Nos
últimos dias, observa-se no Brasil, para a absurda perplexidade de alguns, o
tratamento dispensado à Organização das Nações Unidas, quase como se uma
associação de bairro fosse, o qual certamente é motivado por sentimentos de
forte calor político envolvendo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
condenado em segunda instância pelo cometimento de crimes, mas que tenta
registrar candidatura ao cargo de presidente da República para estas eleições
de 2018.
Desse
modo, é preciso realizar uma reflexão abstrata sobre o importantíssimo papel da
ONU e da sua Comissão de Direitos Humanos para o mundo, bem como da medida
cautelar por ela implementada no caso concreto do ex-presidente.
Durante
séculos, o Direito Internacional permaneceu, estrutural e funcionalmente, como
um jus europaeum, criado pelas nações cristãs mercantilistas da Europa para
regular seus interesses e prerrogativas (ACCIOLY, 2002, p. 70). Estas se
arvoravam como “nações civilizadas” e contavam com a aceitação do direito de
conquista e da ocupação colonial de territórios ultramarinos, defendendo a
desigualdade entre estados europeus e não.
Com
a descentralização do sistema, a partir da independência dos Estados do
continente americano, e também observando China, Pérsia, Afeganistão e Japão,
multiplicaram-se os tratados de caráter global sobre comércio, jurisdição,
imunidades e extradição, passando a se estabelecer normas gerais de conduta
para todos os povos.
Esse
movimento avançou com a Liga das Nações, a Organização Internacional do
Trabalho, a Corte Permanente de Justiça Internacional, chegando até a
Organização das Nações Unidas, ao lado da criação de centenas de outros
Estados, o que mudou irreversivelmente o contexto de criação e atuação das
normas do Direito Internacional, passando a ter a universalização como ideal.
Diante
desse novo cenário, a descentralização do poder se tornou uma característica
primordial da sociedade internacional, pois deixou de haver centro mundial
político-jurídico com poderes para agir como legislador, Executivo ou
Judiciário, acima dos entes estatais que compõem o sistema, decorrendo disso a
obrigatoriedade de algumas normas internacionais a partir das quais os Estados
não pudessem pactuar em sentido diverso sobre matérias de caráter absoluto,
cogente, tais como os direitos humanos, que são inderrogáveis.
Os
Estados passam, pois, do clássico modelo de mútua abstenção e mera
coexistência, para um sistema de cooperação internacional.
Desse
modo, muito embora a evolução global já apontasse para a garantia rudimentar e
lenta – a partir da Carta Magna de 1215, o Bill of Rights de 1689, a Declaração
da Virgínia de 1776 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 –
dos direitos à vida, liberdade, segurança, propriedade e igualdade, foi somente
com a situação de devastação apresentada pela Segunda Guerra Mundial que se
percebeu a necessidade de um avanço muito maior na proteção e sistematização
deles, conforme ensina Moraes, com referências a Galiano:
A necessidade primordial de proteção e
efetividade aos direitos humanos possibilitou, em nível internacional, o
surgimento de uma disciplina autônoma ao direito internacional público,
denominada Direito Internacional dos Direitos Humanos, cuja finalidade precípua
consiste na concretização da plena eficácia dos direitos humanos fundamentais,
por meio de normas gerais tuteladoras de bens da vida primordiais (dignidade,
vida, segurança, liberdade, honra, moral, entre outros) e previsões de
instrumentos políticos e jurídicos de implementação dos mesmos (MORAES, 2002,
p. 35).
Dentro
de tal contexto, em 26 de junho de 1945, na conclusão da Conferência das Nações
Unidas sobre a Organização Internacional, realizada em São Francisco, foi
assinada a Carta das Nações Unidas, que é o instrumento criador da Organização
das Nações Unidas, cujos objetivos principais estão sintetizados no seu artigo
1º:
Artigo 1. Os propósitos das Nações unidas
são:
1. Manter a paz e a segurança
internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para
evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura
da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da
justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou
situações que possam levar a uma perturbação da paz;
2. Desenvolver relações amistosas entre as
nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de
autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao
fortalecimento da paz universal;
3. Conseguir uma cooperação internacional
para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social,
cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos
humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo,
língua ou religião; e
4. Ser um centro destinado a harmonizar a
ação das nações para a consecução desses objetivos comuns. (ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS, 1945).
O
referido documento foi ratificado pelo Brasil e promulgado através do Decreto
presidencial 19.841, de 22 de outubro de 1945, e possui grande vocação
constitucional para a comunidade internacional segundo importantes autores como
Fassbender, cujos estudos apresentados no artigo “The United Nations Charter as
a constitution of the international community” são objeto de aprofundadas
considerações de Cançado Trindade, que destaca algumas consequências de tal
conclusão:
Em primeiro lugar, ela teria efeito
vinculante sobre não-membros, conforme seus artigos 2(6) e 103 e a prática do
CSNU [e] o método de interpretação da Carta seguiria a hermenêutica
constitucional, em que os travaux préparatoires, a interpretação gramatical ou
sistemática dão lugar à interpretação teleológica, que permite o
desenvolvimento, por exemplo, da doutrina dos poderes implícitos. A Carta
criaria uma ‘comunidade interpretativa’, conforme conceito de Peter Harbele,
aberta a todos os membros da comunidade internacional [e] considerar a Carta
uma constituição conferiria rigidez ao seu mecanismo de emenda. Ao contrário do
que ocorre em tratados, em que as Partes podem emendá-los como quiserem, no
caso da Carta é necessário seguir os procedimentos de emenda dos artigos 108 e
109. As partes não poderiam acordar de forma diversa (TRINDADE, 2012, p. 33).
A
previsão de uma série de elementos e obrigações erga omnes, sobretudo no campo
dos direitos humanos, juntamente com mecanismos de implementação (enforcement),
dão a este documento histórico um indiscutível grau elevado de importância,
tanto assim que além de ser um marco, passou dali em diante a ser a base para
todo o Direito Internacional.
Nessa
toada, foi celebrado em Assembleia Geral da ONU de 1966 o Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos, internalizado pelo Brasil através do Decreto
592, de 06 de julho de 1992, firmando no ordenamento jurídico interno que “Art.
1° O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, apenso por cópia ao
presente decreto, será executado e cumprido tão inteiramente como nele se
contém”.
Ainda
sobre o tema dos Direitos Humanos, cumpre trazer abalizado voto do já citado
Cançado Trindade quando do julgamento do caso Última Tentação de Cristo:
Tratados de direitos humanos, "foram
concebidos e adotados com base na premissa de que os ordenamentos jurídicos
internos devem se harmonizar com as disposições convencionais, e não
vice-versa” (parágrafo 13). [e]m definitiva, adverti, “[N]ão se pode
legitimamente esperar que essas disposições convencionais se ‘adaptem’ ou se
subordinem às soluções de direito constitucional ou de direito público interno,
que variam de país a país [...]. A Convenção Americana, ademais de outros
tratados de direitos humanos, buscam, a contrario sensu, ter no direito interno
dos Estados Parte o efeito de aperfeiçoá-lo, para maximizar a proteção dos
direitos consagrados, acarretando, nesse propósito, sempre que necessário, a
revisão ou revogação de leis nacionais [...] que não se conformem com seus
parâmetros de proteção (Olmedo Bustos e outros vs. Chile. Sentença de 5 de
fevereiro de 2001).
De
igual modo, também foram internalizados os dois Protocolos Adicionais
Facultativos do Pacto, por intermédio do Decreto Legislativo 311, de 2009, nos
quais se institui o Comitê dos Direitos do Homem como instância com
“competência para receber e examinar comunicações provenientes de particulares
sujeitos à sua jurisdição que aleguem ser vítimas de uma violação, por esses
Estados Partes, de qualquer dos direitos enunciados no Pacto”.
Para
a presente análise, é interessante destacar o ocorrido no Caso Gomes Lund vs
Brasil y otros, sobre a recepção do artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei de Anistia
pela Constituição, quando a Corte Interamericana de Direitos Humanos assim
dispôs:
175. Este Tribunal estabeleceu em sua
jurisprudência que é consciente de que as autoridades internas estão sujeitas
ao império da lei e, por esse motivo, estão obrigadas a aplicar as disposições
vigentes no ordenamento jurídico. No entanto, quando um Estado é Parte de um
tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os seus órgãos,
inclusive seus juízes, também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar
para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos
pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade, e que desde o
início carecem de efeitos jurídicos. O Poder Judiciário, nesse sentido, está
internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade” ex
officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no
marco de suas respectivas competências e das regulamentações processuais
correspondentes. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não
somente o tratado, mas também a interpretação que a ele conferiu a Corte
Interamericana, intérprete última da Convenção Americana.
176. No presente caso, o Tribunal observa
que não foi exercido o controle de convencionalidade pelas autoridades
jurisdicionais do Estado e que, pelo contrário, a decisão do Supremo Tribunal
Federal confirmou a validade da interpretação da Lei de Anistia, sem considerar
as obrigações internacionais do Brasil derivadas do Direito Internacional,
particularmente aquelas estabelecidas nos artigos 8 e 25 da Convenção
Americana, em relação com os artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento. O Tribunal
estima oportuno recordar que a obrigação de cumprir as obrigações
internacionais voluntariamente contraídas corresponde a um princípio básico do
direito sobre a responsabilidade internacional dos Estados, respaldado pela
jurisprudência internacional e nacional, segundo o qual aqueles devem acatar
suas obrigações convencionais internacionais de boa-fé (pacta sunt servanda).
Como já salientou esta Corte e conforme dispõe o artigo 27 da Convenção de
Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, os Estados não podem, por razões de
ordem interna, descumprir obrigações internacionais. As obrigações
convencionais dos Estados Parte vinculam todos seus poderes e órgãos, os quais
devem garantir o cumprimento das disposições convencionais e seus efeitos
próprios (effet utile) no plano de seu direito interno.”
Após
todas essas considerações, a corte decidiu, por unanimidade, que cabe ao Brasil
investigar e "determinar os autores materiais e intelectuais do
desaparecimento forçado das vítimas e da execução extrajudicial. Ademais, por
se tratar de violações graves de direitos humanos, e considerando a natureza
dos fatos e o caráter continuado ou permanente do desaparecimento forçado, o
Estado não poderá aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores, bem como
nenhuma outra disposição análoga, prescrição, irretroatividade da lei penal,
coisa julgada, ne bis in idem ou qualquer excludente de responsabilidade para
eximir-se dessa obrigação".
Sendo
assim, o Brasil deve absoluto respeito e submissão tanto ao pacto quanto ao
respectivo Comitê de Direitos Humanos da ONU, isso por vontade do próprio país
signatário – e não por imposição externa –, não podendo jamais suas decisões
ser vistas como teórico ataque à soberania estatal interna, sendo absolutamente
incabível qualquer discussão quanto ao não cumprimento por discordância do
mérito da decisão prolatada pelo Comitê dos Direitos do Homem, com a tentativa
de se partir para uma análise da sua matéria de fundo.
A
força das decisões da ONU é proveniente de tratados internacionais específicos
sobre direitos humanos, os quais trazem normas de impacto direto e amiúde
detalhados vinculativos (hard law).
Desse
modo, muito embora esta recomendação em si tenha um caráter relativamente ameno
(soft law), ela deve ser cumprida – caso a União Federal dela discorde, deve
recorrer às instâncias cabíveis dentro da Organização das Nações Unidas –, sob
pena de se enfrentar a possibilidade real de sofrer severas sanções
diplomáticas, ingressando o país numa zona bastante árida de descrédito
mundial, onde pouquíssimas democracias se situam, com o extremo desrespeito aos
pactos internacionais por si firmados.
Raoni
Lacerda Vita é advogado, mestre em Direito Internacional pela Universidade
Católica de Santos e vice-presidente da OAB/PB.
Revista
Consultor Jurídico
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