Com
22% da população mundial utilizando mídias sociais e 1,86 bilhão de usuários
ativos, falar sobre planejamento sucessório e herança digital se tornou a ordem
do dia[1].
Isso
porque hoje, além da preocupação ordinária acerca da possibilidade de
disposição do patrimônio em vida (forma mais econômica, prática e menos
conflituosa de partilha entre eventuais herdeiros), há uma preocupação quanto
ao patrimônio virtual, seja ele suscetível de valoração econômica, tal como as
moedas virtuais, ou não economicamente valorável, se observado o patrimônio
sentimental acumulado, tais como fotografias e filmagens armazenadas na nuvem,
posts e mensagens trocadas nas redes sociais, e-books colecionados, games,
filmes etc.
E
a despeito do direito à herança ter sido alçado como direito fundamental pela
Constituição Federal, empresas de tecnologia, provedores de conexão, de
conteúdo, hospedagem, dentre outros, não sabem lidar — ao menos de forma clara
e transparente para com o usuário e terceiros — com o destino de ativos
digitais de pessoas falecidas ou incapacitadas.
No
caminho de uma evolução, redes sociais como o Facebook já disponibilizam
ferramentas de gerenciamento de conta que permitem a indicação em vida de
herdeiros, bem como a enumeração expressa da permissão ou não para que estes
tenham acesso a dados e procedam à exclusão da conta.
Além
disso, já se tem disponível pelo Facebook um aplicativo chamado If I Die, que
permite aos usuários deixar uma mensagem póstuma a ser publicada em sua página.
No
entanto, muito se tem questionado se a proteção do interesse e a vontade do
usuário na rede deve prevalecer após sua morte. Seria esse acervo virtual um
patrimônio a ser transmitido aos herdeiros ou preservado segundo a vontade do
falecido?
Fazer
valer a vontade do falecido, seja através das ferramentas típicas da era da
informação (testamento virtual) ou através do legado “real”, que enfrenta um
longo processo de abertura de inventário, é um desafio e merece reflexão.
As
cortes de Justiça brasileiras já foram instadas a decidir em casos concretos se
permitiam ou não o acesso a perfis, contas de e-mails etc. Por vezes, a
solicitação era para que determinado perfil e/ou conta fosse excluída, e
inúmeras outras vezes, para que a sua manutenção fosse determinada, com
liberação do acesso pelos herdeiros não identificados e/ou já designados
virtualmente, havendo uma certa consonância no entendimento, a despeito das
poucas decisões, de que os bens analógicos e digitais devem ser tratados da
mesma forma que os reais, materialmente tangíveis.
A
Justiça de Mato Grosso do Sul, por exemplo, determinou que o Facebook tirasse
do ar a página da jornalista Juliana Ribeiro Campos, 24 anos, que morreu em
maio de 2012 por complicações após uma endoscopia. A decisão estabeleceu prazo
de 48 horas, a partir da notificação, para cumprimento da ordem e atendeu a uma
ação aberta pela mãe da jovem, a professora Dolores Pereira Ribeiro, 50
anos[2].
Em
outros países, as cortes de Justiça divergem, tendo por exemplo a corte alemã
rejeitado pedido de uma mãe para ter acesso à conta de Facebook de sua filha,
morta em 2012. Na segunda instância, a corte de Berlim reformou a decisão
anterior, pronunciando que o direito de privacidade nas telecomunicações se
estende ao mundo digital e que a privacidade da menina não deveria ser violada.
Nesse caso, declarou-se que o direito à privacidade se sobrepunha ao direito de
herança[3].
Na
prática, não há lei clara sobre o tema, mas existem dois projetos de lei em
tramitação na Câmara dos Deputados que buscam regular tais fatos da vida
virtual que em muito causam transtornos na vida real: o Projeto de Lei
8.562/2017, que está aguardando votação na Câmara dos Deputados, e o Projeto de
Lei 4.099/2012, que já foi aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado ao
Senado para apreciação.
O
segundo projeto (PL 4.099/2012), mais simplista, apenas diz o óbvio para
aqueles que tratam o patrimônio digital com identidade ao real, ou seja, que
deverão ser transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas e arquivos
digitais de titularidade do autor da herança.
Já
o primeiro projeto (PL 8.562/2017) buscou não somente definir o que seria
herança digital, ao propor o acréscimo do artigo 1797-A ao Código Civil, mas,
também, o que poderia ser transmitido (senhas, redes sociais, contas da
internet, qualquer bem e serviço virtual ou digital), caso não haja disposição
em contrário do falecido com capacidade para testar, bem como os poderes do
herdeiro na gerência de tal herança.
Mas
a pergunta que ainda permanece nesses casos é: quanto ao legado digital do
falecido, este pode ser disponibilizado, transferido, mesmo que contenha dados
e informações de outros usuários?
O
usuário falecido certamente trocou inúmeras mensagens, compartilhou dados com
terceiros que muitas vezes também terão a sua esfera individual, mesmo que
virtual, invadida, acaso o acesso à herdeiros seja liberado e legalmente
autorizado.
Como
tratar o efeito desses acessos e definir eventuais limites? Aplicar-se-ia a já
existente legislação de proteção à honra, imagem e intimidade, inclusive a
terceiros cuja esfera individual restar violada pelo acesso de herdeiros a
conteúdo antes preservado entre partes?
Nestes
novos tempos, no mínimo interessantes, não podemos simplesmente transformar direitos
adquiridos a expectativas de direitos, muito menos tornar virtual norma
constitucional real que bem protege a privacidade dos indivíduos de forma
geral.
A
necessidade de inclusão dos bens digitais dos indivíduos na herança é
indiscutível, no entanto, em tempos de rápida evolução — ao menos até que a
geração Z ou os nativos digitais fiquem para trás — deve-se tratar com
seriedade os efeitos que as interferências dos atos virtuais podem causar na
vida real.
[1]
https://www.statista.com
[2] https://www.campograndenews.com.br/lado-b/comportamento-23-08-2011-08/apos-processo-e-apelo-de-mae-a-midia-facebook-exclui-perfil-de-jovem-morta
[3]
https://link.estadao.com.br/noticias/geral,mae-nao-pode-acessar-facebook-de-filha-morta-diz-justica-alema,70001820458
Rhuana Rodrigues
César é sócia do Chenut Oliveira Santiago Advogados Associados.
Revista
Consultor Jurídico
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