segunda-feira, 20 de agosto de 2018

FAMÍLIAS ECTOGENÉTICAS E O CONTRATO DE GERAÇÃO DE FILHOS. Por Rodrigo da Cunha Pereira


Há 40 anos, tivemos dois marcos significativos no Direito de Família que o fizeram chegar aonde chegou hoje, permitindo que novas estruturas conjugais e parentais se apresentassem no mundo jurídico.

Primeiro, a Emenda Constitucional 9 de 1977, introduzindo o divórcio no Brasil, quebrando o princípio da indissolubilidade do casamento, instalando a autonomia do casal e dando um passo adiante em direção ao Estado laico, revogando a regulamentação divina do matrimônio. Afinal, o amor às vezes acaba para renascer em outro lugar. E foi assim que começou a surgir novas conjugalidades, apesar da grande resistência e dificuldade de muitos em aceitar tal realidade. E isso é um caminho sem volta. Surgirão ainda outras formas de conjugalidades que a nossa vã filosofia nem consegue imaginar.

O outro marco histórico, que provocou uma verdadeira revolução na medicina e no Direito, foi o nascimento do primeiro bebê de proveta, surgindo a partir daí novas formas de parentalidade. Essas famílias constituídas com a ajuda de técnicas de reprodução assistida denominam-se famílias ectogenéticas (cf. Dicionário de Direito de Família e Sucessões – Ilustrado, Ed. Saraiva, P. 328).

Desde que a primeira criança veio ao mundo por meio dessa técnica — a inglesa Louise Brown, em 25/7/1978 —, as formas de fertilizações in vitro evoluíram muito. Estima-se que mais de 8 milhões de pessoas no mundo são fruto de reprodução assistida, por mais que ainda sejam caras e inacessíveis tais técnicas. No Brasil, foram feitas mais de 40 mil fertilizações in vitro apenas em 2017.

Quando começaram a nascer os primeiros “bebês de proveta”, expressão em desuso em razão de seu significante pejorativo, dizia-se que eles não tinham alma. E nessa mistura de ignorância e aprisionamento a dogmas religiosos e morais nasce o preconceito. A ignorância é a mãe do preconceito. Mas, superados esses obstáculos e melhoradas as técnicas médicas, a revolução e a evolução continuam. E o Direito ainda vive o seu processo histórico de regulamentação das consequências jurídicas daí decorrentes. Ainda não há lei aprovada pelo Congresso Nacional regulamentando ou estabelecendo parâmetros e limites para essas técnicas. E não haverá tão cedo. Apenas a Resolução 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina.

O CNJ, por meio da Resolução 63/2017, estabelece em seu artigo 17 que será indispensável, para fins de registro e de emissão da certidão de nascimento, a apresentação dos seguintes documentos: (...)§ 1º Na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação.

Mas a vida é muito maior que o Direito, e, com ou sem legislação, as famílias ectogenéticas seguem se constituindo e se adaptando a essa realidade. Por exemplo, antes da referida Resolução 63/2017 do CNJ, uma criança, nascida de útero de substituição, saía do hospital com a Declaração de Nascido Vivo (DNV) em nome de quem a gestou, e não de sua verdadeira mãe, o que era um empecilho ao registro de nascimento. Para evitar essas dificuldades e registrar a criança em nome da genitora, era necessário pedir autorização judicial. Isso às vezes deixava a criança sem registro por muito tempo. Essas “barrigas de aluguel”, expressão popular para designar a gravidez em útero de substituição, só podem ser feitas entre parentes até 4º grau (mãe, irmãs, tias e primas), de acordo com a Resolução 2.168/2017 do CFM. Esse contrato é sempre tácito e nunca escrito, pois se pressupõe nessas relações familiares uma confiança que dispensa formalidades, mas não deixa de ser um contrato.

Contratos de geração de filhos vão além dessas formações de famílias ectogenéticas já consideradas comuns, e cujo preconceito inicial já foi praticamente superado. O problema está nas novas configurações familiares em que o contrato para a geração de filhos ultrapassa as concepções morais tradicionais quando vêm acompanhadas de um conteúdo moral e religioso. É o caso do útero de substituição entre pessoas que não são parentes. Assim, brasileiros têm sido obrigados a irem a outros países, como Índia, Ucrânia, Rússia, EUA (29 estados) e Nepal, e o estado de Tabasco, no México, para poderem ter seus filhos biológicos. Mas isso só tem sido possível para pessoas com poder aquisitivo alto. Os de médio e baixo têm feito na clandestinidade, ou ficam sem filhos biológicos. É a mesma história do aborto no Brasil: só não existe para mulheres pobres. Se a gestação fosse no homem, certamente esse mercado já estaria regulamentado.

Uma outra forma de família, que também foge dos padrões tradicionais e ganhou visibilidade em razão da internet, e com isso tem crescido muito, é a coparentalidade. Essa nova expressão designa a família parental cujos pais se encontram apenas para ter filhos, de forma planejada e responsável, para criá-los em sistema de cooperação mútua, sem relacionamento conjugal ou sexual entre os pais (veja aqui e aqui). É conveniente que esses contratos de geração de filhos sejam escritos, deixando regras bem claras, como o nome a ser dado à criança que gerarão, convivência, sustento etc. É claro que essas cláusulas contratuais poderão ser relativizadas, ou mesmo modificadas em razão de uma realidade fora do planejado ou acidentes de percurso. Não descaracteriza a coparentalidade se os parceiros fizerem “inseminação caseira”, ou mesmo tiverem relação sexual com o único fim da procriação. Essas parcerias de paternidade/maternidade se apresentam, também, como uma alternativa à geração de filhos de pai de doador anônimo e às chamadas “produções independentes”.

A revolução da biotecnologia iniciada há 40 anos tem proporcionado também um outro tipo de contrato de geração de filhos, que deságua na multiparentalidade. A parentalidade estabelecida entre três ou mais pessoas, advinda da socioafetividade em que o padrasto/madrasta registra o filho de outro, acrescentando seu nome à certidão de nascimento, seja porque já falecido ou não, já foi totalmente absorvido pelo ordenamento jurídico brasileiro, inclusive pelo STF (RE 898.060), e até mesmo pelo Conselho Nacional de Justiça (Provimento 63/2017). Também na adoção multiparental não há mais resistências. O que ainda causa indignação é a multiparentalidade na família ectogenética, como, por exemplo, duas mulheres casadas entre si, ou que vivem juntas, em vez de buscar um doador anônimo do material genético, encontram um amigo que faz tal doação sob condição de também ser o pai da criança.

Essas novas estruturas conjugais e parentais nos remetem a uma ideia de desordem da família e de que essas novas representações sociais de família produzirão filhos infelizes, desajustados, problemáticos e casais promíscuos. Na verdade, o que está em desordem, em crise, é a família nuclear burguesa patriarcal, que sobreviveu às custas da opressão e submissão da mulher, que não era considerada sujeito de desejos nem de direitos (até 1964, era relativamente capaz — Lei 4.121/62). Essa família idealizada, do passado, apesar da nostalgia que traz consigo em razão do sentimento de amparo que transmitia, não tem mais lugar em nossa sociedade. Apesar disso, a família foi, é e continuará sendo o núcleo básico da sociedade, isto é, o núcleo estruturante do sujeito.

Para uma criança, basta que tenha alguém que exerça função paterna e materna, ou seja alguém que exerça amorosamente cuidados e coloque limites, e assim esta família estará estruturando edipicamente o sujeito. E é nesta estruturação psíquica chamada família (Lacan) que a criança vai se deparar com o desejo do outro que a constituiu e, consequentemente, se deparar com o enigma do próprio desejo, e então tornar-se sujeito. Seja lá como for, tradicional ou fora dos padrões, todas as famílias têm como função primordial ser o locus de formação do sujeito, e continua sendo o lugar seguro e de amparo que todos sonham e ninguém quer abrir mão.

Rodrigo da Cunha Pereira é advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros sobre Direito de Família e Psicanálise.

Revista Consultor Jurídico



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