Não
é fácil lembrar-se de um momento em que a credibilidade do Judiciário estivesse
tão arranhada quanto agora. A falta de confiança generalizada e uma avaliação
negativa de forma assim persistente. Paradoxalmente, todavia, vivemos um dos
momentos de maior demanda à Justiça, seja pelo extraordinário volume de ações
que ingressam diariamente, seja pela competência cada vez mais ampliada dos
pedidos, levando a judicialização ao patamar nunca antes na história –a começar
pela própria incumbência de substituir nada menos do que o eleitor.
Essa
inusitada contradição lembra a historieta que Woody Allen conta em Noiva
Neurótica, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977), sobre duas idosas residentes em um
asilo. A primeira diz algo como: nossa, é muito ruim a comida daqui não é
mesmo? A outra responde: e o pior é que é pouca….
Algo
mais ou menos similar acontece hoje com o Judiciário: não obstante as críticas
se avolumem, expandem também as suas competências. E não só devido à sua
própria intromissão na vida política. Dado o princípio da inércia, juízes não
procedem de ofício, não há judicialização da política que não tivesse antes
sido pleiteada por algumas das partes.
Antoine
Garapon, juiz francês e um importante pensador do Direito, deu pistas sobre o
assunto quando lançou seu mais famoso livro, Guardião das promessas – Juez ydemocracia
na versão espanhola (1997). Muito do diagnóstico sobre a excessiva
judicialização que via na França, em 1996, cai como uma luva para o momento
atual do Brasil:
“A
virada judicial da vida política – primeiro fenômeno – vê na justiça o último
refúgio de um ideal democrático desencantado.”
“O
ativismo judicial, que é o sintoma mais aparente, nada mais é do que o
fragmento de um mecanismo complexo que envolve o enfraquecimento do Estado …”
“O
juiz aparece como um recurso contra a implosão de sociedades democráticas que
não conseguem controlar de outra maneira a complexidade e diversidade que elas
geram.”
“A
mídia, sob o pretexto de garantir a máxima transparência, pode privar os
cidadãos de garantias mínimas – como a presunção de inocência – para manter a
ilusão de uma democracia direta.”
“(…)
políticos (…) usam a justiça para enfraquecer seus adversários.”
“O
jornalismo de investigação se transformou em um jornalismo de delação. São
todos denunciando todos.”
A
ideia central que desenvolve é a expectativa de que os juízes certamente iriam
angariar uma enorme descrença quando o papel de guardião de promessas, no que
haviam sido artificialmente investidos, se revelasse ineficaz. Mas, acrescento,
o sonho de fama, poder ou prestígio dificilmente os faria evitar esse percurso.
E
aqui reside um segundo paradoxo, um pouco menos perceptível, mas nem por isso
menos real. Embora à primeira vista, a extensa amplitude das competências possa
indicar que se pavimenta um caminho para a tão temível ditadura dos juízes, o
que se revela por trás disso é, na verdade, um esvaziamento de poder. É o que
se pode denominar protagonismo submisso.
Sim,
certos juízes se transformaram em celebridades. Visitam camarotes oficiais e
festas de smoking. Outros se intrometem nas escolhas próprias da administração.
Sentenças são criadas em lacunas estratégicas e leis são interpretadas ao bom
gosto da voz das ruas, como convém aos arautos da popularidade. Mas a força
maior do Judiciário não reside na ausculta da opinião pública, no apoio
popular. Este é um grilhão para o juiz, não um par de asas.
O
que confere poder ao juiz é justamente a capacidade de interpretar a
Constituição e de ser o garante dos direitos fundamentais, à revelia, muitas
vezes, do gosto popular. No modelo do constitucionalismo democrático, as
maiorias também estão submetidas à defesa dos direitos fundamentais, mesmo e
principalmente quando não concordem com eles. O juiz com poder não é aquele que
condena com lastro no apoio popular ou o que é saudado pela multidão em júbilo;
mas o que decide apesar das multidões ou mesmo contra elas.
A
Constituição lhe garante poder; as maiorias lhe fazem refém. O juiz que sempre
condena, porque isso agrada, só agrada quando condena. Ele não tem poder, ao
revés, está condenado a condenar. É réu de si mesmo.
Esse
protagonismo dos juízes, portanto, não é apenas submisso –é também suicida.
Cavam a própria sepultura ao levar a decisão judicial aos píncaros da glória
onde, afinal de contas, em dado momento, alguém há de se aperceber que ela já
não é mais tão necessária assim.
O
modelo democrático que nos impusemos na transição da ditadura de 1964-1985 está
calcado em quatro importantes pilares: as garantias do estado liberal, da qual
não só não abrimos mão, como incrementamos (da liberdade de ir e vir à
proibição peremptória da censura); as mecânicas próprias do Estado social, em
especial o compromisso com a redução das desigualdades (direitos à educação,
saúde, moradia); a concepção democrática, calcada na preservação da dignidade humana
em um estado antropocêntrico (direitos fundamentais não submetidos à regra das
maiorias); a supremacia dos direitos humanos sobre a soberania, com o
reconhecimento da normativa internacional de tratados e convenções.
Para
garantir a efetividade dessa plêiade de direitos, o constituinte previu dois
mecanismos básicos: a-) as cláusulas pétreas, impedindo que mesmo os futuros
legisladores pudessem revogá-los e; b-) a inafastabilidade do Judiciário para
apreciação de qualquer lesão ou ameaça, com o quê o juiz assume o papel de
verdadeiro garante desses direitos.
Mas
eis que aqui impõe-se um terceiro paradoxo, que é, na verdade, bem conhecido na
longa trajetória institucional brasileira: a combinação da legislação liberal com
a prática autoritária. Mais especificamente, no caso, um amplo instrumental de
direitos humanos conferido aos agentes que são, seguidamente, desestimulados a
usá-lo.
Nem
falo aqui da violência dos agentes do Estado propriamente dita, que consegue
ser de maior dimensão na democracia do que fora na própria ditadura, que a
empregou ostensiva e desavergonhadamente. Altíssimos índices de violência
policial, por exemplo, quase sempre associada à pobreza e ao racismo. Mas sim
do papel dos juízes, os garantes dos direitos sem os quais a Constituição não é
muito mais do que, como dizem os chineses, um tigre de papel.
Mesmo
os tímidos avanços do STF, no estreito hiato de tempo que podemos falar sobre
eles, pouco penetraram na maioria dos tribunais brasileiros que, não raro, se
fecham às suas próprias e consolidadas jurisprudências. Enquanto a sociedade
viu a redemocratização tomar conta das instituições, após o fim dos anos de
chumbo, esta jamais chegou ao campo do Judiciário, que ainda se rege com base
em um entulho autoritário de 1979. Preserva-se a tradição nobiliárquica e a
ideia da cidadania censitária –só quem possui título de desembargador pode
votar nas suas eleições internas. O controle ideológico nunca saiu de moda, e
tem sido cada vez mais utilizado para soterrar a ideia de magistrados cidadãos.
E até mesmo decisões judiciais, em especial aquelas que afirmam direitos
humanos, tem sido motivo para perseguição, repreensão ou censura.
Não
há o que estranhar então, se de garantes da liberdade nos tornemos meros
zeladores da ordem, agentes censores da moral, e, a depender do desejo de
muitos, alguma espécie qualquer de polícia togada.
No
último quarto de século, vários foram os esforços para tirar a magistratura
deste atraso institucional. A criação de um órgão externo de controle, a
adaptação de mecanismos de gestão para os atrasos longevos, a abertura das
sessões administrativas tradicionalmente secretas. Os avanços foram tímidos e
também se acomodaram diante de um corporativismo que só fez aguçar nestes tempos.
Mas
as inclinações garantistas, justamente aquelas que expressam todo o arcabouço
de direitos previsto pela Constituição, são vistas ainda com estranhamento,
quando não preconceito dentro dos tribunais. Seus protagonistas ostentam o
status de disfuncionais, quando detém, por exemplo, a jurisdição criminal.
Mas
eis que agora o tempo nos trouxe o último dos paradoxos.
O
Judiciário tanto vem demorando para se adequar ao modelo democrático que agora
talvez nem precise mais. É o próprio modelo que está derretendo.
Um
a um os pilares vão sendo corroídos.
Lá
se foi o estado liberal e suas liberdades públicas, com o direito penal severo
que brotou da constituição cidadã e o processo que virou garantia de punição,
mesmo quando não condena. O estado de polícia assume o lugar do garantismo que,
a bem da verdade, foi sem nunca ter sido. Certamente não repetiremos práticas
nazistas como a polícia que se sobrepõe ao juiz, mas podemos dizer o mesmo dos
juízes que assumem papéis da polícia?
A
PEC do teto de gastos suspendeu o estado social por pelo menos vinte anos, de
modo que o compromisso constitucional de redução de desigualdades vai ficar
esperando mais um pouco, o que não parece preocupar em excesso o Judiciário,
salvo com relação à intranquilidade de seus próprios vencimentos –há anos
pendurados em uma medida de urgência processual.
A
trava “objetiva” em que se pretendeu prender os magistrados com medo da
política (como se ela tivesse estado ausente em algum momento), é hoje a mesma
que a onda regressiva quer impor aos professores sob o bordão reacionário da
“escola sem partido”, a pedagogia do opressor.
Como
assinala Eugenio Raul Zaffaroni em Poder judiciário: crise, acertos e
desacertos (1995), “o perfil público do juiz asséptico [sem ideologia] implica
um terrível manejo autoritário da imagem pública da justiça e, ao mesmo tempo,
uma fortíssima deterioração da identidade pessoal dos juízes (…) ao pretender
que o juiz como pessoa possa ser neutro, por dotes pessoais que o situam acima
dos conflitos humanos, associa-se à sua imagem pública um componente
sobre-humano, ou divino, que obviamente não é mais do que um produto de
manipulação…”. Lembra, ainda, Zaffaroni sobre o ministro da Justiça de
Mussolini: “Rocco não pretendia uma magistratura fascista, senão uma
magistratura “apolítica”.
A
censura volta a passos largos. A tutela da moral já cobra pedágio dentro de
museus. Mas é bem ver que a maioria de jornais não impressos, dos livros
apreendidos ou espetáculos interditados provieram mesmo é de decisões judiciais.
E
até o poder militar vai se fazendo cada vez mais presente nos escaninhos dessa
esvaziada democracia, abarcando funções impróprias de segurança pública. No Rio
de Janeiro, juízes fizeram um manifesto de apoio à intervenção, até porque
ordem, disciplina e hierarquia nunca foram mesmo produtos em falta no armazém
judicial.
Fracasso
de público e crítica, o Judiciário parece estar, todavia, em dia com os novos
rumos que a política institucional está tomando. E sim, este é um paradoxo
ainda mais assustador.
* Marcelo Semer é juiz de
Direito e escritor. Mestre em Direito Penal pela USP, é também membro e
ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia.
Por Marcelo Semer,
na revista Cult
https://revistacult.uol.com.br/home/a-justica-hoje-em-quatro-paradoxos/
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