terça-feira, 22 de maio de 2018

A TUTELA JURÍDICA DOS ANIMAIS NO DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO. PARTE 1. Por Fernando Speck de Souza e Rafael Speck de Souza


1. Introdução

No dia 12 de dezembro de 2017, a Câmara Baixa do Parlamento espanhol aprovou, por unanimidade, mudanças no Código Civil, na Lei Hipotecária e no Código de Processo Civil espanhóis com o objetivo de alterar o status jurídico dos animais, de coisas para seres vivos. Agora, a reforma inicia seu caminho dentro do Parlamento, podendo, ainda, sofrer emendas. A Espanha, com esse aperfeiçoamento legal, juntar-se-á ao seleto grupo de países — Alemanha, Áustria, Suíça, França e Portugal — que já modificou o estatuto legal dos animais[1].

Quase duas semanas depois (em 25 de dezembro de 2017), esta coluna recebeu o texto intitulado Os animais e a liberdade de expressão, de Marcílio Franca e Inês Virgínia Soares, os quais trouxeram interessantes capítulos da história do diálogo que as artes e a Justiça mantêm com os animais[2].

Os dois destaques acima demonstram a importância do estudo do estatuto jurídico dos animais e as consequências de sua inexistência no Brasil.

Neste artigo, pretendemos fazer uma análise panorâmica do itinerário histórico-filosófico do conceito de dignidade, para adentrarmos na redefinição do estatuto jurídico dos animais. Apresentaremos a evolução legislativa do status jurídico animal no Direito estrangeiro, bem como as propostas legislativas em curso no Brasil.

2. Evolução histórica da concepção de dignidade: é possível falar em dignidade animal?

A expressão dignidade, do latim dignìtas, significa, dentre outras, “a qualidade moral que infunde respeito”[3]. Por ser uma expressão culturalmente atrelada à base do que se conhece por direitos humanos[4], a sua vinculação aos animais não humanos representa um desafio.

Destacados pensadores ocidentais, em diferentes períodos, formularam e defenderam atitudes especistas que acabaram sendo herdadas por nós. Fundamental, pois, trazermos as origens histórico-filosóficas que sedimentaram a concepção unidirecional da dignidade centrada no humano. Dessa exposição, será possível vislumbrar uma abertura de perspectiva para a consideração moral interespécies.

2.1. Pensamento antigo     

No pensamento filosófico e político da Antiguidade clássica grega, a dignidade era tida como qualidade moral intrínseca ao ser humano, sendo elemento que o distinguia das demais espécies animais. Nesse período, a dignidade relacionava-se, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade humana[5].

Aristóteles, no século IV a.e.c., foi responsável por criar o sistema ético que prevalece até nossos dias, intitulado de Grande Cadeia do Ser ou Scala Naturae, que concebe o universo como um ente imutável e organizado que forma um sistema hierarquizado, onde cada ser ocupa um lugar apropriado, necessário e permanente[6]. O pensamento aristotélico vê no ser humano a existência de um espírito que falta aos demais animais; e considera que os animais, assim como os escravos, servem de meio para que se atinjam os propósitos humanos[7].

Os estoicos refutam a teoria aristotélica do escravo natural em favor de uma igualdade espiritual de todos os seres humanos, mas compartilham a ideia de que os animais, destituídos de qualquer valor intrínseco, são simples instrumentos em benefício dos homens.

Sabe-se que o pensamento grego não é uniforme, dividindo-se em escolas rivais, cada qual incorporando as ideias de seu fundador. Sendo assim, se Aristóteles (384 a.e.c–322 a.e.c) representa uma escola majoritariamente aceita, enquadrando-se como defensor do antropocentrismo, por outro lado, vê-se na escola de Pitágoras (580 a.e.c–496 a.e.c) a defesa de uma ética não antropocêntrica.

Além de Pitágoras, figuraram como representantes da perspectiva não antropocêntrica os filósofos Sêneca (4 a.e.c–65), Plutarco (45–120), Porfírio (234–305) e Plotino (205–270). Em que pese tais vozes dissonantes, a escola que se consolidou na história ocidental foi a de Platão e de seu discípulo, Aristóteles[8].

2.2. Pensamento medieval

Na primeira fase do Cristianismo, quando este havia assumido a condição de religião oficial do Império, destacou-se o pensamento do Papa Leão Magno (400–461), sustentando que os seres humanos possuíam dignidade pelo fato de que Deus os criou à sua imagem e semelhança. Logo depois, no período inicial da Idade Média, o filósofo e teólogo romano Anicio Manlio Severino Boécio (480–524) – cujo pensamento foi posteriormente retomado por Tomás de Aquino – formulou, para a época, um novo conceito de pessoa que acabou por influenciar a noção contemporânea de dignidade ao definir a pessoa como substância individual de natureza racional[9].

Dois expoentes do pensamento cristão sedimentaram a perspectiva antropocêntrica de se pensar a dignidade da vida: os teólogos Agostinho de Hipona (354– 430) e Tomás de Aquino (1221–1243).

Agostinho de Hipona (ou Santo Agostinho, como ficou conhecido) refutou veementemente a ideia de se considerar pecado matar os animais, sob o fundamento de que a providência divina havia autorizado o uso dessas criaturas de acordo com a ordem natural das coisas, uma vez que, sendo destituídos de alma racional, os animais estariam impossibilitados de participar de qualquer tipo de acordo político[10].

Para Tomás de Aquino, por sua vez, a crueldade com animais irracionais não era, em si, algo censurável. Em seu esquema moral, não havia espaço para coisas erradas desse tipo; ele dividia os pecados humanos entre aqueles cometidos contra Deus, contra si próprio e contra seus semelhantes[11].

A visão de mundo centrada no mito bíblico da criação contribuiu para o entendimento de superioridade humana e subjugação dos animais. Diversas passagens bíblicas demonstram esta superioridade e domínio. Exemplo dessa afirmação consta no início da Bíblia (Gênesis, 1:26-27), em que se observa claramente a ideia de que o homem é um ser especial, estando os demais seres vivos sob seu domínio.

Martha Nussbaum ressalta que todos os filósofos que escrevem a partir da tradição ocidental moderna, quaisquer que sejam suas crenças religiosas, foram influenciados profundamente pela tradição judaico-cristã, que ensina que aos seres humanos foi dado o domínio sobre os animais e as plantas. Ainda que escritores judeus e cristãos tenham estudado os gregos e os romanos e incorporado muito de suas ideias, não surpreende que a escola antiga de pensamento ético, que teve a maior influência em seu pensamento com relação à questão dos animais, tenha sido o estoicismo, que, de todas as perspectivas greco-romanas, foi a menos simpática à ideia de que os animais poderiam ter um estatuto ético[12].

À exceção de pensadores como Francisco de Assis, a Igreja sempre olhou para os animais com indiferença, na crença de que, sendo destituídos de livre-arbítrio, eles acabam por se identificar com o mundo pecaminoso[13].

A vida de Giovanni di Pietro di Bernardone (1182–1226), de pseudônimo São Francisco de Assis, foi repleta de exemplos nos quais demonstrou compaixão para com os animais. Não obstante, a perspectiva biocêntrica de Francisco de Assis não alcançou o status de pensamento oficial da Igreja, posto ocupado pelas ideias de Tomás de Aquino.

O discurso oficial da Igreja Católica Apostólica Romana, mesmo após a Reforma Protestante, segue Tomás de Aquino e não Francisco de Assis, ao definir a ética católica e o status que esta reserva aos animais. Maus-tratos contra animais não encontram lugar na lista de pecados estabelecida por Aquino, e assim o é até nossos dias[14].

Em 18 de junho de 2015, o sacerdote Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, publicou carta encíclica denominada Laudato si, em que afirma ser necessária nova hermenêutica ao texto bíblico que convida a dominar a terra. Segundo explica:

Se é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que, do fato de ser criados à imagem de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras criaturas. [...]. Assim nos damos conta de que a Bíblia não dá lugar a um antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras criaturas[15].

A encíclica Laudato si representou um avanço à visão tradicional católica por problematizar a crise socioecológica e criticar o modelo de desenvolvimento vigente; ainda, deu ênfase à ecologia integral — influência colhida do pensamento de Leonardo Boff[16]. Contudo, a situação dos animais não humanos ainda permanece em aberto. No referido texto, não se vislumbra nenhuma crítica aos sistemas de produção e consumo de produtos de origem animal — uma das principais causas da destruição dos habitats, da degradação do Planeta e da exploração abusiva dos animais.

***

Na próxima semana, concluiremos a parte histórica do estudo com o pensamento moderno. Enfocaremos o contexto antropocêntrico renascentista pós-Idade Média; a influência das ideias de René Descartes para a concepção objetificadora e mecanicista que foi conferida aos animais não humanos; o pensamento de Immanuel Kanta atribuir valor intrínseco apenas aos seres racionais; e a posterior virada kantiana, quando diversos autores passam a defender a dignidade para além da fronteira do humano, por entenderem que o critério relevante para a moralidade não está na razão, mas na capacidade de sofrer do indivíduo.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).

**A convite da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, coordenada pelos professores Otavio Luiz Rodrigues Junior, Ignacio Maria Poveda Velasco, José Antonio Peres Gediel, Rafael Peteffi da Silva e Rodrigo Xavier Leonardo, a quem agradecemos empenhadamente, aceitamos o desafio de escrever este estudo, que será dividido em três colunas. Nesta primeira parte, trataremos da evolução histórica da dignidade animal nas idades Antiga e Medieval.

[1] PARLAMENTO DA ESPANHA apoia por unanimidade considerar os animais como seres vivos e não objetos. El País Internacional, Madri, 13 dez. 2017. Direitos dos Animais. Disponível em: . Acesso em: 7.jan.2018.
[2] FRANCA, Marcílio; SOARES, Inês Virgínia. Os animais e a liberdade de expressão na Arte. Revista Eletrônica ConJur. São Paulo, 25 dez. 2017. Coluna "Direito Civil Atual". Disponível em: . Acesso em: dez.2017.
[3] HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, 1986. p. 685.
[4] Se, para os animais não humanos, o princípio da dignidade não tem encontrado ressonância, para os seres humanos, tal princípio tem sido transformado na “panaceia de todos os males”, conforme bem ilustra o Recurso Extraordinário n. 363.889, julgado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no dia 2 jun. 2011 e publicado no DJe 238, de 15 dez. 2011. No voto condutor do acórdão, o relator, Min. Dias Toffoli, destacou: “[...], se para tudo se há de fazer emprego desse princípio, em última análise, ele para nada servirá. Não se pode esquecer o processo de deformação a que foi submetida a cláusula geral da boa-fé na jurisprudência francesa, a ponto de seu recurso excessivo levar ao descrédito essa importante figura jurídica. Nesse ponto, estou acompanhado de autores como João Baptista Vilella e Antonio Junqueira de Azevedo”.
[5] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 32.
[6] GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal. Salvador: Evolução, 2008. p. 20.
[7] MIGLIORE, Alfredo Domingues Barbosa. Personalidade jurídica dos grandes primatas. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p. 78.
[8] SINGER, Peter. Libertação animal: o clássico definitivo sobre o movimento pelos direitos dos animais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010 [1975]. p. 274.
[9] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais cit., p. 33.
[10] GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal cit., p. 22.
[11] SINGER, Peter. Libertação animal: o clássico definitivo sobre o movimento pelos direitos dos animais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010 [1975]. p. 283.
[12] NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 402-403.
[13] GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal cit., p. 22.
[14] FELIPE, Sônia T. Acertos abolicionistas: a vez dos animais. São José: Ecoânima. 2014. p. 213.
[15] SANTA SÉ. Carta Encíclica Laudato Si, do Santo Padre Francisco, sobre o cuidado da casa comum. 2015, 53. Disponível em: . Acesso em: 18.jan.2017.
[16] Atribui-se à Leonardo Boff a noção de ecologia integral, utilizada para se referir à interação de três eixos ecológicos assim considerados: o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana (BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização, espiritualidade. Rio de Janeiro: Record, 2008 [1993], p. 43-50). Vê-se que tal concepção foi incorporada à Carta Encíclica Laudato Si (SANTA SÉ. Carta Encíclica Laudato Si cit., p. 107-111).

Fernando Speck de Souza é juiz de Direito em Santa Catarina, mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

Rafael Speck de Souza é analista jurídico da Justiça Federal de Santa Catarina, mestre em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro do Observatório de Justiça Ecológica/UFSC.

Revista Consultor Jurídico

https://www.conjur.com.br/2018-mai-21/tutela-juridica-animais-direito-civil-contemporaneo-parte






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