sexta-feira, 17 de agosto de 2018

CRIME E CASTIGO: O PRIMEIRO ROMANCE ABSOLUTAMENTE MODERNO. Por Carlos Russo Jr


“Crime e Castigo”, a obra mais famosa de Dostoiévski, é ao mesmo tempo um dos romances mais bem escritos de toda literatura mundial. Marcel Proust ao escrever que todos os romances desse escritor poderiam ser denominados de “crimes e castigos”, prestou um tributo àquele que é um marco na formatação do pensamento moderno.

Quando o romance genial ainda era tão somente anotações, desenhos, um plano, Dostoiévski enviou a um editor uma carta oferecendo-lhe a venda antecipada dos direitos autorais. Nela encontramos uma resenha do futuro romance:

“Será o estudo psicológico sobre um crime. Um romance da vida contemporânea… Por sua instabilidade mental, um jovem ex-universitário, completamente sem dinheiro, fica obcecado por essas ideias amalucadas que estão no ar. Resolve fazer alguma coisa que o livre imediatamente da situação desesperadora. Decide matar uma velha agiota. A velha é estúpida, gananciosa, surda e doente, pessoa sem maior valor, cuja existência é aparentemente injustificável, etc.. Todas essas considerações desequilibram o rapaz… Praticado o crime ele não se torna suspeito, não seria possível que suspeitassem dele, e é aqui que todo o processo psicológico do ato se desenvolve. De repente, o assassino se vê frente a frente com problemas insolúveis e sensações inauditas começam a atormentá-lo. O próprio assassino resolve aceitar o castigo para espiar a sua culpa”.

“Farei a narração do ponto de vista do autor, uma espécie de ser invisível, porém onisciente, que jamais abandonará o herói… O narrador observará tudo do ponto de vista de Raskholnikov, reagirá a tudo o que ele fala e pensa, sem deixar de vê-lo do ponto de vista do mundo exterior”.

O romance foi aclimatado na moderna Petersburgo da segunda metade do século XIX, cidade onde proliferam seres estranhos, os muros das ruas e das paredes das casas se dissolvem em visões terríveis, “uma cidade de gente desequilibrada, cheia de influências sombrias, cruéis e estranhas”.

Pela pena implacável de Dostoiévski desfilará a vida miserável que prolifera nos espaços públicos e cortiços escuros, induzindo o herói do livro a um “estado psicológico extremo”. Raskholnikov perambula refletindo que “mesmo a magnificência (de Petersburgo) é a encarnação de algum espírito vazio e morto”.

Pois se a cidade mais ocidentalizada da Rússia é um lugar de doenças e febres, suicídios e mortes súbitas, acidentes de ruas e brigas violentas, repleta de gente humilhada e ofendida, também é o lugar em que brota a revolta na juventude, assim como ideias novas e incendiárias.

Raskholnikov origina-se do termo “raskholnik”, uma pessoa cindida, dissidente. Como um intelectual moderno, o personagem central explora a liberdade de um mundo que perdeu raízes, onde a injustiça é a tônica e a sociedade é um lugar de sofrimento universal. Ele acredita na “ideia napoleônica” do indivíduo que influi na história do mundo, no homem excepcional cujos poderes lhe conferem o direito de cometer qualquer ato que se justifique no futuro.

Raskholnikov é, no dizer de Porfiri, o juiz de instrução do caso, “um caso típico de nossa época, em que o coração dos homens torna-se imundo. Temos aqui sonhos intelectuais, um coração exacerbado por teorias”.

“Crime e Castigo” se divide em seis partes e um epílogo. O crime é cometido logo na primeira, e as seções subsequentes abordam o castigo, que por sua vez é essencialmente um processo de crise psicológica e de autoacusação, que culminará na confissão do criminoso, primeiramente em privado, depois na polícia.

Raskholnikov, no princípio da narrativa, está encerrado em seu quarto que fica embaixo de uma escada. Ele tem o hábito de ficar na cama “pensando um mar de absurdos”. Acaba alheando-se de tudo e de todos, não deseja mais ver ninguém, nem mesmo a filha da senhoria que andara cortejando por estar atrasado no pagamento do aluguel.

Despreza todos os que não ousam uma “palavra nova, uma atitude nova”. Ele mesmo não sabe ainda bem o que deseja fazer. “Fosse o que fosse era preciso tomar uma decisão ou renunciar completamente à vida. Aceitar o destino docilmente tal como é, de uma vez para sempre, abafar tudo no meu íntimo, o que significa renunciar a todo o direito à ação, a viver, a amar.”

Os acontecimentos terminam por fazerem parte de seu estado mórbido e alucinatório, misto de repulsa, terror, angústia e autoconfiança. Visita uma velha agiota, deixa algo penhorado e sai. Entra em um bar. Ao sair conhecerá Marmieladov, um ex-funcionário público destruído pela bebida. Nos olhos desse homem brilham num misto de inteligência e loucura. Diz, ambiguamente, que se acalma com a bebida. “É por isso que bebo, porque na bebida encontro o sofrimento… bebo porque quero sofrer em dobro… não é de alegrias que tenho sede, mas de tristezas.”

A história familiar que Marmieladov conta é trágica: a família toda entra em declínio por sua degradação no álcool: Sônia, sua filha, prostitui-se para sustento da mãe, de uma irmã aleijada e dele próprio. Raskholnikov antevê no alcoólatra uma faceta de si próprio, dele se apieda e o leva para casa de cômodos onde conhece Sônia, sua futura confidente e amparo.

O livro segue no mesmo ritmo de acúmulo de misérias humanas que cercam Raskholnikov e lhe atormentam o espírito. Sua irmã Dunia é perseguida pelo ex-patrão, o cruel e insaciável Svidrigailov, que deseja seduzi-la.

Dunia, tanto quanto Sônia, busca o sacrifício por amor a seus familiares: a irmã de Raskholnikov resolve casar-se com um pretensioso senhor autoritário, Luznin, a quem despreza, mas deseja o seu dinheiro para sustentar o irmão na ilusão dos futuros frutos de seus propalados estudos. No fundo, o casamento com Luznin é a reprodução socialmente aceitável da prostituição a que se submete a filha de Marmiedalov.

Tudo se articula para que a mente do jovem busque “alguma solução imediata”. A situação é trabalhada por Dostoiévski na forma de um terrível sonho que o jovem tem: um mujique açoita um cavalo que não consegue andar na lama, principia a tortura pelos olhos do animal até matá-lo a chibatadas. Nosso psicólogo assinala: “Num estado doentio os sonhos costumam distinguir-se pelo seu extraordinário colorido e clareza e pela estranha semelhança com a realidade.”

Chegamos agora à tremenda cena do crime. Depois que Raskholnikov mata a velha agiota, a irmã desta, Lisavieta, uma semi-idiota, retorna da rua e ele também a assassina. “Quando chegou a hora, tudo aconteceu como ele não tinha previsto, assim como por acidente, quase inesperadamente”, nos diz o narrador.

Após o assassinato, Raskholnikov transforma-se num amontoado de contradições, febres, sentimentos de ira, sonhos e alucinações, considerando-se ora um ser heroico, ora um verme. O leitor é envolvido à medida que o assassino vai traçando um círculo ao redor de si mesmo, sendo ele próprio seu próprio caçador.

A investigação do duplo assassinato é conduzida pelo juiz Porfiri, outra das imortais criações do romance. Porfiri é uma figura absolutamente extraordinária, um interrogador moderno, um psicólogo ao nível de um assassino também da modernidade.

Só ao final do romance saberemos que o juiz suspeitava do assassino antes mesmo que o ato fosse perpetrado, pois lera em jornal uma crônica em que o jovem Raskholnikov dizia que “um homem excepcional tem o direito de cometer grandes crimes a favor da História e da humanidade”.  Ele exige que este descubra o seu próprio castigo através da confissão.

“Esperei por você com impaciência, pois toda essa maldita psicologia é uma faca de dois gumes”. O crime, o juiz diz, foi psicológico. O roubo praticado jamais seria encontrado pela polícia, pois o assassino jamais tocara em seus valores. Escondera-o e somente voltaria a buscá-lo para confessar o crime às autoridades.

A purgação do crime, seu castigo e a busca da redenção é um longo processo que o assassino deve assumir. Começa logo após o ato criminoso com os pesadelos que passa a ter. A partir dai, visita a cena do crime e o comenta com amigos. No seu inconsciente deseja que o culpem pelo assassinato.

Restam dois caminhos: a independência arrogante ou o arrependimento humilde. No primeiro estará em companhia do cínico Svidrigailov, que, no passado, matara a própria esposa por dinheiro, “num desespero cínico”. Svidrigailov, aquele que considera o bem idêntico ao mal, num último ato teatral entrega todo seu dinheiro à Sônia e suicida-se. No segundo, é a trilha que conduz a Sônia, a filha de Marmieladov, “a esperança mais irrealizável”.

Raskholnikov buscará o caminho indicado por Sônia, a meiga e compreensiva testemunha da primeira confissão do jovem. Sônia lenta e pacientemente mostra-lhe que a redenção passa pela confissão pública do crime, por se ajoelhar e beijar o chão pelo qual passa a humanidade, da qual ele se considerava um ser superior. Será essa maravilhosa mulher quem entrará com Raskholnikov na delegacia de polícia e que, depois da condenação judicial, o acompanhará aos trabalhos forçados na Sibéria, e tomará conta não somente daquele que ama, como de todos os demais companheiros de infortúnio que estejam próximos.

No exílio siberiano, expresso no epílogo do romance, mantém-se todo o clima de crise psicológica. Raskholnikov se crê com a consciência livre dos crimes, mas ainda mantém sonhos alucinados como os de uma peste que levará a humanidade à crença de que a libertação depende apenas dos próprios homens! Conserva seu orgulho intelectual e nega-se a ler com sua protetora uma passagem bíblica: a do renascimento de Lázaro.

“Crime e Castigo” não é um romance totalmente concluso. Dostoiévski encerra propositalmente o livro afirmando que “Raskholnikov terá que encontrar a regeneração em outro local, numa outra realidade, até então por ele desconhecida”, quem sabe, em outro mundo?

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