domingo, 24 de junho de 2018

STJ AVANÇA NA DELIMITAÇÃO DA DOUTRINA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. PARTE I. Por Augusto Cézar Lukascheck Prado


Inicio minha participação na coluna Direito Civil Atual, produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo e coordenada pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão, Antônio Carlos Ferreira e Humberto Martins e pelos professores Ignácio Maria Poveda Velasco, Otavio Luiz Rodrigues Junior, José Antônio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva, agradecendo o honroso convite de poder contribuir com esse espaço privilegiado, palco de relevantes e atuais discussões dos mais variados temas de dogmática do Direito Privado[i].

Nesta coluna, pretende-se abordar o atual e relevante tema do adimplemento substancial, que cada vez mais atrai a atenção dos estudiosos do Direito, havendo quem pretenda, inclusive, não sem levantar fundamentada resistência da doutrina [ii], a sua aplicação no âmbito do direito processual [iii] e no do direito penal [iv].

Para tanto, parte-se da análise da decisão proferida no REsp 1.581.505/SC, de relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, julgado em 18/8/2016, no qual se negou a aplicação da doutrina do adimplemento substancial em caso de inadimplemento incontroverso de mais de 30% do valor do contrato, ressaltando-se a necessidade do estabelecimento do correto fundamento dessa doutrina no direito brasileiro, bem como dos critérios para sua aplicação, sem o que se corre o risco de sofrer os efeitos da má recepção dos institutos jurídicos.

Trata-se de recurso especial em que se aduz violação aos artigos 421 e 422 do Código Civil e aos artigos 4º, III, e 51, IV, ambos do Código de Defesa do Consumidor, ao argumento de que a corte estadual teria afastado a aplicação da doutrina do adimplemento substancial sob a alegação de que o valor devido superaria 30% o valor do contrato, o que, contrario sensu, faria presumir que, na hipótese de adimplemento de 70%, a doutrina aplicar-se-ia, destacando que a diferença faltante seria de apenas 0,51%.

No julgamento do apelo extremo, o relator, em primoroso voto, parte da análise do surgimento da doutrina do adimplemento substancial no direito inglês do século XVIII, para concluir que “o uso do instituto da substantial performance não pode ser estimulado a ponto de inverter a ordem lógico-jurídica que assenta o integral e regular cumprimento do contrato como meio esperado de extinção das obrigações”[v].

De fato, a referida doutrina deve ser utilizada tendo-se em vista que, em sua origem, ela era reservada a casos específicos. Isso quer dizer que a sua incidência não deve desconfigurar a lógica essencial e subjacente aos negócios jurídcos contratuais.

Deve-se ter em mente que, em sua origem, no direito inglês, a substancial performance não guardava relação com a figura da boa-fé objetiva e foi desenvolvida com âmbito de incidência circunscrito a determinados casos bem delimitados [vi]. Aliás, não se pode ignorar a reduzida relevância histórica da boa-fé nos sistemas de Common Law, especialmente no britânico [vii].

Desse modo, partindo-se da diferenciação desenvolvida no caso Kingston v. Preston (1774) entre obrigações dependentes e independentes [viii], restringiu-se a aplicação da referida doutrina aos casos que envolvessem os chamados entire contracts, nos quais o cumprimento da obrigação por uma das partes funciona como condition precedent para o nascimento de pretensão e obrigação no que diz respeito ao outro polo da relação jurídica obrigacional [ix]. Nesses contratos, o adimplemento substancial é suficiente para configurar a denominada condiction precedent, figura que, desenvolvida sobretudo no caso Boone v. Eyre (1777), é definida por Arthur Corbin como “an operative fact that must exist prior to the existence of some legal relation in wich we are interested” [x]. Geoffrey Mead, por seu turno, define-a como a pré-condição para que o direito ao pagamento ou, mais genericamente, à contraprestação, surja [xi].

Nos entire contracts, vigora a chamada rule of non-recovery, segundo a qual, em caso de incumprimento culposo, aquele que não cumpriu corretamente perde aquilo que já prestou [xii].

Treitel, ao tratar dos chamados entire contracts, afirma que, em regra, se o contrante “A” falha no cumprimento de sua obrigação, o contratante “B”, por seu turno, pode recusar-se a cumprir a sua, mesmo que a deficiência do adimplemento de “A” lhe cause pequeno ou nenhum prejuízo. E completa: “at common law A is not even generelly entitled to any other recompense for such performance as he has actually rendered” [xiii].

Com o intuito de mitigar a rule of non-recovery, evitando-se injustiças que poderiam advir de sua estrita aplicação, sobretudo naqueles casos em que o cumprimento era muito próximo ao ideal, desenvolveram-se algumas alternativas, entre elas a doutrina do adimplemento substancial.

No sistema jurídico brasileiro, a doutrina do adimplemento substancial, em princípio, é aplicada, no âmbito do direito contratual, de forma a impedir o exercício do poder formativo extintivo de resolução, para obstar os efeitos da cláusula resolutiva expressa e para afastar a exceptio non rite adimpleti contractus [xiv].

O adimplemento substancial, como já se pontuou em outra oportunidade [xv], deve ser entendido, no que diz respeito à sua natureza jurídica, como modalidade de inadimplemento. Trata-se de caso em que ocorre o não cumprimento, mas a prestação encontra-se tão próxima do que poderia ser legitimamente esperado pelo credor, que se confere um tratamento distinto das outras modalidades de inadimplemento.

Pontes de Miranda, parcialmente no mesmo sentido e sem fazer referência à cláusula geral da boa-fé objetiva, já lecionava que para que surja o direito de resolução ou de resilição por inadimplemento, “é preciso que a falta de adimplemento da prestação seja considerável, isto é, não se trate de omissão mínima” [xvi].

Os efeitos do adimplemento substancial são, resumidamente, os seguintes: a) a manutenção da relação jurídica obrigacional; b) a indenização por perdas e danos no que diz respeito à parte faltante, e c) o eventual pedido de adimplemento, se possível [xvii].

Cumpre consignar, não obstante, que, no Brasil, o desenvolvimento da doutrina do adimplemento substancial ocorrereu de forma diferente do que ocorrera no direito inglês, sendo de fundamental importância o estabelecimento de suas premissas dogmáticas, seja no que diz respeito ao seu fundamento jurídico, seja no que tange aos critérios de aplicação.

Nesse contexto, ressalta a importância do Superior Tribunal de Justiça, corte superior criada pela Constituição Federal de 1988 para ser a guardiã do direito federal, atuando no sentido de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional e conferindo contornos sólidos ao Direito Privado.

Na próxima coluna, prosseguiremos com o exame da decisão proferida no REsp 1.581.505/SC, de relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, na qual a 4ª Turma avançou, exata e precisamente, na delimitação necessária dos contornos da doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro, cumprindo, de forma primorosa, seu indispensável papel constitucional.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).

i Agradeço, ainda, a Gabriel de Fassio Paulo, Assessor de Ministro no Superior Tribunal de Justiça, por seus relevantes comentários e pela revisão preliminar deste texto.

ii Para uma crítica à adoção do instituto no âmbito do direito penal e processual penal, ver: RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Teoria do adimplemento substancial não deve ser usada em decisões penais. 10 set. 2014. Disponível em: . Acesso em 19 set. 2016.

iii DIDIER Jr., Fredie. “Notas sobre a aplicação da teoria do adimplemento substancial no direito processual civil brasileiro”. Revista de Processo, v. 176, p. 335, out., 2009.

iv SOUZA, Bruno Preti de. A teoria do adimplemento substancial no direito penal. Revista Magister de direito penal e processual penal, v. 9, n. 54, p. 43-64, jun./jul., 2013.

v REsp n. 1.581.505/SC, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 18/8/2016, DJe 28/9/2016.

vi Nesse contexto, o Ministro Antonio Carlos Ferreira, em artigo para esta mesma coluna, bem destacou a necessidade de se atentar para a evolução histórica da doutrina do adimplemento substancial, ressaltando que a vinculação do substancial performance inglês “com a boa-fé objetiva, em sua concepção atual, é um equívoco que muitos reproduzem, ignorando que se trata de uma doutrina do século XVIII, quando nem mesmo na Alemanha se havia cogitado uma cláusula geral como a da boa-fé objetiva, nos moldes de seu desenvolvimento na segunda metade do século XIX”. Cf. FERREIRA, Antonio Carlos. A interpretação da doutrina do adimplemento substancial (Parte 1). 9 Fev. 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2016.

vii CORDEIRO, Antônio Barreto Menezes. Princípio da boa-fé na execução dos contratos no direito inglês. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 14. ano 5. p. 370. São Paulo: RT, jan.-mar., 2018.

viii Ao primeiro tipo dá-se o nome de conditions; ao segundo, warranties. Treitel, ao analisar tal dicotomia, esclarece que a violação de uma condition confere, à parte vítima, o direito de resolver o contrato e pleitear perdas e danos. Por outro lado, a violação de uma warrantie dá ensejo apenas à pretensão à indenização por perdas e danos. Cf. TREITEL, Guenter Heinz. The Law of Contract. 6. ed. London: Stevens & Sons, 1983, p. 592-593. Importa mencionar, ademais, que a moderna distinção entre breach of warranty e breach of condition somente foi estabelecida no final do século XIX quando consagrada no Sale of Goods Act 1893. Cf. BECK, Anthony. The doctrine of substantial performance conditions and conditions precedent. The Modern Law Review, v. 38, n. 4, p. 420, jul., 1975.

ix Nas palavras de Geoffrey Mead, “if a contract is entire then complete performance on the part of D is required before P is required to pay anything; see Sumpter v. Hedges” (MEAD, Geoffrey. Restitution within contract?. Legal Studies, n. 172, v. 11, issue 2, p. 176, Jul. 1992). Esse âmbito específico de incidência fez com que, no século XX, existissem, no Direito inglês, poucos julgados em que se utilizou a doutrina da substancial performance, o que denota um uso parcimonioso e comedido. Cf. FERREIRA, Antonio Carlos. A interpretação da doutrina do adimplemento substancial (Parte 1). 9 Fev. 2015. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2016.

x CORBIN, Arthur Linton. Conditions in the law of contract. The Yale Law Journal, v. 28, n. 8, p. 747, jun.,1919.

xi MEAD, Geoffrey. Restitution within contract?. Legal Studies, n. 172, v. 11, issue 2, p. 176, Jul., 1992. Já Anthony Beck a define como o termo contratual que determina que somente o cumprimento de determinada obrigação, por uma das partes da relação juridical, faz nascer uma obrigação para a outra parte. Cf. BECK, Anthony. The doctrine of substantial performance conditions and conditions precedent. The Modern Law Review, v. 38, n. 4, p. 413, jul., 1975.

xii TREITEL, Guenter Heinz. Some problems of breach of contract. The Modern Law Review, v. 30, p.139-142, Mar., 1967. “The element of penalty grows, of course, the less serious the defect is, and the further performance has gone. Both these factors were stressed in the early development of the first common law mitigation of the rule, that is, of the doctrine of ‘substantial performance (…) The need for these, and further, modifications of the strict rule of non-recovery becomes all the greater in view of the increasing technological complexities involved in many modern contracts for the execution of works or the manufacture of machinery. Exact performance in such cases often becomes a practical impossibility” (TREITEL, Guenter Heinz. Some problems of breach of contract. The Modern Law Review, v. 30, p. 142, Mar., 1967).

xiii TREITEL, Guenter Heinz. The Law of Contract. 6. ed. London: Stevens & Sons, 1983, p. 588.

xiv BUSSATA, Eduardo Luiz. Resolução dos Contratos e Teoria do Adimplemento Substancial. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 99.

xv STJ – REsp 1.581.505/SC – Comentário por Augusto Cézar Lukascheck Prado: Adimplemento Substacial: fundamento e critérios de aplicação. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 9. ano 3. p. 373-407. São Paulo: Ed. RT, out.-dez., 2016.

xvi PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: Direito das Obrigações: Inadimplemento. t. XXVI. Atualizado por Ruy Rosado de Aguiar Júnior e Nelson Nery Jr. São Paulo: RT, 2012, p. 208.

xvii BECKER, Anelise. “A doutrina do adimplemento substancial no Direito brasileiro e em perspectiva comparatista”. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 9, n. 1, p. 65-66, nov. 1993.

Augusto Cézar Lukascheck Prado é mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP) e graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2018-jun-11/direito-civil-atual-stj-avanca-delimitacao-adimplemento-substantivo-parte



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