O
Tribunal de Justiça e o Ministério Publico de São Paulo são politizados? São
partidarizados? Contribuem ou atrapalham o aprofundamento da democracia? Essas
foram as questões que Luciana Zaffalon buscou responder, em sua tese de
doutorado de 2017, tendo como objeto de análise o Sistema de Justiça do Estado
de São Paulo e os impactos sociais da administração da justiça nos campos da
segurança pública e penitenciário.
“O
Poder Judiciário e o Ministério Público do Estado de São Paulo agem
politicamente como se partidos políticos fossem. Isto é, representam e protegem
uma fração da sociedade.” Essa é sua principal conclusão
O
estudo de Zaffalon nos ensina que Geraldo Alckmin teve papel destacado, no
período analisado, entre 2012 e 2016, como o protagonista das reformas
legislativas que beneficiaram as carreiras jurídicas. Diz o estudo: “São os
atos de vontade do governador do Estado de São Paulo que tornam possível o
funcionamento aristocrático da justiça local, viabilizando a evolução da
organização corporativa do poder em detrimento da cidadania.”
O
parágrafo final da tese conecta os ensinamentos de Boaventura de Sousa Santos
com a realidade do Sistema de Justiça paulista: “Lembramos por fim, em diálogo
uma vez mais com Boaventura de Sousa Santos, que ‘nunca as leis gerais e
universais foram tão impunemente violadas e seletivamente aplicadas, com tanto
respeito aparente pela legalidade’. Ao analisar as contribuições da justiça
local para o aprofundamento democrático, concluímos que o Estado de São Paulo
leva ao limite o postulado de Boaventura de Sousa Santos que afirma que
“vivemos em sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas”.
Reproduzimos
a entrevista que Luciana Zaffalon concedeu à jornalista Débora Melo da revista
Carta Capital, em julho de 2017.
*****
“Há
uma dinâmica que financia a atuação elitista da Justiça paulista”
Pesquisadora
da FGV revela como o Judiciário atua para blindar o Executivo e, assim, garante
benefícios corporativos para além do teto constitucional
Partindo
da ideia de que o sistema de Justiça pode tanto favorecer o aprofundamento
democrático quanto criar obstáculos ao aperfeiçoamento da democracia, a
pesquisadora Luciana Zaffalon, da Fundação Getulio Vargas, se propôs a
desvendar o que chama de processo de politização do Judiciário paulista em sua
tese de doutorado em administração pública e governo.
Ao
mesmo tempo em que atua de forma a blindar a política de segurança pública do
governo do Estado –todo o período analisado diz respeito à gestão de Geraldo
Alckmin (PSDB)–, o Judiciário paulista negocia formas de garantir a manutenção
e a ampliação de seus benefícios corporativos. Não por acaso, a única situação
em que o Executivo foi derrotado pelos desembargadores em 100% dos processos
foi quando questionou a aplicação do teto remuneratório das carreiras do
serviço público.
“Os
números demonstram que as verbas estão chegando e os pedidos do governo estão
sendo atendidos”, disse Zaffalon em entrevista a CartaCapital.
“Todo
o espírito da tese é dizer de que maneira os interesses se confundem, de que
maneira os interesses corporativos estão se sobrepondo às garantias de
cidadania das pessoas mais vulneráveis do Estado, sejam as que estão privadas
de liberdade, sejam as que estão nas periferias das grandes cidades e são
afetadas por políticas de segurança dramaticamente cruéis”, continuou a
advogada, que por quatro anos atuou como Ouvidora-Geral da Defensoria Pública
do Estado de São Paulo (2010-2014).
Intitulada
Uma Espiral Elitista de Afirmação Corporativa: blindagens e criminalizações a
partir do imbricamento das disputas do sistema de Justiça paulista com as
disputas da política convencional, a tese apresentada à FGV revela que a
presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) é bastante solícita aos
pedidos do Executivo do Estado. A suspensão de decisões que contrariam os
interesses do governo é comum na Corte.
A
pesquisa leva em conta as duas últimas gestões do TJ-SP (de 2012 a 2015) e
analisa os impactos sociais das decisões da Justiça na segurança pública e no
sistema penitenciário. Uma das conclusões do estudo é que o Judiciário paulista
atua de forma “antidemocrática”: representa e protege as elites por meio do
corporativismo e reserva às classes populares as forças de segurança e o
sistema prisional.
CartaCapital:
O que a levou a fazer essa pesquisa?
Luciana
Zaffalon: Eu sempre tive clareza de que o sistema de Justiça tanto pode
favorecer o aprofundamento democrático como pode obstaculizar uma
democratização mais profunda da nossa sociedade. E foi quando eu fui trabalhar
como ouvidora externa da Defensoria Pública que eu passei a compreender
dinâmicas que estavam, até então, completamente invisíveis para mim a respeito
do funcionamento de uma instituição de Justiça e das relações que são mantidas
com diferentes entes como, por exemplo, o Executivo do Estado.
Qual
a principal conclusão a que você chegou sobre o funcionamento dos três Poderes
em São Paulo?
Há
um imbricamento muito profundo entre os três Poderes, o que cria uma esfera de
atuação elitista da Justiça, uma atuação mobilizada quase invariavelmente por
interesses corporativos.
Que
obstáculos você encontrou?
Foi
impossível trabalhar com as folhas de pagamento do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo. As folhas de pagamento do Ministério Público estavam
disponíveis em planilhas de Excel, facilmente manuseáveis. Com a Defensoria
Pública, os dados estavam em PDF, o que contraria a Lei de Acesso à Informação,
mas ainda assim foi possível baixar e converter os arquivos.
Com
relação ao tribunal, isso foi absolutamente impossível. Os arquivos foram
disponibilizados em formato de imagem, com inúmeras páginas, e não estavam em
ordem alfabética. Então eu acabei usando os dados publicados pelo CNJ [Conselho
Nacional de Justiça].
O
que isso representa?
São
decisões institucionais que demonstram onde está o compromisso e onde não está
o compromisso. E o compromisso não está com a transparência.
Onde
está o compromisso?
O
que fica claro é que, de fato, a gente observa uma espiral elitista de
afirmação corporativa.
Quais
foram as maiores surpresas que você teve durante a realização desse trabalho?
A
única surpresa positiva foi o fato de as planilhas remuneratórias do Ministério
Público estarem no formato adequado. As mais dramáticas dizem respeito ao
volume de suplementações orçamentárias recebidas pelo Tribunal de Justiça. Cabe
à Assembleia Legislativa analisar a abertura desses créditos, mas, durante todo
o período analisado, a Assembleia transferiu para o Executivo essa
prerrogativa. Isso causa um prejuízo concreto, porque a suplementação
orçamentária passa a ser negociada dentro do gabinete do governo, fugindo de qualquer
possibilidade de controle público.
Uma
das principais surpresas que eu tive foi o fato de o tribunal ter recebido 21%
do total de suplementações orçamentárias do Estado em um único ano, em 2015. É
um volume muito grande de dinheiro para ser negociado dessa forma. Também
chamou a atenção o fato de apenas 3% do Ministério Público não receber acima do
limite do teto constitucional [33.700 reais].
E
quais outros aspectos negativos você encontrou?
A
surpresa que me fez sentir um mal estar físico durante a execução da pesquisa
foi o caso da “suspensão de segurança”, figura processual que garante que
qualquer ente público possa pedir direto à presidência do tribunal a suspensão
dos efeitos de uma decisão de primeira instância que lhe contrarie.
Eu
quis entender de que maneira a presidência do TJ, nas gestões [Renato] Nalini e
[Ivan] Sartori, se posicionou diante dos pedidos do governo Estado no período
analisado. O meu recorte de análise foi segurança pública e sistema prisional.
Eu tomei o cuidado de ser o mais conservadora possível na definição da minha
metodologia, para não correr o risco de ser acusada de qualquer enviesamento.
Então
eu analisei todos os casos, de todos os entes públicos que pediram para a
presidência do tribunal suspender os efeitos de uma decisão de primeira
instância que lhe contrariava. A média de suspensão observada no período foi de
41%, mas alguns casos fogem completamente dessa média. E o que me deixou
abalada diz respeito à forma como a presidência do tribunal atendeu aos pedidos
do governo do Estado com relação à garantia de direitos mínimos para as pessoas
privadas de liberdade.
Do
que eu estou falando? Eu estou falando da observância do Estatuto da Criança e
do Adolescente, de problemas de superlotação na Fundação Casa, problemas com
banheiros e com ventilação, de garantia de banho quente para presos com
tuberculose, por exemplo, de garantia de atendimento médico e de instalação de
equipe mínima de saúde. Em uma unidade prisional morreram 60 pessoas, por
questões de saúde, em um único ano. É disso que eu estou falando.
De
todos os casos analisados, em apenas um caso que dizia respeito à garantia de
direitos para pessoas privadas de liberdade a presidência do tribunal não
atendeu ao pedido do governo.
A
que você atribui isso?
À
negociação de orçamento, à suplementação orçamentária. Todo o espírito da tese
é justamente dizer de que maneira os interesses se confundem, de que maneira os
interesses corporativos estão se sobrepondo às garantias de cidadania das
pessoas mais vulneráveis do Estado, sejam as que estão privadas de liberdade,
sejam as que estão nas periferias das grandes cidades e são afetadas por
políticas de segurança dramaticamente cruéis.
Enquanto
isso, as instituições de Justiça estão em negociações que garantam os seus
benefícios corporativos, independentemente de isso representar um passo atrás
na luta pela garantia de direitos das pessoas que mais precisam delas.
Como
eu disse, o Tribunal de Justiça chegou a receber 21% das suplementações
orçamentárias do Estado. Os números demonstram que as verbas estão chegando e
os pedidos do governo estão sendo atendidos. Então há uma dinâmica que financia
a atuação elitista do sistema de Justiça e que está, na outra ponta,
representando o abandono da sua função primordial, que é garantir o Direito e
funcionar como uma parte apartada do Executivo no mecanismo de execução de peso
e contrapeso.
Por
que o recorte foi feito na segurança pública e no sistema penitenciário?
Porque
é a parte mais dramática. Há dois grandes campos abarcados na pesquisa. Um é a
forma como sociedade controla o Estado, porque não podemos esquecer que as
carreiras jurídicas são compostas por funcionários públicos, que têm que ser
cobrados como tal.
De
outro lado, temos o controle que o Estado exerce sobre a população, e o
elemento mais cruel disso, mais pesado, se dá por meio da atuação das forças
policiais, pelo poder de força do Estado. Isso se dá tanto na atuação das
polícias quanto na privação de liberdade.
Uma
questão em relação ao Ministério Público, por exemplo, é que a Constituição
Federal atribui a esse órgão a competência para fazer o controle externo da
atuação das polícias. Mas, ao olhar para o Estado de São Paulo, nós observamos
que os últimos sete secretários da Segurança Pública são oriundos do Ministério
Público. Ou seja, o órgão que deveria fazer o controle externo das polícias se
converte no gestor da política de segurança pública.
Essa
relação entre os três Poderes ajuda a explicar a permanência do PSDB no governo
de São Paulo por mais de 20 anos?
Eu
acho que a falta de freios e contrapesos afeta o aprofundamento democrático e
gera resultados como esse, como a falta de alternância.
Notas
1- A entrevista de Luciana
Zaffalon, feita por Débora Melo, foi originalmente publicada em
https://www.cartacapital.com.br/politica/ha-uma-dinamica-que-financia-a-atuacao-elitista-da-justica-paulista.
2- A íntegra da tese “Uma
espiral elitista de afirmação corporativa: blindagens e criminalizações a
partir do imbricamento das disputas do sistema de justiça paulista com as
disputas da política convencional”, de autoria de Luciana Zaffalon Leme
Cardoso, está disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/18099.
3- Esse texto tem o selo
007-2018 do Observatório do Judiciário.
4- Para ver a apresentação
e o convite à participação no Observatório do Judiciário, veja:
https://jornalistaslivres.org/observatorio-do-judiciario-convidamos-voce-para-participar/
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