O
varguismo não se altera no período democrático: persiste no projeto de
organização do Estado, na intervenção em áreas fundamentais para o
desenvolvimento e a segurança nacional
No
agosto findo completaram-se 64 anos da deposição e suicídio de Getúlio Vargas.
Mal havíamos transitado da ditadura do Estado Novo para a democracia prometida
pela Constituição liberal de 1946. Era ainda uma democracia tímida, que não
comportava partidos de esquerda ou voto do analfabeto.
Nosso
país havia aderido, unilateralmente, à Guerra Fria, e os militares exerciam,
naquele então, um papel de proeminência e intervenção na vida civil. Falavam
sobre todas as coisas, intervinham nas questões de Estado, na política social,
e ainda se julgavam os depositários exclusivos dos valores da Pátria, por eles
privatizada.
Haviam
participado da Revolução de 1930 e da implantação do Estado Novo (1937) e, sem
qualquer autocrítica, haviam deposto (1945) o ditador cujo poder asseguraram
por largos e penosos oito anos. Nas primeiras eleições pós-redemocratização
havia sido eleito presidente da República o marechal Eurico Dutra, ministro da
Guerra do Estado Novo e também comandante da deposição de Vargas, que, no entanto,
o apoiaria e o elegeria na primeira eleição do Brasil democratizado.
Por
obra e graça do processo histórico – uma esfinge que os historiadores não
conseguem decifrar – o primeiro governo civil, de bases populares e
democráticas, seria o de Vargas (eleito em 1950, sucedendo ao seu antigo
ministro de Guerra), derrotando nas urnas o brigadeiro Eduardo Gomes, candidato
do estamento militar, da direita urbana e do grande empresariado.
O
presidente, comandando o país nos estritos termos da ordem democrática de então
– nesse plano inscrita absoluta liberdade de imprensa –, intentava retomar as
bases políticas e ideológicas daquilo que se convencionou identificar ora como
‘trabalhismo’, ora como ‘varguismo’, uma visão antiliberal de país e de mundo,
mais ou menos resumida em dois pontos: o Estado como indutor do desenvolvimento
e a soberania nacional (condicionada pelo desenvolvimento) como princípio.
O
varguismo não se altera no período democrático: persiste no projeto de
organização do Estado, na intervenção em áreas fundamentais para o
desenvolvimento e a segurança nacional, como a siderurgia, a energia elétrica e
o petróleo, sem cujos recursos seria impensável a industrialização tardia.
Finalmente,
com vistas a inserir o país atrasado na economia capitalista que se montava lá
fora a partir de Bretton Woods, a criação de um grande mercado de consumo, para
o que vinha a calhar sua ‘opção pelos pobres’, a defesa e ampliação dos
direitos trabalhistas e a correção digna do salário mínimo como instrumento de
distribuição de renda.
(Lula
nega essa influência, mas as premissas do varguismo, acima enunciadas em breve
resumo, seriam o ponto de referência dos governos petistas, e dela não se
livrará o programa costurado por Fernando Haddad, provável substituto do candidato
escolhido pelo povo e provavelmente vetado pela ordem judiciária).
Essa
política, porém, não agradou ao grande empresariado nacional, naquela altura –
quase tanto quanto hoje – desvinculado do desenvolvimento nacional, pois seus
interesses, na rota de sua matriz ideológica, estavam nos EUA.
São
Paulo, o único estado industrializado, todavia, resiste; fracassara a política
de aliança com a burguesia urbana. Resiste o Congresso, onde o governo é
minoritário, resiste a grande imprensa em unânime oposição. As Forças Armadas,
que haviam assegurado a política do governo da ditadura, resistem agora ao
presidente democrático.
Foge-lhe
a classe média, mobilizada pela grande imprensa, e não acorrem em sua defesa as
massas populares e sindicais, desorganizadas e perdidas, quando os comunistas
do PCB saem às ruas para, vocalizando o discurso da oposição golpista, pedir a
renúncia do presidente que perdera a burguesia por defender os interesses dos
trabalhadores.
(Recordo-me
da resistência de setores do PT atuantes na Frente Brasil Popular condicionando
a defesa do mandato de Dilma Rousseff à prévia autocrítica da presidente à
política econômica que adotara.)
O
atentado frustrado ao principal líder oposicionista civil, o jornalista Carlos
Lacerda, é o imã que vai unificar as Forças Armadas e a montagem do que se
convencionou chamar de República do Galeão, tantos anos antes da República de
Curitiba.
Um
IPM comandado por coronéis da Aeronáutica, a pretexto de apurar um crime comum
(no atentado morrera seu guarda-costas, um capitão da FAB), rasga a
Constituição e as Leis, com o claro propósito de humilhar o presidente e
transformá-lo em presa de suas maquinações, atapetando o caminho para o golpe
de Estado que estava marcado para a noite de 24 de agosto, quando o presidente
se descobre absolutamente indefeso. Seu próprio ministro da Guerra, general
Zenóbio da Costa, é um dos insurgentes.
Tancredo
Neves, jovem ministro da Justiça, é voz isolada quando sugere a resistência. Os
líderes da oposição estão no Copacabana Palace festejando a vitória (o golpe
seria apresentado como pedido de licença sem retorno de Vargas) quando as
rádios anunciam o suicídio do presidente.
As
grandes massas são despertadas de seu torpor, os trabalhadores saem às ruas, a
dor explode em gritos, mas não há mais um governo por defender. Restava apenas
prantear a morte de um presidente solitário.
A
historiografia de superfície reduz a oposição a Vargas à pregação da UDN (o
PSDB de então), apresentando à sociedade como corrupto um presidente honrado.
Essa forma pobre de reduzir a história ao meramente aparente tem por objetivo
esconder as razões reais, profundas, que radicam no sempre contestado projeto
de desenvolvimento nacional autônomo, associado com a emergência social e
econômica das grandes massas.
Esta
contradição, de sempre, opõe os interesses da casa grande aos interesses da
avassaladora maioria, os interesses do 1% do topo da pirâmide social aos 99%
restantes. E a massa, o ´povão`, sempre assusta a pequena-burguesia quando ousa
deixar a coxia para se apresentar no centro do palco, quando abandona o papel
de figurante para exigir as luzes que iluminam os atores. Quando enfim decide
escrever, ele mesmo, a sua História.
Talvez
esta lição nos ajude a compreender o Brasil de hoje. Mas há outros ensinamentos
a colher. A derrota das forças populares é a consequência inelutável da divisão
das forças de esquerda. Ela foi decisiva na construção do 24 de agosto de 1954,
alimentada pela dificuldade, perdurante ainda hoje, de compreender o
significado do varguismo nos estreitos limites daquela crise.
Essa
lição também pode ser lida pelo seu inverso; a unidade das forças populares
asseguraram, no ano seguinte ao golpe, ou seja, em 1955, a vitória de
Juscelino-Jango e, em seguida, o contragolpe de novembro daquele ano, que
garantiu a posse dos eleitos, contestada pelos agentes do golpe de 1954, como
foi contestado – também sem base qualquer – o pleito de 2014 pelo inconformismo
tucano. Foi ainda essa unidade, ampliada com o apoio de correntes democráticas
e liberais, que assegurou, na crise de 1961, a posse de João Goulart,
frustrando a tentativa de mais um golpe militar.
Ainda
há tempo, nessas eleições, de os partidos e organizações de esquerda olharem
menos para seus respectivos umbigos e mais para o interesse maior do país e de
seu povo, ameaçados pelos conservadores, pelo reacionarismo, pela direita, e
pela promessa de um governo protofascista.
*****
Memória
(1) – Há 38 anos, em 27 de agosto de 1980, nos estertores da ditadura militar,
D. Lyda Monteiro morreu em um atentado a bomba praticado por agentes do
Exército Brasileiro. Tinha 59 anos e era secretária da OAB/RJ. A explosão
arrancou seu braço e queimou metade de seu corpo. Lyda morreu a caminho do
hospital. No mesmo dia, outra bomba explodiu na Câmara dos Vereadores do Rio da
Janeiro, atingindo o funcionário José Ribamar de Freitas, que perdeu um braço e
uma vista.
Memória
(2) – Há 37 anos, em abril de 1981, dois terroristas, um oficial e um sargento,
ambos do Exército e em missão, tentaram explodir o Riocentro (centro de
convenções do Rio de Janeiro), quando lá uma multidão de milhares de jovens
participava de um espetáculo musical. Eventos sombrios, que precisamos lembrar
para jamais permitir que se repitam.
Marielle,
ainda – Quando a polícia fluminense e a força militar interventora anunciarão
os nomes dos mandantes e dos executores do assassinato da vereadora Marielle
Franco? Ficaremos esperando, assim de braços cruzados, até que chacina caia no
esquecimento?
http://ramaral.org/?p=16452
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