O
que aconteceu com o Judiciário brasileiro? Como se tornou, em pouco tempo, tão
poderoso e vulnerável operador da ditadura de classes? Terá isso raízes na
História?
O
ofício de advogado origina-se, no Brasil, da necessidade de fazendeiros
habilitarem-se legalmente, junto à coroa portuguesa, para a posse de terras e
de escravos; enviavam, em regra, os primogênitos a Coimbra para estudos com
esse objetivo. Isso acontece a partir de meados do Século XVII, quando começou
efetivamente a colonização do Brasil e a ocupação do vasto interior brasileiro.
As
primeiras faculdades de Direito fundaram-se, aqui, em Olinda e São Paulo, em
1827, já com o país independente. Eram 165 em meados da década de 1990. 505 em
2001 e 1.204 em 2014. Hoje há um advogado para 210 brasileiros, bem mais que o
dobro desse número em sujeitos formados em Direito, e, no entanto, a injustiça
predomina.
A
motivação patrimonial dos primeiros advogados mesclou-se, ao longo do Século
XIX e na primeira metade do Século XX, com a penetração das ideias libertárias
da Europa nas campanhas abolicionista e civilista (esta na República Velha); a
superação da Era Vitoriana, o caso Dreyfuss. A atribuição aos advogados de
privilégios e a aura que cercou a profissão tornaram-na atraente para
despossuídos e preteridos na sociedade desigual. O ofício se popularizou , a
estrutura judiciária manteve-se, no entanto, aderida a teses reacionárias e ao
mais bizarro moralismo.
Na
década de 1950, quando era repórter, assitia à imposição a presidiários
trazidos em chinelos para interrogatório no Foro do Rio de Janeiro, de paletós
ensebados e gravatas sem cor de tão sujas por sobre o macacão e em torno dos
pescoços suados. Os doutores juízes – faziam questão do tratamento indevido –
descuravam, talvez, dos processos, mas não de medir o cumprimento das saias das
advogadas e proibi-las de usar calças, curtas ou compridas…
A
situação do ofício jurídico agravou-se desde então e pude vê-la deteriorar-se
na Universidade. Os cursos, antes, formavam economistas, sociólogos,
historiadores; eram espaços de trocas culturais importantes. Com a formação
específica para essas habilitações, os currículos de Direito despojaram-se de
conhecimentos sobre a realidade do mundo e assumiram o caráter técnico de
debate sobre leis, códigos e processos, não como projeção consolidada da
tradição ideológica, mas como se fossem regras impositivas da natureza.
É
nesse clima de alienação que se infiltrou o dictat jurídico norte-americano,
que, a partir da Common Law da Inglaterra imperial, cuida de integrar a uma
sociedade formalmente democrática normas de controle social similares e
paralelas às da Alemanha de Gürtner, Freisler e Goebbels: o policialismo do
FBI, o macartismo, a tutela dos direitos individuais.A seus instrumentos – a
prisão preventiva indefinida e arbitrariamente determinada, a indicação prévia
e ideológica do culpado e o uso da mídia como suporte do arbítrio – juntou-se a
jabuticaba, o assai e o pão-de-queijo: a “força tarefa” liderada pelo juiz que,
comandando procuradores e policiais, investiga, denuncia, processa e julga.
Anauê!
Escolhidos
em concursos onde o punitivismo é cláusula pétrea para aprovação, enfiados em
tradição de compadrio e nepotismo explícito ou cruzado, magistrados pouco podem
resistir porque seu horizonte é o de suas carreiras de astros em busca do
aplauso de plateias para quais mocinho e galã é de quem segura o cabo do
chicote.
NILSON LAGE É PROFESSOR
APOSENTADO DA UFRJ E DA UFSC. JORNALISTA, TRABALHOU DESDE OS ANOS 50 NOS
PRINCIPAIS JORNAIS DO RIO DE JANEIRO, ANTES DE DEDICAR-SE APENAS À ATIVIDADE
ACADÊMICA
http://www.tijolaco.com.br/blog/o-direito-do-chicote-por-nilson-lage/
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