produzidas pelo poder legislativo ou pelo próprio poder executivo, sempre no
sentido de fortalecer este último como agente soberano. Outro aspecto do regime
jurídico da exceção no primeiro mundo é o fato de as medidas de exceção estarem
inseridas geralmente no ambiente de um regime jurídico especial de proteção à
segurança nacional, que elege como inimigo o estrangeiro, o “terrorista”
identificado com o muçulmano, por exemplo.
América Latina
Na
América Latina há diferenças essenciais. Aqui as medidas de exceção são
capitaneadas ou produzidas pelo sistema de justiça e contam com forte respaldo
da mídia para obtenção de apoio social. Há também medidas autoritárias
produzidas pelo legislativo e pelo executivo, mas elas não são preponderantes
na estrutura do sistema. Além disso, não há a criação de um regime especial de
segurança nacional que defina o alcance dessas medidas de exceção e o inimigo a
ser combatido. O inimigo aqui não é o estrangeiro, mas sim o pobre, associado à
figura do bandido. As medidas se produzem rotineiramente no interior do
ordenamento do direito penal, o que traz um impacto muito mais autoritário no
âmbito do funcionamento estatal.
O processo penal de
exceção
Essas
características específicas se manifestam inicialmente através da política de
guerra às drogas, implantada nos EUA na década de 1970, e importada pelo Brasil
no início dos anos 1990, redundando no encarceramento em massa da população
pobre e periférica, dentro do que podemos definir como a primeira modalidade de
medidas de exceção produzidas pelo nosso sistema de justiça: o processo penal
de exceção – expressão cunhada pelo professor Fernando Hideo Lacerda para
designar a utilização da forma democrática do processo penal para produzir
conteúdo tirânico próprio de um agenciamento autoritário das funções estatais.
O direito de defesa
existe apenas no plano formal
O
processo penal se dá como fraude ou farsa, já que o direito de defesa,
princípio jurídico fundamental constitucionalmente garantido, existe apenas no
plano formal. Vale lembrar que 40% dos aprisionados no Brasil estão
encarcerados de forma provisória, ou seja, sem que tenham recebido sequer uma
sentença de primeiro grau. Proporção essa relativa a uma população carcerária
que quadruplicou de 1990 para cá, chegando ao terceiro lugar no ranking
mundial, em termos absolutos, com mais de 726 mil pessoas presas. Ao mesmo
tempo, o aprisionamento em massa fortalece o crime organizado, fundamentando uma
ação estatal mais agressiva para combatê-lo, gerando assim um ciclo não
virtuoso de sustentação dos mecanismos de violência. Como resultado, vemos o
número de mortes violentas decuplicar no país desde o fim da década de 1980 e a
taxa de homicídios mais do que quadruplicar, em valores proporcionais. Segundo
o Atlas da Violência 2018, publicação do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômica
Aplicada) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 553 mil
pessoas foram assassinadas no país nos últimos 11 anos. O total de mortos é
maior que o da Síria, que enfrenta sete anos de guerra, contabilizando cerca de
500 mil mortos, de acordo com estimativa da ONU.
O Mensalão: a inclusão
da política nos processos penais de exceção
Outro
fenômeno ocorrido no Brasil, desde o chamado “Mensalão”, foi a migração dos
processos penais de exceção para o ambiente da política. Lideranças políticas,
preponderantemente de esquerda, e também algumas lideranças empresariais,
passam a ser vítimas de processos penais de exceção, nos quais se cumpre apenas
aparentemente o rito formal. O exemplo mais emblemático certamente é a prisão
do ex-presidente Lula, cujo processo penal se desencadeou para a produção de um
resultado político autoritário, objetivando a persecução política de um
inimigo, e não a punição de um cidadão que errou.
As interrupções do
processo democrático
Os
processos penais de exceção não são a única modalidade de medidas autoritárias
praticadas na América Latina. Na última década, medidas de exceção facilitadas,
confirmadas ou mesmo produzidas pelo sistema de justiça com vistas a
interromper o ciclo democrático se fizeram presentes por aqui. Em Honduras, o
mandato do presidente Manuel Zelaya foi suprimido pelo parlamento com a
confirmação da Corte Suprema do país que, inclusive, ordenou sua prisão sem
oitiva prévia. No Paraguai, o presidente Fernando Lugo foi retirado do cargo
por meio de um processo de impeachment em que não se observaram minimamente os
seus direitos de defesa. E aqui no Brasil, assistimos recentemente à
destituição da presidente Dilma, em um processo comandado pelo legislativo e
referendado pelo judiciário, que foi responsável também por criar o ambiente
político gerador do clima de apoio social próprio a essa medida de exceção. A
produção da medida, no plano formal, se deu pela via legislativa, mas o agente
da exceção foi o sistema de justiça.
Não
se pode deixar de mencionar que, na América Latina, até mesmo em governos de
esquerda, medidas de exceção são praticadas em processos penais contra lideranças
de oposição, como é o caso da Venezuela.
Erosão de significado
do pacto democrático
De
forma mais abrangente, o que se percebe no mundo contemporâneo é o esvaziamento
de sentido dos direitos humanos e fundamentais e das constituições do pós-guerra,
fenômeno apontado por diversos estudiosos. Ronald Dworkin, jurista
norte-americano, partindo do conflito entre republicanos e democratas nos EUA,
fala da perda de common grounds, de consensos civilizatórios mínimos, para
mostrar a erosão de significado desse pacto democrático humanista estabelecido
no pós-guerra.
Bobbio, Ferrajoli e
Boaventura Sousa Santos
Norberto
Bobbio, a partir do caso Berlusconi, desvenda o que ele chama de “novos
despotismos”. Luigi Ferrajoli se refere a esse movimento como “processo
desconstituinte” fruto de “poderes selvagens”. O professor Boaventura Sousa
Santos chama de “democracia de baixa intensidade”.
Rafael Valim e Rubens
Casara
Aqui
no Brasil, Rafael Valim chama a atenção para o “estado de exceção como forma
jurídica do neoliberalismo”. Rubens Casara usa o termo “estado
pós-democrático”, e eu classifico o fenômeno como medidas de exceção produzidas
no interior do regime democrático.
A aparência de respeito
às instituições e ao Estado de Direito
É
necessário ressaltar que essa produção de medidas de exceção geradoras de um
poder desconstituinte é uma forma mais aperfeiçoada de autoritarismo. São
medidas de alcance cirúrgico, atingindo grupos ou pessoas segundo os interesses
de quem as pratica, e mais flexíveis no plano político, convivendo com
institutos e medidas democráticas e mantendo, portanto, uma aparência de
respeito às instituições e ao Estado de Direito. Não é raro que um mesmo
tribunal produza uma decisão que observe o princípio democrático e também
medidas de exceção.
A
convivência entre estruturas autoritárias e democráticas em um mesmo sistema,
ambas tendo caráter estrutural, gera uma complexidade que torna o fenômeno de
difícil percepção. Isso porque não se trata de mera disfunção de um Estado
democrático em pleno funcionamento, o que seria natural. É, na verdade, como
alude Ferrajoli, uma patologia instalada, um novo paradigma capaz de obter uma
eficácia autoritária sem o ônus de um governo declaradamente autoritário.
A dificuldade em
localizar o agente
Os
mecanismos autoritários das medidas de exceção foram de certa forma
aperfeiçoados em relação aos dos governos de exceção. Assim, eles impõem maior
dificuldade em localizar o agente, já que não há o lugar do ditador, e
conseguem ter maior justificação discursiva no âmbito da narrativa histórica,
já que não existe a figura da ditadura, que é mais facilmente identificável e
passível de ser contestada e combatida.
A grande tarefa
democrática e humanista
Portanto,
hoje, a grande tarefa democrática e humanista da contemporaneidade é defender
com veemência os direitos de liberdade face às medidas de exceção, incluindo
esforços no campo discursivo para jogar luz e explicitar onde e quais são esses
mecanismos autoritários que esfacelam os direitos fundamentais de todos nós
diuturna e sorrateiramente, para que possam ser denunciados e combatidos.
https://jornalistaslivres.org/medidas-de-excecao-como-novo-paradigma-autoritario/
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