“Crime
e Castigo”, a obra mais famosa de Dostoiévski, é ao mesmo tempo um dos romances
mais bem escritos de toda literatura mundial. Marcel Proust ao escrever que
todos os romances desse escritor poderiam ser denominados de “crimes e
castigos”, prestou um tributo àquele que é um marco na formatação do pensamento
moderno.
Quando
o romance genial ainda era tão somente anotações, desenhos, um plano,
Dostoiévski enviou a um editor uma carta oferecendo-lhe a venda antecipada dos
direitos autorais. Nela encontramos uma resenha do futuro romance:
“Será
o estudo psicológico sobre um crime. Um romance da vida contemporânea… Por sua
instabilidade mental, um jovem ex-universitário, completamente sem dinheiro,
fica obcecado por essas ideias amalucadas que estão no ar. Resolve fazer alguma
coisa que o livre imediatamente da situação desesperadora. Decide matar uma
velha agiota. A velha é estúpida, gananciosa, surda e doente, pessoa sem maior
valor, cuja existência é aparentemente injustificável, etc.. Todas essas
considerações desequilibram o rapaz… Praticado o crime ele não se torna
suspeito, não seria possível que suspeitassem dele, e é aqui que todo o
processo psicológico do ato se desenvolve. De repente, o assassino se vê frente
a frente com problemas insolúveis e sensações inauditas começam a atormentá-lo.
O próprio assassino resolve aceitar o castigo para espiar a sua culpa”.
“Farei
a narração do ponto de vista do autor, uma espécie de ser invisível, porém
onisciente, que jamais abandonará o herói… O narrador observará tudo do ponto
de vista de Raskholnikov, reagirá a tudo o que ele fala e pensa, sem deixar de
vê-lo do ponto de vista do mundo exterior”.
O
romance foi aclimatado na moderna Petersburgo da segunda metade do século XIX,
cidade onde proliferam seres estranhos, os muros das ruas e das paredes das
casas se dissolvem em visões terríveis, “uma cidade de gente desequilibrada,
cheia de influências sombrias, cruéis e estranhas”.
Pela
pena implacável de Dostoiévski desfilará a vida miserável que prolifera nos
espaços públicos e cortiços escuros, induzindo o herói do livro a um “estado
psicológico extremo”. Raskholnikov perambula refletindo que “mesmo a
magnificência (de Petersburgo) é a encarnação de algum espírito vazio e morto”.
Pois
se a cidade mais ocidentalizada da Rússia é um lugar de doenças e febres,
suicídios e mortes súbitas, acidentes de ruas e brigas violentas, repleta de
gente humilhada e ofendida, também é o lugar em que brota a revolta na
juventude, assim como ideias novas e incendiárias.
Raskholnikov
origina-se do termo “raskholnik”, uma pessoa cindida, dissidente. Como um
intelectual moderno, o personagem central explora a liberdade de um mundo que
perdeu raízes, onde a injustiça é a tônica e a sociedade é um lugar de
sofrimento universal. Ele acredita na “ideia napoleônica” do indivíduo que
influi na história do mundo, no homem excepcional cujos poderes lhe conferem o
direito de cometer qualquer ato que se justifique no futuro.
Raskholnikov
é, no dizer de Porfiri, o juiz de instrução do caso, “um caso típico de nossa
época, em que o coração dos homens torna-se imundo. Temos aqui sonhos
intelectuais, um coração exacerbado por teorias”.
“Crime
e Castigo” se divide em seis partes e um epílogo. O crime é cometido logo na
primeira, e as seções subsequentes abordam o castigo, que por sua vez é
essencialmente um processo de crise psicológica e de autoacusação, que
culminará na confissão do criminoso, primeiramente em privado, depois na
polícia.
Raskholnikov,
no princípio da narrativa, está encerrado em seu quarto que fica embaixo de uma
escada. Ele tem o hábito de ficar na cama “pensando um mar de absurdos”. Acaba
alheando-se de tudo e de todos, não deseja mais ver ninguém, nem mesmo a filha
da senhoria que andara cortejando por estar atrasado no pagamento do aluguel.
Despreza
todos os que não ousam uma “palavra nova, uma atitude nova”. Ele mesmo não sabe
ainda bem o que deseja fazer. “Fosse o que fosse era preciso tomar uma decisão
ou renunciar completamente à vida. Aceitar o destino docilmente tal como é, de
uma vez para sempre, abafar tudo no meu íntimo, o que significa renunciar a
todo o direito à ação, a viver, a amar.”
Os
acontecimentos terminam por fazerem parte de seu estado mórbido e alucinatório,
misto de repulsa, terror, angústia e autoconfiança. Visita uma velha agiota,
deixa algo penhorado e sai. Entra em um bar. Ao sair conhecerá Marmieladov, um
ex-funcionário público destruído pela bebida. Nos olhos desse homem brilham num
misto de inteligência e loucura. Diz, ambiguamente, que se acalma com a bebida.
“É por isso que bebo, porque na bebida encontro o sofrimento… bebo porque quero
sofrer em dobro… não é de alegrias que tenho sede, mas de tristezas.”
A
história familiar que Marmieladov conta é trágica: a família toda entra em
declínio por sua degradação no álcool: Sônia, sua filha, prostitui-se para
sustento da mãe, de uma irmã aleijada e dele próprio. Raskholnikov antevê no
alcoólatra uma faceta de si próprio, dele se apieda e o leva para casa de
cômodos onde conhece Sônia, sua futura confidente e amparo.
O
livro segue no mesmo ritmo de acúmulo de misérias humanas que cercam
Raskholnikov e lhe atormentam o espírito. Sua irmã Dunia é perseguida pelo
ex-patrão, o cruel e insaciável Svidrigailov, que deseja seduzi-la.
Dunia,
tanto quanto Sônia, busca o sacrifício por amor a seus familiares: a irmã de
Raskholnikov resolve casar-se com um pretensioso senhor autoritário, Luznin, a
quem despreza, mas deseja o seu dinheiro para sustentar o irmão na ilusão dos
futuros frutos de seus propalados estudos. No fundo, o casamento com Luznin é a
reprodução socialmente aceitável da prostituição a que se submete a filha de
Marmiedalov.
Tudo
se articula para que a mente do jovem busque “alguma solução imediata”. A
situação é trabalhada por Dostoiévski na forma de um terrível sonho que o jovem
tem: um mujique açoita um cavalo que não consegue andar na lama, principia a
tortura pelos olhos do animal até matá-lo a chibatadas. Nosso psicólogo
assinala: “Num estado doentio os sonhos costumam distinguir-se pelo seu
extraordinário colorido e clareza e pela estranha semelhança com a realidade.”
Chegamos
agora à tremenda cena do crime. Depois que Raskholnikov mata a velha agiota, a
irmã desta, Lisavieta, uma semi-idiota, retorna da rua e ele também a
assassina. “Quando chegou a hora, tudo aconteceu como ele não tinha previsto,
assim como por acidente, quase inesperadamente”, nos diz o narrador.
Após
o assassinato, Raskholnikov transforma-se num amontoado de contradições,
febres, sentimentos de ira, sonhos e alucinações, considerando-se ora um ser
heroico, ora um verme. O leitor é envolvido à medida que o assassino vai
traçando um círculo ao redor de si mesmo, sendo ele próprio seu próprio
caçador.
A
investigação do duplo assassinato é conduzida pelo juiz Porfiri, outra das
imortais criações do romance. Porfiri é uma figura absolutamente
extraordinária, um interrogador moderno, um psicólogo ao nível de um assassino
também da modernidade.
Só
ao final do romance saberemos que o juiz suspeitava do assassino antes mesmo
que o ato fosse perpetrado, pois lera em jornal uma crônica em que o jovem
Raskholnikov dizia que “um homem excepcional tem o direito de cometer grandes
crimes a favor da História e da humanidade”.
Ele exige que este descubra o seu próprio castigo através da confissão.
“Esperei
por você com impaciência, pois toda essa maldita psicologia é uma faca de dois
gumes”. O crime, o juiz diz, foi psicológico. O roubo praticado jamais seria
encontrado pela polícia, pois o assassino jamais tocara em seus valores.
Escondera-o e somente voltaria a buscá-lo para confessar o crime às
autoridades.
A
purgação do crime, seu castigo e a busca da redenção é um longo processo que o
assassino deve assumir. Começa logo após o ato criminoso com os pesadelos que
passa a ter. A partir dai, visita a cena do crime e o comenta com amigos. No
seu inconsciente deseja que o culpem pelo assassinato.
Restam
dois caminhos: a independência arrogante ou o arrependimento humilde. No primeiro
estará em companhia do cínico Svidrigailov, que, no passado, matara a própria
esposa por dinheiro, “num desespero cínico”. Svidrigailov, aquele que considera
o bem idêntico ao mal, num último ato teatral entrega todo seu dinheiro à Sônia
e suicida-se. No segundo, é a trilha que conduz a Sônia, a filha de
Marmieladov, “a esperança mais irrealizável”.
Raskholnikov
buscará o caminho indicado por Sônia, a meiga e compreensiva testemunha da
primeira confissão do jovem. Sônia lenta e pacientemente mostra-lhe que a
redenção passa pela confissão pública do crime, por se ajoelhar e beijar o chão
pelo qual passa a humanidade, da qual ele se considerava um ser superior. Será
essa maravilhosa mulher quem entrará com Raskholnikov na delegacia de polícia e
que, depois da condenação judicial, o acompanhará aos trabalhos forçados na
Sibéria, e tomará conta não somente daquele que ama, como de todos os demais
companheiros de infortúnio que estejam próximos.
No
exílio siberiano, expresso no epílogo do romance, mantém-se todo o clima de
crise psicológica. Raskholnikov se crê com a consciência livre dos crimes, mas
ainda mantém sonhos alucinados como os de uma peste que levará a humanidade à
crença de que a libertação depende apenas dos próprios homens! Conserva seu
orgulho intelectual e nega-se a ler com sua protetora uma passagem bíblica: a
do renascimento de Lázaro.
“Crime
e Castigo” não é um romance totalmente concluso. Dostoiévski encerra
propositalmente o livro afirmando que “Raskholnikov terá que encontrar a
regeneração em outro local, numa outra realidade, até então por ele
desconhecida”, quem sabe, em outro mundo?
http://proust.net.br/blog/?p=1391
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