Por
Kenarik Boujikian*, na Revista Fórum - Nos idos de 2002, quando estava na 19ª
Vara Criminal de São Paulo, recebi diversos pedidos, de órgãos de imprensa
brasileiros e estrangeiros, para a realização de entrevistas com pessoas que
estavam presas, pelo sequestro de Washington Olivetto.
Em
relação à minha posição como juíza, meu norte sempre foi: não dar entrevistas
sobre meus processos, que estivessem em curso, pois é fundamental preservar a
jurisdição; jamais colocar os réus à exposição e execração pública; não dar
qualquer aval para o julgamento midiático; realizar as audiências em clima de
concentração e não permitir que se tire o foco de atenção do que é fundamental
neste ato, de modo que não permiti que equipe de filmagem participasse de
audiências (lembro que fui consultada se deixaria filmar as audiências, no caso
do maior roubo a banco do Brasil, o roubo do Banespa, no caso do Roger Abdelmassih
e outros mais).
Mas
cabe ao juiz garantir os direitos fundamentais e nesta perspectiva é que deferi
todas as entrevistas, de todos os órgãos de imprensa, que foram solicitadas no
caso do sequestro, evidentemente sem perguntar as razões para os órgãos de
imprensa requererem as entrevistas. Apenas me afiancei que réus e respectivos
advogados fossem consultados. Somente um dos réus concordou em dar entrevista,
Mauricio Norambuena.
Na
verdade, este tipo de pedido nem deveria chegar ao Judiciário. Caberia à
própria administração penitenciária criar os mecanismos para que tal fosse
assegurado. Não há uma linha, em qualquer lei, que imponha esta restrição aos
presos. Mas se o próprio Estado vulnera os direitos humanos, não há outra opção
a não ser recorrer ao Judiciário.
As
razões jurídicas que registrei na oportunidade dizem respeito à função primeira
do juiz, que é o de garantir os direitos. O magistrado tem o elevado
poder-dever de permitir que direitos fundamentais saiam do papel e se tornem
realidade.
Relembrei
sucintamente a história dos direitos de expressão, informação e imprensa,
direitos que são interligados, registrando que foi uma declaração de Direitos
do Estado de Virginia, datada de 1776, que reconheceu explicitamente a
liberdade de expressão através da imprensa. Em 1791 a Emenda número 1 da
Constituição dos Estados Unidos da América garantiu este direito e em 1789 a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão contemplou estes direitos,
estabelecendo que:
A
livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do
homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente,
respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos em lei.
A
Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, em seu artigo 19, acolheu
estes direitos e também expressamente o direito de informação. Podemos
destacar, ainda, o artigo 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, de 1966; o Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e
das Liberdades Fundamentais; e o artigo 13 do Pacto de San José da Costa Rica,
ratificado pelo Brasil.
O
nosso arcabouço constitucional dá proteção à liberdade de manifestação de
pensamento. Determina que é livre a expressão da atividade intelectual,
artística, cientifica e de comunicação, independentemente de censura ou
licença. Estabelece o direito de receber dos órgãos públicos informações de
interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no
prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo
seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Garante que a
manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer
forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição. Não admite que
qualquer lei possa constituir embaraço à plena liberdade de informação
jornalística em qualquer veículo de comunicação social. Ainda veda censura de
natureza política, ideológica e artística.
Isto
tudo está cravado, como em pedra, na nossa Constituição.
Em
certa medida, e por inúmeras vezes, a liberdade de imprensa condensa os demais
direitos: o de pensamento, informação e expressão.
Não
se olvida que o preso tem limitações em sua liberdade, com fundamento
constitucional, em razão da natureza desta sua condição, porém, as restrições
aos direitos devem, obrigatoriamente, ter a limitação na própria Constituição,
permanecendo intocado o conteúdo essencial dos direitos fundamentais e
respeitado o princípio da proporcionalidade que confere um critério de
adequação e necessidade.
Se
proibisse a entrevista, ou seja, que o preso exercesse o direito de liberdade
de expressão atingiria o direito de informação e de liberdade de imprensa, que
são direitos sociais.
O
direito que os presos possuem são, na verdade, de todos e protegidos pela
Constituição, que acolheu valores éticos e políticos de uma sociedade
democrática.
Quando
Padre Antonio Vieira questionou o modo de proceder do Tribunal e suas
intervenções públicas tocaram em temas proibidos, já que defendia a abolição de
discriminações contra os cristãos-novos, foi punido com o silêncio e perdeu o
direito à palavra.
Finalizei
a decisão, após estas considerações, dizendo que a sanção imposta a Padre
Vieira não seria aplicada em 2002. Que não me prestaria a exercer o papel de
censor, pois cabe ao magistrado, nos termos da Constituição Federal, exercer o
papel de garantia de direitos.
*Kenarik
Boujikian é desembargadora do TJSP e cofundadora da Associação Juízes para a
Democracia
https://www.brasil247.com/pt/247/brasil/363657/Desembargadora-defende-direito-de-Lula-de-dar-entrevistas.htm
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