As
delações premiadas em nossa prática do Direito trouxeram um conflito entre os
advogados criminalistas que se recusam a fazer ou participar de negociações e
aqueles que acreditam que é mais um método de defesa. O presente artigo visa
abordar o que está no cerne deste debate e suas razões éticas.
É
necessário, inicialmente, compreender qual a essência da advocacia criminal.
Quando as águas do rio estão turvas, mexidas pelo seu fundo, nada melhor que ir
à nascente. O professor Enrico Alravilla, em Psicologia Judiciária (ed. 1946,
Livraria Acadêmica), faz um perfil psicológico do advogado. A certa altura,
transcreve trecho de outra obra (Un oratore della negazione: Arturo Labriola):
“O acontecimento mais extraordinário seria, sem dúvida, o de um defensor que,
em dado momento do processo, erguendo-se do seu lugar e voltando-se para os
magistrados, para os acusadores, para o público, dissesse: Senhores, sinto que
meu lugar não pode ser aqui, mas nas bancadas da acusação! Ou então ao
contrario. Isto, porém, não deve acontecer, porque, sob o aspecto retórico de
um belo gesto, se esconderia uma desonestidade e uma vilania”.
A
colaboração do advogado com a acusação, segundo Altavilla, esconderia um ato de
covardia, desonestidade e baixeza. E por quê? Porque ao advogado criminal é
dada uma missão das mais difíceis, a de defender um ser humano de atos que,
muitas vezes, vão de encontro direto com suas ações de vida, suas crenças
ideais e preconceitos. Abstrair-se disso e assumir essa missão só se faz por
uma crença e um vigor nos interesses da dignidade da pessoa humana.
Esse
dever é dirigido “mesmo aqueles que o advogado saiba culpados, não só podem,
como devem, ser ele defendidos”. Mittermaier diz que devemos defendê-los, mesmo
que no caso de eles nos terem feito, diretamente, a confissão confidencial do
seu crime, e algumas leis germânicas estatuem que nenhum advogado pode se
eximir do encargo da defesa sob pretexto de nada ter para opor a acusação. E
também a fórmula contida no juramento dos antigos advogados franceses, “de
abandonares as causas logo que se apercebessem de que eram más”, não poderia,
certamente, alargar-se às causas penais, porque podemos concluir com Zanardelli
perante a Justiça punitiva “até o patrocínio de uma causa má é legítimo e
obrigatório, porque a humanidade assim ordena, a piedade o exige, o costume o
permite e a lei o impõe”.
Esse
dever somente pode ser exercido com vigor, com destemor e coragem. O centro e
único bem que deve o advogado ser fiel é o interesse da dignidade da pessoa
humana. Por isso, entre todos os conflitos éticos e de consciência, a solução
sempre estará em qual atitude preserva o interesse desta dignidade irrenunciável.
E, por vezes, estará o advogado em conflito com sua consciência, e outras, com
o próprio defendido.
O
advogado Henri Robert relata no livro O Advogado (ed. 1997, Martins Fonte) um
caso de consciência “em que o advogado recebeu do cliente uma confissão de
culpa, sendo porém que as circunstâncias da causa constrangem o defensor a
alegar inocência”. Ao fim do capítulo, Henri afirma que “pode declarar que não
se sente mais a liberdade de espírito necessária para assumir, com todos seus
recursos, a defesa que lhe é confiada, e retirar-se do caso”.
Aqui,
no âmago da profissão, o advogado, para estar à altura da missão da defesa, não
pode perder na alma o vigor necessário para a defesa intransigente do ser
acusado, mesmo que culpado. O defensor deve preservar os mais elementares
direitos e garantias. Por isso, Beccaria (Dos Delitos e Das Penas, Atena
Editora) se volta contra os interrogatórios sugestivos e contra os juramentos.
“Outra contradição entre as leis e os sentimentos naturais é exigir de um acusado
o juramento de dizer a verdade, quando ele tem o maior interesse em calá-la.
Como se o homem pudesse jurar de boa-fé que vai contribuir para a sua própria
destruição! Como se, o mais das vezes, a voz do interesse não abafasse no
coração humano e da religião.”
Este
livro de Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria de 1738, aborda o que hoje os
incautos de estudo sobre o tempo chamam de moderna delação premiada. “Alguns
tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de um grande crime que trai os seus
companheiros.” Quanto ao tema, afirma que “em vão procuro abafar os remorsos
que me afligem, quando autorizo as santas leis, fiadoras sagradas da confiança
pública, bases respeitáveis dos costumes, a proteger a perfídia, a legitimar a
traição. E que o opróbrio para uma nação, se os seus magistrados tornados
infiéis, faltassem à promessa que fizeram e se apoiassem vergonhosamente em vãs
sutilezas, para levar ao suplício aquele que respondeu ao convite das leis!”.
Mas
se a dignidade da pessoa humana é o centro da missão de defesa e não se pode
exigir do acusado a confissão, qual deveria ser o comportamento do advogado
diante de uma situação que vê o acusado confessar em razão das torturas físicas
ou procedimentais? Qual a posição deve adotar o advogado de defesa que é sabedor
que a confissão decorre de tais torturas? O que deve fazer se sabe que a
traição e a perfídia aos cúmplices advêm do mesmo método de tortura? O que deve
fazer o advogado se o defendido suplica para que aceite a renúncia de sua
liberdade, de sua integridade física e mesmo de sua vida?
A
Convenção sobre Direitos Humanos de 1969 se refere à vida, à integridade
pessoal, à proibição da escravidão e ainda às garantias processuais e à
presunção de inocência como irrenunciáveis. Assim, não pode o advogado de
defesa acatar uma renúncia desses direitos. Mesmo contra a ordem do
patrocinado, o advogado tem o dever de lutar por esses direitos elementares.
Não pode o advogado acatar a ordem do patrocinado que desiste de sua liberdade.
A
assinatura do advogado na confissão de alguém que foi torturado serve para dar
legitimidade aos verdugos a atestar falsamente que a confissão foi livre e
espontânea. A negociação de uma delação, após estas torturas físicas ou na
alma, são fruto de aflição humana e não são legítimas ou constitucionais. Não
pode o advogado de defesa dela participar ou legitimar.
Inicialmente,
o vigor da defesa se desfalece. Assim, o advogado que se encontra na defesa dos
autos já não presta mais ao papel que lhe é destinado e, se negocia a delação,
finge que defende. No momento que inicia a negociar, perde o vigor, a
independência, e passa a fazer um simulacro de defesa.
Nos
tempos atuais, são conhecidas as prisões indiscriminadas, os sequestros
corporais para Curitiba, contra todas as leis que garantem ao preso ficar no
local onde mora e perto da família. As prisões, ameaças às famílias e aos
negócios, já não são novidades. São públicas as exigências colocadas nos
acordos de desistência de recursos e Habeas Corpus. São notórias as exigências
de troca de advogados para outros que compactuem com os métodos de delação, de
preferência dos acusadores e dos juízes que vão homologar e legitimar essa
renúncia à dignidade do ser humano.
Os
acusadores prevaricam em liberar bens e dar vantagens ilegais, a dispensar as
garantias das vítimas. Os juízes deixam de preservar a Constituição e o ser
humano, compactuam e participam em coautoria deste degradar do ser. E, com
vênias, os advogados, conscientes e sabedores de tudo que está em volta do que
antecedeu a “delação premiada”, delas participam e atestam, são mais que
omissos quanto ao momento histórico que vivemos. São coautores do retorno a um
tempo antes que Beccaria. Mas são premiados com os valores liberados dos
acusados e desmontam a resistência dura, árdua, da missão de séculos de defesa
dos direitos fundamentais.
Fernando
Augusto Fernandes é advogado criminalista, doutor em ciência política, sócio do
Fernando Fernandes Advogados.
Revista
Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-mai-10/fernando-fernandes-simulacro-defesa-delacao-premiada
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