Há
40 anos, tivemos dois marcos significativos no Direito de Família que o fizeram
chegar aonde chegou hoje, permitindo que novas estruturas conjugais e parentais
se apresentassem no mundo jurídico.
Primeiro,
a Emenda Constitucional 9 de 1977, introduzindo o divórcio no Brasil, quebrando
o princípio da indissolubilidade do casamento, instalando a autonomia do casal
e dando um passo adiante em direção ao Estado laico, revogando a regulamentação
divina do matrimônio. Afinal, o amor às vezes acaba para renascer em outro
lugar. E foi assim que começou a surgir novas conjugalidades, apesar da grande
resistência e dificuldade de muitos em aceitar tal realidade. E isso é um
caminho sem volta. Surgirão ainda outras formas de conjugalidades que a nossa
vã filosofia nem consegue imaginar.
O
outro marco histórico, que provocou uma verdadeira revolução na medicina e no
Direito, foi o nascimento do primeiro bebê de proveta, surgindo a partir daí
novas formas de parentalidade. Essas famílias constituídas com a ajuda de
técnicas de reprodução assistida denominam-se famílias ectogenéticas (cf.
Dicionário de Direito de Família e Sucessões – Ilustrado, Ed. Saraiva, P. 328).
Desde
que a primeira criança veio ao mundo por meio dessa técnica — a inglesa Louise
Brown, em 25/7/1978 —, as formas de fertilizações in vitro evoluíram muito.
Estima-se que mais de 8 milhões de pessoas no mundo são fruto de reprodução
assistida, por mais que ainda sejam caras e inacessíveis tais técnicas. No
Brasil, foram feitas mais de 40 mil fertilizações in vitro apenas em 2017.
Quando
começaram a nascer os primeiros “bebês de proveta”, expressão em desuso em
razão de seu significante pejorativo, dizia-se que eles não tinham alma. E
nessa mistura de ignorância e aprisionamento a dogmas religiosos e morais nasce
o preconceito. A ignorância é a mãe do preconceito. Mas, superados esses
obstáculos e melhoradas as técnicas médicas, a revolução e a evolução
continuam. E o Direito ainda vive o seu processo histórico de regulamentação
das consequências jurídicas daí decorrentes. Ainda não há lei aprovada pelo
Congresso Nacional regulamentando ou estabelecendo parâmetros e limites para
essas técnicas. E não haverá tão cedo. Apenas a Resolução 2.168/2017 do
Conselho Federal de Medicina.
O
CNJ, por meio da Resolução 63/2017, estabelece em seu artigo 17 que será
indispensável, para fins de registro e de emissão da certidão de nascimento, a
apresentação dos seguintes documentos: (...)§ 1º Na hipótese de gestação por
substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na
declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso
firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação.
Mas
a vida é muito maior que o Direito, e, com ou sem legislação, as famílias
ectogenéticas seguem se constituindo e se adaptando a essa realidade. Por
exemplo, antes da referida Resolução 63/2017 do CNJ, uma criança, nascida de
útero de substituição, saía do hospital com a Declaração de Nascido Vivo (DNV)
em nome de quem a gestou, e não de sua verdadeira mãe, o que era um empecilho
ao registro de nascimento. Para evitar essas dificuldades e registrar a criança
em nome da genitora, era necessário pedir autorização judicial. Isso às vezes
deixava a criança sem registro por muito tempo. Essas “barrigas de aluguel”,
expressão popular para designar a gravidez em útero de substituição, só podem
ser feitas entre parentes até 4º grau (mãe, irmãs, tias e primas), de acordo
com a Resolução 2.168/2017 do CFM. Esse contrato é sempre tácito e nunca
escrito, pois se pressupõe nessas relações familiares uma confiança que
dispensa formalidades, mas não deixa de ser um contrato.
Contratos
de geração de filhos vão além dessas formações de famílias ectogenéticas já
consideradas comuns, e cujo preconceito inicial já foi praticamente superado. O
problema está nas novas configurações familiares em que o contrato para a
geração de filhos ultrapassa as concepções morais tradicionais quando vêm
acompanhadas de um conteúdo moral e religioso. É o caso do útero de
substituição entre pessoas que não são parentes. Assim, brasileiros têm sido
obrigados a irem a outros países, como Índia, Ucrânia, Rússia, EUA (29 estados)
e Nepal, e o estado de Tabasco, no México, para poderem ter seus filhos
biológicos. Mas isso só tem sido possível para pessoas com poder aquisitivo
alto. Os de médio e baixo têm feito na clandestinidade, ou ficam sem filhos
biológicos. É a mesma história do aborto no Brasil: só não existe para mulheres
pobres. Se a gestação fosse no homem, certamente esse mercado já estaria
regulamentado.
Uma
outra forma de família, que também foge dos padrões tradicionais e ganhou
visibilidade em razão da internet, e com isso tem crescido muito, é a
coparentalidade. Essa nova expressão designa a família parental cujos pais se
encontram apenas para ter filhos, de forma planejada e responsável, para
criá-los em sistema de cooperação mútua, sem relacionamento conjugal ou sexual
entre os pais (veja aqui e aqui). É conveniente que esses contratos de geração
de filhos sejam escritos, deixando regras bem claras, como o nome a ser dado à
criança que gerarão, convivência, sustento etc. É claro que essas cláusulas
contratuais poderão ser relativizadas, ou mesmo modificadas em razão de uma
realidade fora do planejado ou acidentes de percurso. Não descaracteriza a
coparentalidade se os parceiros fizerem “inseminação caseira”, ou mesmo tiverem
relação sexual com o único fim da procriação. Essas parcerias de
paternidade/maternidade se apresentam, também, como uma alternativa à geração
de filhos de pai de doador anônimo e às chamadas “produções independentes”.
A
revolução da biotecnologia iniciada há 40 anos tem proporcionado também um
outro tipo de contrato de geração de filhos, que deságua na multiparentalidade.
A parentalidade estabelecida entre três ou mais pessoas, advinda da
socioafetividade em que o padrasto/madrasta registra o filho de outro,
acrescentando seu nome à certidão de nascimento, seja porque já falecido ou
não, já foi totalmente absorvido pelo ordenamento jurídico brasileiro,
inclusive pelo STF (RE 898.060), e até mesmo pelo Conselho Nacional de Justiça
(Provimento 63/2017). Também na adoção multiparental não há mais resistências. O
que ainda causa indignação é a multiparentalidade na família ectogenética,
como, por exemplo, duas mulheres casadas entre si, ou que vivem juntas, em vez
de buscar um doador anônimo do material genético, encontram um amigo que faz
tal doação sob condição de também ser o pai da criança.
Essas
novas estruturas conjugais e parentais nos remetem a uma ideia de desordem da
família e de que essas novas representações sociais de família produzirão
filhos infelizes, desajustados, problemáticos e casais promíscuos. Na verdade,
o que está em desordem, em crise, é a família nuclear burguesa patriarcal, que
sobreviveu às custas da opressão e submissão da mulher, que não era considerada
sujeito de desejos nem de direitos (até 1964, era relativamente capaz — Lei
4.121/62). Essa família idealizada, do passado, apesar da nostalgia que traz
consigo em razão do sentimento de amparo que transmitia, não tem mais lugar em
nossa sociedade. Apesar disso, a família foi, é e continuará sendo o núcleo
básico da sociedade, isto é, o núcleo estruturante do sujeito.
Para
uma criança, basta que tenha alguém que exerça função paterna e materna, ou
seja alguém que exerça amorosamente cuidados e coloque limites, e assim esta
família estará estruturando edipicamente o sujeito. E é nesta estruturação
psíquica chamada família (Lacan) que a criança vai se deparar com o desejo do
outro que a constituiu e, consequentemente, se deparar com o enigma do próprio
desejo, e então tornar-se sujeito. Seja lá como for, tradicional ou fora dos
padrões, todas as famílias têm como função primordial ser o locus de formação
do sujeito, e continua sendo o lugar seguro e de amparo que todos sonham e
ninguém quer abrir mão.
Rodrigo
da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de
Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e
autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.
Revista
Consultor Jurídico
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