1. Introdução
No
dia 12 de dezembro de 2017, a Câmara Baixa do Parlamento espanhol aprovou, por
unanimidade, mudanças no Código Civil, na Lei Hipotecária e no Código de
Processo Civil espanhóis com o objetivo de alterar o status jurídico dos
animais, de coisas para seres vivos. Agora, a reforma inicia seu caminho dentro
do Parlamento, podendo, ainda, sofrer emendas. A Espanha, com esse
aperfeiçoamento legal, juntar-se-á ao seleto grupo de países — Alemanha,
Áustria, Suíça, França e Portugal — que já modificou o estatuto legal dos animais[1].
Quase
duas semanas depois (em 25 de dezembro de 2017), esta coluna recebeu o texto
intitulado Os animais e a liberdade de expressão, de Marcílio Franca e Inês
Virgínia Soares, os quais trouxeram interessantes capítulos da história do
diálogo que as artes e a Justiça mantêm com os animais[2].
Os
dois destaques acima demonstram a importância do estudo do estatuto jurídico
dos animais e as consequências de sua inexistência no Brasil.
Neste
artigo, pretendemos fazer uma análise panorâmica do itinerário
histórico-filosófico do conceito de dignidade, para adentrarmos na redefinição
do estatuto jurídico dos animais. Apresentaremos a evolução legislativa do
status jurídico animal no Direito estrangeiro, bem como as propostas
legislativas em curso no Brasil.
2. Evolução histórica da
concepção de dignidade: é possível falar em dignidade animal?
A
expressão dignidade, do latim dignìtas, significa, dentre outras, “a qualidade
moral que infunde respeito”[3]. Por ser uma expressão culturalmente atrelada à
base do que se conhece por direitos humanos[4], a sua vinculação aos animais
não humanos representa um desafio.
Destacados
pensadores ocidentais, em diferentes períodos, formularam e defenderam atitudes
especistas que acabaram sendo herdadas por nós. Fundamental, pois, trazermos as
origens histórico-filosóficas que sedimentaram a concepção unidirecional da
dignidade centrada no humano. Dessa exposição, será possível vislumbrar uma
abertura de perspectiva para a consideração moral interespécies.
2.1.
Pensamento antigo
No
pensamento filosófico e político da Antiguidade clássica grega, a dignidade era
tida como qualidade moral intrínseca ao ser humano, sendo elemento que o
distinguia das demais espécies animais. Nesse período, a dignidade
relacionava-se, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu
grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade humana[5].
Aristóteles,
no século IV a.e.c., foi responsável por criar o sistema ético que prevalece
até nossos dias, intitulado de Grande Cadeia do Ser ou Scala Naturae, que
concebe o universo como um ente imutável e organizado que forma um sistema
hierarquizado, onde cada ser ocupa um lugar apropriado, necessário e
permanente[6]. O pensamento aristotélico vê no ser humano a existência de um
espírito que falta aos demais animais; e considera que os animais, assim como
os escravos, servem de meio para que se atinjam os propósitos humanos[7].
Os
estoicos refutam a teoria aristotélica do escravo natural em favor de uma
igualdade espiritual de todos os seres humanos, mas compartilham a ideia de que
os animais, destituídos de qualquer valor intrínseco, são simples instrumentos
em benefício dos homens.
Sabe-se
que o pensamento grego não é uniforme, dividindo-se em escolas rivais, cada
qual incorporando as ideias de seu fundador. Sendo assim, se Aristóteles (384
a.e.c–322 a.e.c) representa uma escola majoritariamente aceita, enquadrando-se
como defensor do antropocentrismo, por outro lado, vê-se na escola de Pitágoras
(580 a.e.c–496 a.e.c) a defesa de uma ética não antropocêntrica.
Além
de Pitágoras, figuraram como representantes da perspectiva não antropocêntrica
os filósofos Sêneca (4 a.e.c–65), Plutarco (45–120), Porfírio (234–305) e
Plotino (205–270). Em que pese tais vozes dissonantes, a escola que se
consolidou na história ocidental foi a de Platão e de seu discípulo,
Aristóteles[8].
2.2. Pensamento medieval
Na
primeira fase do Cristianismo, quando este havia assumido a condição de
religião oficial do Império, destacou-se o pensamento do Papa Leão Magno
(400–461), sustentando que os seres humanos possuíam dignidade pelo fato de que
Deus os criou à sua imagem e semelhança. Logo depois, no período inicial da
Idade Média, o filósofo e teólogo romano Anicio Manlio Severino Boécio
(480–524) – cujo pensamento foi posteriormente retomado por Tomás de Aquino –
formulou, para a época, um novo conceito de pessoa que acabou por influenciar a
noção contemporânea de dignidade ao definir a pessoa como substância individual
de natureza racional[9].
Dois
expoentes do pensamento cristão sedimentaram a perspectiva antropocêntrica de
se pensar a dignidade da vida: os teólogos Agostinho de Hipona (354– 430) e
Tomás de Aquino (1221–1243).
Agostinho
de Hipona (ou Santo Agostinho, como ficou conhecido) refutou veementemente a
ideia de se considerar pecado matar os animais, sob o fundamento de que a
providência divina havia autorizado o uso dessas criaturas de acordo com a
ordem natural das coisas, uma vez que, sendo destituídos de alma racional, os
animais estariam impossibilitados de participar de qualquer tipo de acordo
político[10].
Para
Tomás de Aquino, por sua vez, a crueldade com animais irracionais não era, em
si, algo censurável. Em seu esquema moral, não havia espaço para coisas erradas
desse tipo; ele dividia os pecados humanos entre aqueles cometidos contra Deus,
contra si próprio e contra seus semelhantes[11].
A
visão de mundo centrada no mito bíblico da criação contribuiu para o
entendimento de superioridade humana e subjugação dos animais. Diversas
passagens bíblicas demonstram esta superioridade e domínio. Exemplo dessa
afirmação consta no início da Bíblia (Gênesis, 1:26-27), em que se observa
claramente a ideia de que o homem é um ser especial, estando os demais seres
vivos sob seu domínio.
Martha
Nussbaum ressalta que todos os filósofos que escrevem a partir da tradição
ocidental moderna, quaisquer que sejam suas crenças religiosas, foram
influenciados profundamente pela tradição judaico-cristã, que ensina que aos
seres humanos foi dado o domínio sobre os animais e as plantas. Ainda que
escritores judeus e cristãos tenham estudado os gregos e os romanos e
incorporado muito de suas ideias, não surpreende que a escola antiga de
pensamento ético, que teve a maior influência em seu pensamento com relação à
questão dos animais, tenha sido o estoicismo, que, de todas as perspectivas
greco-romanas, foi a menos simpática à ideia de que os animais poderiam ter um
estatuto ético[12].
À
exceção de pensadores como Francisco de Assis, a Igreja sempre olhou para os
animais com indiferença, na crença de que, sendo destituídos de livre-arbítrio,
eles acabam por se identificar com o mundo pecaminoso[13].
A
vida de Giovanni di Pietro di Bernardone (1182–1226), de pseudônimo São
Francisco de Assis, foi repleta de exemplos nos quais demonstrou compaixão para
com os animais. Não obstante, a perspectiva biocêntrica de Francisco de Assis
não alcançou o status de pensamento oficial da Igreja, posto ocupado pelas
ideias de Tomás de Aquino.
O
discurso oficial da Igreja Católica Apostólica Romana, mesmo após a Reforma
Protestante, segue Tomás de Aquino e não Francisco de Assis, ao definir a ética
católica e o status que esta reserva aos animais. Maus-tratos contra animais
não encontram lugar na lista de pecados estabelecida por Aquino, e assim o é
até nossos dias[14].
Em
18 de junho de 2015, o sacerdote Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco,
publicou carta encíclica denominada Laudato si, em que afirma ser necessária
nova hermenêutica ao texto bíblico que convida a dominar a terra. Segundo
explica:
Se
é verdade que nós, cristãos, algumas vezes interpretamos de forma incorreta as
Escrituras, hoje devemos decididamente rejeitar que, do fato de ser criados à
imagem de Deus e do mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto
sobre as outras criaturas. [...]. Assim nos damos conta de que a Bíblia não dá
lugar a um antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras
criaturas[15].
A
encíclica Laudato si representou um avanço à visão tradicional católica por
problematizar a crise socioecológica e criticar o modelo de desenvolvimento
vigente; ainda, deu ênfase à ecologia integral — influência colhida do
pensamento de Leonardo Boff[16]. Contudo, a situação dos animais não humanos
ainda permanece em aberto. No referido texto, não se vislumbra nenhuma crítica
aos sistemas de produção e consumo de produtos de origem animal — uma das
principais causas da destruição dos habitats, da degradação do Planeta e da
exploração abusiva dos animais.
***
Na
próxima semana, concluiremos a parte histórica do estudo com o pensamento
moderno. Enfocaremos o contexto antropocêntrico renascentista pós-Idade Média;
a influência das ideias de René Descartes para a concepção objetificadora e
mecanicista que foi conferida aos animais não humanos; o pensamento de Immanuel
Kanta atribuir valor intrínseco apenas aos seres racionais; e a posterior
virada kantiana, quando diversos autores passam a defender a dignidade para
além da fronteira do humano, por entenderem que o critério relevante para a
moralidade não está na razão, mas na capacidade de sofrer do indivíduo.
*Esta
coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito
Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona,
UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).
**A
convite da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, coordenada pelos
professores Otavio Luiz Rodrigues Junior, Ignacio Maria Poveda Velasco, José
Antonio Peres Gediel, Rafael Peteffi da Silva e Rodrigo Xavier Leonardo, a quem
agradecemos empenhadamente, aceitamos o desafio de escrever este estudo, que
será dividido em três colunas. Nesta primeira parte, trataremos da evolução
histórica da dignidade animal nas idades Antiga e Medieval.
[1]
PARLAMENTO DA ESPANHA apoia por unanimidade considerar os animais como seres
vivos e não objetos. El País Internacional, Madri, 13 dez. 2017. Direitos dos
Animais. Disponível em:
. Acesso em: 7.jan.2018.
[2]
FRANCA, Marcílio; SOARES, Inês Virgínia. Os animais e a liberdade de expressão
na Arte. Revista Eletrônica ConJur. São Paulo, 25 dez. 2017. Coluna
"Direito Civil Atual". Disponível em:
.
Acesso em: dez.2017.
[3]
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, 1986. p. 685.
[4]
Se, para os animais não humanos, o princípio da dignidade não tem encontrado
ressonância, para os seres humanos, tal princípio tem sido transformado na
“panaceia de todos os males”, conforme bem ilustra o Recurso Extraordinário n.
363.889, julgado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no dia 2 jun. 2011 e
publicado no DJe 238, de 15 dez. 2011. No voto condutor do acórdão, o relator,
Min. Dias Toffoli, destacou: “[...], se para tudo se há de fazer emprego desse
princípio, em última análise, ele para nada servirá. Não se pode esquecer o
processo de deformação a que foi submetida a cláusula geral da boa-fé na
jurisprudência francesa, a ponto de seu recurso excessivo levar ao descrédito
essa importante figura jurídica. Nesse ponto, estou acompanhado de autores como
João Baptista Vilella e Antonio Junqueira de Azevedo”.
[5]
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 9.
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 32.
[6]
GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal. Salvador: Evolução,
2008. p. 20.
[7]
MIGLIORE, Alfredo Domingues Barbosa. Personalidade jurídica dos grandes
primatas. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. p. 78.
[8]
SINGER, Peter. Libertação animal: o clássico definitivo sobre o movimento pelos
direitos dos animais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010 [1975]. p. 274.
[9]
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais cit.,
p. 33.
[10]
GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal cit., p. 22.
[11]
SINGER, Peter. Libertação animal: o clássico definitivo sobre o movimento pelos
direitos dos animais. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010 [1975]. p. 283.
[12]
NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da justiça: deficiência, nacionalidade,
pertencimento à espécie. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 402-403.
[13]
GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal cit., p. 22.
[14]
FELIPE, Sônia T. Acertos abolicionistas: a vez dos animais. São José: Ecoânima.
2014. p. 213.
[15]
SANTA SÉ. Carta Encíclica Laudato Si, do Santo Padre Francisco, sobre o cuidado
da casa comum. 2015, 53. Disponível em: .
Acesso em: 18.jan.2017.
[16]
Atribui-se à Leonardo Boff a noção de ecologia integral, utilizada para se
referir à interação de três eixos ecológicos assim considerados: o do meio
ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana (BOFF, Leonardo.
Ecologia, mundialização, espiritualidade. Rio de Janeiro: Record, 2008 [1993],
p. 43-50). Vê-se que tal concepção foi incorporada à Carta Encíclica Laudato Si
(SANTA SÉ. Carta Encíclica Laudato Si cit., p. 107-111).
Fernando Speck de Souza é
juiz de Direito em Santa Catarina, mestrando em Direito Civil pela Faculdade de
Direito da USP e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.
Rafael Speck de Souza é
analista jurídico da Justiça Federal de Santa Catarina, mestre em Direito,
Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro
do Observatório de Justiça Ecológica/UFSC.
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-mai-21/tutela-juridica-animais-direito-civil-contemporaneo-parte
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