Em
suas palestras pelo mundo, o sociólogo Michael Kimmel costuma contar uma
história interessante. Ainda na faculdade, quando participava de um grupo
formado basicamente por mulheres para discutir o feminismo, assistiu a um
diálogo entre duas colegas que bagunçou sua visão de mundo. A colega negra
perguntou à branca: quando você se olha no espelho, o que vê? A resposta: eu vejo uma mulher. A mulher
negra, então, disse: pois quando me olho no espelho todos os dias, vejo uma
mulher negra. Não havia um dia sequer em sua vida, que ela não se lembrasse de
que era uma mulher negra.
O
diálogo o fez pensar a respeito do que ele próprio enxergava no espelho
diariamente. E a resposta foi assustadoramente simples: ele enxergava um ser
humano. Nem branco, nem classe média, nem homem, seus três atributos mais
perceptíveis. E tão genéricos e confortáveis, que jamais haviam sequer sido
percebidos.
“Eu
tinha esse privilégio – o de ser homem branco, e classe média – que havia se
mantido invisível para mim durante todo o tempo. Porque o privilégio é
invisível para quem o tem”, constatou Kimmel, este homem comum sem gênero, sem
raça, sem classe social, que a partir daquele momento abriu os olhos para a
questão da (des)igualdade de gêneros e acabou escolhendo dedicar os 30 anos
seguintes ao estudo aprofundado da… masculinidade. E é sobre ela que tive
vontade de escrever, nesta semana em que se comemora o Dia Internacional da
Mulher.
Porque,
essencialmente, a igualdade de gêneros é uma questão que depende do (genuíno)
engajamento masculino. Kimmel foi anunciado, na semana passada, como
palestrante do Cannes Lions e participará de um bate-papo sobre o futuro da masculinidade, sobre o futuro das
relações entre homens e mulheres.
Autor
do livro “Angry White Men” e diretor do Centro de Estudos do Homem e da
Masculinidade da Stony Brook University, Kimmell vem esmiuçando o comportamento
de homens brancos de classe média, semelhantes a ele, que (ainda) carregam um
sentimento de “merecimento”, de terem direito construído arquetipicamente. A
história do mundo, afinal de contas, beneficiou estes homens brancos europeus e
americanos. Kimmell costuma dizer que homens que carregam este sentimento – o
de que são seres humanos com mais direitos adquiridos – não alcançam e não
compreendem verdadeiramente o sentido da igualdade de gêneros. E este é um
fenômeno ainda potente, amplificado pelo alcance das redes sociais, e que se
contrapõem às forças transformadoras que vivemos, de luta pela igualdade.
Muitos
dos homens que se sentem “merecedores” culpam mulheres e o feminismo por suas
perdas de protagonismo. Ou pessoas LGBT. Eles se sentem fracassados como
“provedores do lar”. Podem se tornar violentos, podem se envolver em atividades
políticas extremistas, tema do próximo livro de Kimmell. Muitos deles que se
sentem injustiçados em suas posições de hegemonia no mundo ajudaram a eleger
Donald Trump – motivo pelo qual “Angry White Men” foi relançado em abril do ano
passado, embora nenhuma página do livro original (lançado em 2015) mencionasse
Trump.
Kimmell
é especialista no sentimento que une estes homens, que agem no mundo sob o
manto do desejo de recuperar algo que lhes foi roubado. Nada como ser homem
branco, de classe média, e ainda por cima americano, para compreender esta
sensação. Há sofrimento nisso, um tipo de humilhação que precisa, sim, ser
olhada com cuidado porque leva à angústia e a diversos tipos de violência.
Há
homens que se sentem injustiçados porque perderam o status de únicos provedores
do lar, porque cresceram sob a égide de estereótipos ainda visíveis na era Don
Draper, quando homens eram os incontestes (e também ausentes) senhores de seus
lares. Há (muitas) mulheres que ainda apostam na sua própria vulnerabillidade e
inferioridade diante destes machos cuja função no mundo é protegê-las.
Há
dados inquietantes de que homens são quatro vezes mais propensos a cometer o
suicído do que mulheres, e que houve um aumento de suicídios entre homens nas
últimas décadas. E em uma proporção espantosa dos casos, são homens que não
deram conta de prover e sustentar suas famílias.
Por
isso, dedico este Dia Internacional da Mulher aos homens. Porque a igualdade é
uma construção coletiva, e depende também deles e da sua capacidade de combater
tudo o que lhes foi ensinado, ao longo de gerações. Demanda retirar as máscaras
de sobrevivência machistas que lhes foram dadas, de ter a coragem de não serem
– e principalmente não desejarem ser – os “machos alfa”. Não é nada fácil,
porque há muita solidão no mundo masculino, o que dificulta ainda mais sair da
linha de frente e reinventar a si mesmos, recomeçar por completo, realizar uma
ruptura com valores consolidados tijolinho a tijolinho. Em muitos casos chega a
ser uma demolição, uma quase morte.
O
ponto de vista masculino é essencial no debate sobre igualdade de gêneros, e
olhar com empatia para a imensa carga arquetípica que os homens carregaram
desde pequeninos e da qual precisam se livrar, é um passo importante nesta
jornada.
E
ainda levará um tempo para que todos enxerguem, em todas as suas dimensões, uma
verdade gritante, algo que Kimmell
costuma repetir como um mantra: a igualdade liberta.
Por
Claudia Penteado Do PropMark
https://www.geledes.org.br/sobre-masculinidade-invisibilidade-e-liberdade/
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