Era
dia de revista no Presídio Central, em Porto Alegre, e o detento X, líder de
facção, ordenou que seus subordinados dessem um jeito de esconder seu
smartphone. A única maneira encontrada foi um deles usar o próprio corpo — é
isso mesmo que você está pensando. Inviável, o esconderijo não durou muito, e o
dono do celular acabou na solitária: 60 dias em um buraco escuro, sujo de fezes
nas paredes e infestado por todo tipo de praga.
Depois
de alguns dias, pediu para falar com a juíza responsável pelo Central, Sonáli
da Cruz Zluhan. Implorou para sair dali. Observando as guias que ele levava no
pescoço, teve uma ideia: comprou um romance espírita de Zíbia Gasparetto e deu
ao preso. “Se tu leres o livro, fizeres uma resenha e me contares a história de
cada um dos personagens, eu te tiro em 30 dias.” Ele leu, ela cumpriu o trato,
e nunca mais Sonáli ouviu falar de X ou de problemas na galeria que ele
comanda.
É
dessa forma que a porto-alegrense de 58 anos lida com a rotina de fiscalizar o
Central, um dos piores presídios do País, onde se amontoam 5 mil presos em um
espaço planejado para 1.900. Sonáli é juíza da 1ª Vara de Execuções Criminais
(VEC) de Porto Alegre. No Rio Grande do Sul, é conhecida pelas críticas à forma
como polícia e Judiciário conduzem prisões e condenações, que na opinião da
juíza, jamais levarão à remissão de criminoso algum. É por isso que, com mais
de 20 anos de magistratura, optou por ficar na vara que fiscaliza a execução
das penas, em vez de encabeçar o tribunal que condena os criminosos.
“Não
tenho mais convicção nenhuma de que prender resolva alguma coisa. O discurso da
segurança pública é que prender é a solução. Mas cada vez se prende mais e nos
sentimos menos seguros”.
Esse
posicionamento vai muito além da certeza de que as cadeias brasileiras não
recuperam ninguém. Para Sonáli, toda a lógica de condenações e de
aprisionamento está errada. “A prisão deveria ser para casos realmente graves,
não para um usuário de crack que trabalha como aviãozinho na boca, entrega
droga só para sustentar o próprio vício e vai preso como traficante com duas
pedras no bolso. Em 5 minutos, o dono da boca repõe esse cara“, explica.
Só
que, na cadeia, o menino que não era ninguém na boca vai ter de se ligar a uma
facção ou não sobrevive. Vai contrair dívidas que sua família vai ter de pagar,
assumir compromissos com quem está dentro e também fora da prisão. Vira um
soldado e retroalimenta um sistema falido.
Há
anos, decisões de Sonáli provocam polêmica. Já que a cadeia não oferece a
mínima dignidade, sua política é soltar o preso assim que ele conquista a
progressão de regime para o semiaberto, incondicionalmente. É constantemente
atacada por “proteger bandido“. “Fui execrada uma vez, quando soltei um cara
preso por posse de drogas. Em seguida, ele se envolveu em um latrocínio. Não
tenho bola de cristal, nada indicava que ele faria isso, mas ainda prefiro
correr esse risco a prender mal.”
“No
papel, eles têm direito a cela privativa de 6 metros quadrados, acesso a
notícias, a estudo, trabalho. Nada disso eu posso oferecer; então, quando está
na hora de ir para o semiaberto, eu mando. É isso que eu consigo fazer”.
No
Central, o esgoto escorre a céu aberto pelo pátio, galerias inteiras não têm
celas, e é consenso que, da porta para dentro, quem manda (e tem dinheiro) são
os presos. Em prol de um mínimo de ordem, é necessário negociar com eles quem
entra ou sai das galerias, de acordo com as facções a que estão ligados, e
também intermediar os pedidos dos detentos. Um dia, se ofereceram para comprar
um equipamento de lava-jato para lavar os excrementos do pátio antes dos dias
de visita — e a solicitação foi concedida, desde que a lavadora ficasse
guardada na administração do presídio. Já no final do ano passado, uma facção
pediu autorização para contratar uma empresa para dedetizar a galeria, pois as
baratas chegavam a entrar nos ouvidos deles à noite. A limpeza foi feita e paga
pelos presos. Material de construção para reformar as celas também são eles que
compram, conta Sonáli.
Ela
dá expediente pelo menos uma vez por semana no Central para atender
pessoalmente os apenados. As demandas são variadas: progressão de regime,
atendimento médico, requisição de aposentadoria, liberação de uma visita
especial — além dos pedidos que chegam por bilhetes ao seu gabinete, pelas mãos
de algum familiar.
O
“manejo” dos detentos em uma instituição tão precária é delicado. A linha que
separa a organização da balbúrdia, ou a paz da guerra lá dentro, é tênue. Por
isso, deslocar presos e liberar a entrada de alguém — mesmo que seja a juíza
responsável pela manutenção daquele local — às vezes é uma negociação tensa. Se
a Brigada Militar (que administra o presídio) decide que ela precisa de
escolta, a juíza se sente vigiada, e não gosta disso. “Mas o discurso muda
radicalmente quando estou acompanhada de um colega homem“, afirma.
“Nunca
tive problema nenhum com os presos. Já entrei e saí de galeria sozinha e não
ouvi nenhuma gracinha. Mas nunca fui tão discriminada por ser mulher quanto
pela administração do Central.”
Sonáli
pensa que cada cidade deveria ter a sua cadeia, com capacidade para algumas
centenas de pessoas, em substituição a grandes presídios com milhares de
detentos. “Cada um deveria cuidar dos seus. Cada cidade não tem as suas
igrejas, as suas escolas? Quando se está perto, se tem um controle maior.”
Sonáli também defende que deveriam ser legalizadas todas as drogas, o que
reduziria as prisões por tráfico. “Penalização das drogas, para mim, não
funciona. Tem de descriminalizar todas as drogas, não só a maconha“, defende.
Com
passagem por varas da infância, a juíza tem claro o roteiro que transforma
crianças da periferia em bandidos. E recita: “tia, pra que eu vou trabalhar de
empacotador, se eu posso ir pra boca de fumo ganhar 100 reais por dia pra ser
aviãozinho?“.
Sonáli
acredita que uma mudança profunda na educação é a única saída. “Formar crianças
e jovens cidadãos de verdade, que tenham empatia, entendam a importância de
fazer o bem, e não apenas mão de obra para o mercado de trabalho.”
“Se
eu tive problema com filho adolescente, imagina como é na vila? Não temos o que
propor como alternativa ao crime para os jovens da periferia”.
Apesar
da desilusão com o sistema carcerário, e de já ter tempo de serviço para se
aposentar, a moça com nome de princesa indiana (significa “menina de ouro“) não
pensa em largar o Foro.
“Eu
gosto do que eu faço, só sei ser juíza. E acredito de verdade que os bons são
maioria“, conclui.
https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/05/juiza-gaucha-que-nao-acredita-em-cadeia-execrada.html
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