Inicio
minha participação na coluna Direito Civil Atual, produzida pelos membros e convidados
da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo e coordenada pelos ministros
do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão, Antônio Carlos Ferreira e
Humberto Martins e pelos professores Ignácio Maria Poveda Velasco, Otavio Luiz
Rodrigues Junior, José Antônio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael
Peteffi da Silva, agradecendo o honroso convite de poder contribuir com esse
espaço privilegiado, palco de relevantes e atuais discussões dos mais variados
temas de dogmática do Direito Privado[i].
Nesta
coluna, pretende-se abordar o atual e relevante tema do adimplemento
substancial, que cada vez mais atrai a atenção dos estudiosos do Direito,
havendo quem pretenda, inclusive, não sem levantar fundamentada resistência da
doutrina [ii], a sua aplicação no âmbito do direito processual [iii] e no do
direito penal [iv].
Para
tanto, parte-se da análise da decisão proferida no REsp 1.581.505/SC, de
relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, julgado em 18/8/2016, no qual se
negou a aplicação da doutrina do adimplemento substancial em caso de
inadimplemento incontroverso de mais de 30% do valor do contrato,
ressaltando-se a necessidade do estabelecimento do correto fundamento dessa
doutrina no direito brasileiro, bem como dos critérios para sua aplicação, sem
o que se corre o risco de sofrer os efeitos da má recepção dos institutos
jurídicos.
Trata-se
de recurso especial em que se aduz violação aos artigos 421 e 422 do Código
Civil e aos artigos 4º, III, e 51, IV, ambos do Código de Defesa do Consumidor,
ao argumento de que a corte estadual teria afastado a aplicação da doutrina do
adimplemento substancial sob a alegação de que o valor devido superaria 30% o
valor do contrato, o que, contrario sensu, faria presumir que, na hipótese de
adimplemento de 70%, a doutrina aplicar-se-ia, destacando que a diferença
faltante seria de apenas 0,51%.
No
julgamento do apelo extremo, o relator, em primoroso voto, parte da análise do
surgimento da doutrina do adimplemento substancial no direito inglês do século
XVIII, para concluir que “o uso do instituto da substantial performance não
pode ser estimulado a ponto de inverter a ordem lógico-jurídica que assenta o
integral e regular cumprimento do contrato como meio esperado de extinção das
obrigações”[v].
De
fato, a referida doutrina deve ser utilizada tendo-se em vista que, em sua
origem, ela era reservada a casos específicos. Isso quer dizer que a sua
incidência não deve desconfigurar a lógica essencial e subjacente aos negócios
jurídcos contratuais.
Deve-se
ter em mente que, em sua origem, no direito inglês, a substancial performance
não guardava relação com a figura da boa-fé objetiva e foi desenvolvida com
âmbito de incidência circunscrito a determinados casos bem delimitados [vi].
Aliás, não se pode ignorar a reduzida relevância histórica da boa-fé nos
sistemas de Common Law, especialmente no britânico [vii].
Desse
modo, partindo-se da diferenciação desenvolvida no caso Kingston v. Preston
(1774) entre obrigações dependentes e independentes [viii], restringiu-se a
aplicação da referida doutrina aos casos que envolvessem os chamados entire
contracts, nos quais o cumprimento da obrigação por uma das partes funciona
como condition precedent para o nascimento de pretensão e obrigação no que diz
respeito ao outro polo da relação jurídica obrigacional [ix]. Nesses contratos,
o adimplemento substancial é suficiente para configurar a denominada condiction
precedent, figura que, desenvolvida sobretudo no caso Boone v. Eyre (1777), é
definida por Arthur Corbin como “an operative fact that must exist prior to the
existence of some legal relation in wich we are interested” [x]. Geoffrey Mead,
por seu turno, define-a como a pré-condição para que o direito ao pagamento ou,
mais genericamente, à contraprestação, surja [xi].
Nos
entire contracts, vigora a chamada rule of non-recovery, segundo a qual, em
caso de incumprimento culposo, aquele que não cumpriu corretamente perde aquilo
que já prestou [xii].
Treitel,
ao tratar dos chamados entire contracts, afirma que, em regra, se o contrante
“A” falha no cumprimento de sua obrigação, o contratante “B”, por seu turno,
pode recusar-se a cumprir a sua, mesmo que a deficiência do adimplemento de “A”
lhe cause pequeno ou nenhum prejuízo. E completa: “at common law A is not even generelly
entitled to any other recompense for such performance as he has actually
rendered” [xiii].
Com
o intuito de mitigar a rule of non-recovery, evitando-se injustiças que
poderiam advir de sua estrita aplicação, sobretudo naqueles casos em que o
cumprimento era muito próximo ao ideal, desenvolveram-se algumas alternativas,
entre elas a doutrina do adimplemento substancial.
No
sistema jurídico brasileiro, a doutrina do adimplemento substancial, em
princípio, é aplicada, no âmbito do direito contratual, de forma a impedir o
exercício do poder formativo extintivo de resolução, para obstar os efeitos da
cláusula resolutiva expressa e para afastar a exceptio non rite adimpleti
contractus [xiv].
O
adimplemento substancial, como já se pontuou em outra oportunidade [xv], deve
ser entendido, no que diz respeito à sua natureza jurídica, como modalidade de
inadimplemento. Trata-se de caso em que ocorre o não cumprimento, mas a
prestação encontra-se tão próxima do que poderia ser legitimamente esperado
pelo credor, que se confere um tratamento distinto das outras modalidades de
inadimplemento.
Pontes
de Miranda, parcialmente no mesmo sentido e sem fazer referência à cláusula
geral da boa-fé objetiva, já lecionava que para que surja o direito de
resolução ou de resilição por inadimplemento, “é preciso que a falta de
adimplemento da prestação seja considerável, isto é, não se trate de omissão
mínima” [xvi].
Os
efeitos do adimplemento substancial são, resumidamente, os seguintes: a) a
manutenção da relação jurídica obrigacional; b) a indenização por perdas e
danos no que diz respeito à parte faltante, e c) o eventual pedido de
adimplemento, se possível [xvii].
Cumpre
consignar, não obstante, que, no Brasil, o desenvolvimento da doutrina do
adimplemento substancial ocorrereu de forma diferente do que ocorrera no
direito inglês, sendo de fundamental importância o estabelecimento de suas
premissas dogmáticas, seja no que diz respeito ao seu fundamento jurídico, seja
no que tange aos critérios de aplicação.
Nesse
contexto, ressalta a importância do Superior Tribunal de Justiça, corte
superior criada pela Constituição Federal de 1988 para ser a guardiã do direito
federal, atuando no sentido de uniformizar a interpretação da legislação
infraconstitucional e conferindo contornos sólidos ao Direito Privado.
Na
próxima coluna, prosseguiremos com o exame da decisão proferida no REsp
1.581.505/SC, de relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, na qual a 4ª
Turma avançou, exata e precisamente, na delimitação necessária dos contornos da
doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro, cumprindo, de forma
primorosa, seu indispensável papel constitucional.
*Esta
coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito
Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona,
UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).
i
Agradeço, ainda, a Gabriel de Fassio Paulo, Assessor de Ministro no Superior
Tribunal de Justiça, por seus relevantes comentários e pela revisão preliminar
deste texto.
ii
Para uma crítica à adoção do instituto no âmbito do direito penal e processual
penal, ver: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Teoria do adimplemento substancial não
deve ser usada em decisões penais. 10 set. 2014. Disponível em:
.
Acesso em 19 set. 2016.
iii
DIDIER Jr., Fredie. “Notas sobre a aplicação da teoria do adimplemento
substancial no direito processual civil brasileiro”. Revista de Processo, v.
176, p. 335, out., 2009.
iv
SOUZA, Bruno Preti de. A teoria do adimplemento substancial no direito penal.
Revista Magister de direito penal e processual penal, v. 9, n. 54, p. 43-64,
jun./jul., 2013.
v
REsp n. 1.581.505/SC, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA,
julgado em 18/8/2016, DJe 28/9/2016.
vi
Nesse contexto, o Ministro Antonio Carlos Ferreira, em artigo para esta mesma
coluna, bem destacou a necessidade de se atentar para a evolução histórica da
doutrina do adimplemento substancial, ressaltando que a vinculação do
substancial performance inglês “com a boa-fé objetiva, em sua concepção atual,
é um equívoco que muitos reproduzem, ignorando que se trata de uma doutrina do
século XVIII, quando nem mesmo na Alemanha se havia cogitado uma cláusula geral
como a da boa-fé objetiva, nos moldes de seu desenvolvimento na segunda metade
do século XIX”. Cf. FERREIRA, Antonio Carlos. A interpretação da doutrina do
adimplemento substancial (Parte 1). 9 Fev. 2015. Disponível em:
.
Acesso em: 20 set. 2016.
vii
CORDEIRO, Antônio Barreto Menezes. Princípio da boa-fé na execução dos
contratos no direito inglês. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 14.
ano 5. p. 370. São Paulo: RT, jan.-mar., 2018.
viii
Ao primeiro tipo dá-se o nome de conditions; ao segundo, warranties. Treitel,
ao analisar tal dicotomia, esclarece que a violação de uma condition confere, à
parte vítima, o direito de resolver o contrato e pleitear perdas e danos. Por
outro lado, a violação de uma warrantie dá ensejo apenas à pretensão à
indenização por perdas e danos. Cf. TREITEL, Guenter Heinz. The Law of
Contract. 6. ed. London: Stevens & Sons, 1983, p. 592-593. Importa
mencionar, ademais, que a moderna distinção entre breach of warranty e breach
of condition somente foi estabelecida no final do século XIX quando consagrada
no Sale of Goods Act 1893. Cf. BECK, Anthony. The doctrine of substantial
performance conditions and conditions precedent. The Modern Law Review, v. 38,
n. 4, p. 420, jul., 1975.
ix
Nas palavras de Geoffrey Mead, “if a contract is entire then complete
performance on the part of D is required before P is required to pay anything;
see Sumpter v. Hedges” (MEAD, Geoffrey. Restitution within contract?. Legal
Studies, n. 172, v. 11, issue 2, p. 176, Jul. 1992). Esse âmbito específico de
incidência fez com que, no século XX, existissem, no Direito inglês, poucos
julgados em que se utilizou a doutrina da substancial performance, o que denota
um uso parcimonioso e comedido. Cf. FERREIRA, Antonio Carlos. A interpretação
da doutrina do adimplemento substancial (Parte 1). 9 Fev. 2015. Disponível em:
.
Acesso em: 20 set. 2016.
x
CORBIN, Arthur Linton. Conditions in the law of contract. The Yale Law Journal,
v. 28, n. 8, p. 747, jun.,1919.
xi
MEAD, Geoffrey. Restitution within contract?. Legal Studies, n. 172, v. 11,
issue 2, p. 176, Jul., 1992. Já Anthony Beck a define como o termo contratual
que determina que somente o cumprimento de determinada obrigação, por uma das
partes da relação juridical, faz nascer uma obrigação para a outra parte. Cf.
BECK, Anthony. The doctrine of substantial performance conditions and
conditions precedent. The Modern Law Review, v. 38, n. 4, p. 413, jul., 1975.
xii
TREITEL, Guenter Heinz. Some problems of breach of contract. The Modern Law
Review, v. 30, p.139-142, Mar., 1967. “The element of penalty grows, of course,
the less serious the defect is, and the further performance has gone. Both
these factors were stressed in the early development of the first common law
mitigation of the rule, that is, of the doctrine of ‘substantial performance
(…) The need for these, and further, modifications of the strict rule of
non-recovery becomes all the greater in view of the increasing technological
complexities involved in many modern contracts for the execution of works or
the manufacture of machinery. Exact performance in such cases often becomes a
practical impossibility” (TREITEL, Guenter Heinz. Some problems of breach of
contract. The Modern Law Review, v. 30, p. 142, Mar., 1967).
xiii
TREITEL, Guenter Heinz. The Law of Contract. 6. ed. London: Stevens & Sons,
1983, p. 588.
xiv
BUSSATA, Eduardo Luiz. Resolução dos Contratos e Teoria do Adimplemento
Substancial. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 99.
xv
STJ – REsp 1.581.505/SC – Comentário por Augusto Cézar Lukascheck Prado:
Adimplemento Substacial: fundamento e critérios de aplicação. Revista de
Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 373-407. São Paulo: Ed. RT,
out.-dez., 2016.
xvi
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: Direito
das Obrigações: Inadimplemento. t. XXVI. Atualizado por Ruy Rosado de Aguiar
Júnior e Nelson Nery Jr. São Paulo: RT, 2012, p. 208.
xvii
BECKER, Anelise. “A doutrina do adimplemento substancial no Direito brasileiro
e em perspectiva comparatista”. Revista da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, v. 9, n. 1, p. 65-66, nov. 1993.
Augusto Cézar Lukascheck
Prado é mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São
Francisco (USP) e graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco
(USP).
Revista
Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-jun-11/direito-civil-atual-stj-avanca-delimitacao-adimplemento-substantivo-parte
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