A
Intervenção na Venezuela e o Brasil
por
Marcelo Zero*
Aparentemente,
os EUA estão pretendendo acelerar os preparativos para uma intervenção mais
aberta e incisiva na Venezuela.
Após
as declarações de Trump, de que não descartaria uma intervenção militar naquele
país, o Secretário de Estado norte-americano, Rex Tillerson, em discurso na
Universidade do Texas, em 1º de fevereiro, sugeriu que solução para a Venezuela
poderia vir de um golpe.
Tillerson,
em recente passagem pela América Latina, onde visitou México, Peru, Colômbia e
Argentina, concentrou todos os seus esforços em convencer os governos desses
países a apoiarem medidas mais duras contra o regime chavista da Venezuela.
Na
Colômbia, o Almirante Kurt Tidd, chefe do Comando Sul dos EUA, reuniu-se com
militares daquele país para tratar da “desestabilização regional” causada pela
Venezuela.
Tidd
tem argumentado que a crise da Venezuela “requeria ações militares para
enfrentar a situação humanitária”.
O
uso das chamadas “crises humanitárias” para justificar intervenções de todos os
tipos vem de longe.
A
intervenção militar dos EUA contra a Sérvia foi legitimada, por Bill Clinton,
como uma ação necessária para lidar com a crise humanitária no Cosovo.
Na
ONU, essa lógica um tanto estapafúrdia de responder a crises humanitárias com
violência ficou conhecida como a “responsabilidade de proteger” (R2P).
De
lá para cá, muitas intervenções militares e políticas do interesse dos EUA e
aliados foram também justificadas com essa lógica canhestra de enfrentar crises
humanitárias com a “responsabilidade de proteger” as populações atingidas.
As
invasões da Líbia e da Síria foram justificadas, ao menos parcialmente, com
essa lógica aparentemente altruísta e humanista.
De
um modo geral, as “crises humanitárias” são criadas ou agravadas por aqueles
interessados na intervenção e na derrubada de regimes considerados
inconvenientes ou perigosos aos interesses geoestratégicos dos EUA e aliados.
Esse
investimento nas “crises humanitárias” muitas vezes envolve o dispêndio de
grandes quantias de dinheiro e o uso de bloqueios comerciais e financeiros.
Na
Ucrânia, por exemplo, calcula-se que os EUA tenham gasto cerca de US$ 5
bilhões, para promover os protestos violentos e a “revolução laranja”.
No
caso da Venezuela, esse investimento na desestabilização do regime chavista vem
de longe.
Em
2002, os EUA contribuíram decisivamente para promover o golpe de Estado contra
Chávez.
O
fracasso do golpe não impediu, entretanto, que tais esforços continuassem.
Não
há dúvida que os EUA apoiam e financiam a oposição mais radical da Venezuela,
liderada por Rodolfo López, um político educado em escolas privadas
norte-americanas.
Tal
apoio inclui o financiamento às violentas “guarimbas” da oposição, que pretendiam
criar um clima de guerra civil na Venezuela.
Com
a queda dos preços de petróleo, commodity vital para a Venezuela, os EUA
aproveitaram para iniciar uma guerra econômica, comercial e financeira contra o
regime chavista, de modo a criar carestia e inflação.
O
crédito da Venezuela no mercado internacional foi cortado, mesmo com o país
tendo pagado suas dívidas religiosamente, o que dificulta enormemente a
importação de alimentos, da qual o país depende para satisfazer as necessidades
de sua população.
Ao
mesmo tempo, as classes dominantes locais escondem alimentos e remédios, os
vendem a preços exorbitantes ou ainda fazem contrabando para países vizinhos.
Trata-se
de uma tática antiga. Quando Salvador Allende foi eleito no Chile, Nixon
ordenou à CIA que fizesse “a economia chilena gritar”.
Com
o apoio da elite local, houve locautes, desabastecimento forçado, inflação e
carestia.
Na
esteira, ocorreram os protestos das “panelas vazias” da classe média chilena,
que precederam o golpe de Pinochet.
Protestos
depois fielmente copiados por nossa classe média envolvida na pressão pelo
golpe contra Dilma Rousseff.
Coincidência?
Talvez não.
Muito
embora os problemas econômicos e políticos da Venezuela sejam reais e sérios, é
óbvio que essa ação de guerra econômica e de incitamento constante ao conflito
político violento agrava substancialmente a situação interna daquele país.
Contudo,
o advogado e historiador norte-americano, Alfred de Zayas, relator da ONU sobre
Promoção da Ordem Internacional Democrática e Equitativa, concluiu, depois de
uma visita à Venezuela, que o país não sofre uma crise humanitária, “diferente
do que a grande imprensa vem tentando retratar nos últimos dias”.
O
relator ainda afirmou que o problema interno da Venezuela tem de ser resolvido
de forma diversa.
Segundo
ele, a comunidade internacional deve trabalhar a solidariedade com a Venezuela
para levantar as sanções impostas pelos Estados Unidos “porque são elas que
pioram o desabastecimento de alimentos e medicamentos, é insuportável pensar
que tendo uma crise de malária na Amazônia venezuelana, a Colômbia tenha
bloqueado a venda de medicamentos e a Venezuela precise recorrer à Índia para
obtê-los”.
Tal
atitude de solidariedade e entendimento era, aliás, a posição que o Brasil
vinha adotando face àquele conflito.
De
fato, o Brasil, ao longo dos governos do PT, deu apoio à busca de um
entendimento político e pacífico na Venezuela, com o “Grupo de Amigos da
Venezuela”, criado no âmbito da Unasul.
O
problema é que a opinião do relator da ONU conta muito pouco, ou nada, para os
interesses estratégicos dos EUA no subcontinente.
O
outro problema é que o Brasil, o principal país da América Latina, mudou
radicalmente de posição e passou a apoiar fervorosamente as ações em prol da
desestabilização violenta do regime chavista.
Com
efeito, a “diplomacia” do golpe fez do isolamento da Venezuela a sua grande
razão de ser.
O
Brasil foi o principal ator na exclusão da Venezuela do Mercosul, inclusive sob
a invocação do Protocolo de Ushuaia, o que não deixa de ser irônico, partindo
de um governo surgido de um golpe parlamentar.
Saliente-se
que o governo do golpe não poupou esforços para atingir esse objetivo do agrado
dos EUA, chegando mesmo a ameaçar com retaliações comerciais o pequenino
Uruguai, caso esse país não concordasse com a suspensão da Venezuela.
Essa
atitude do Brasil, secundada pela Argentina de Macri, entre outros, de certa
forma concedeu uma espécie de “carta branca” para que os EUA passassem a serem
mais incisivos na desestabilização do regime chavista, inclusive com a
possibilidade ações militares.
Do
ponto de vista logístico, uma intervenção desse tipo, seja para a promoção de
um golpe, seja para uma ação militar aberta, não acarretaria grandes
dificuldades, já que os EUA têm muitas bases militares na Colômbia e no Caribe.
A
questão essencial é obter o aval de países da região para legitimá-la.
Aí
é que entra o tema da “crise humanitária”.
É
necessário apresentar o quadro de um país ingovernável, regido por um ditador
que pune a sua população, para bem justificar uma intervenção desse tipo.
Nesse
sentido, é tocante ver como certos veículos de comunicação brasileiros se
empenham em cobrir o afluxo de venezuelanos em Roraima, sempre sob a ótica de
que eles são vítimas de uma “cruel ditadura”, e não de uma guerra econômica
contra o regime da América Latina que mais realizou eleições neste século e que
acaba de marcar pleito para o dia 22 de abril do corrente.
É
difícil de dizer, a priori, se e como o Brasil poderia participar de uma
aventura irresponsável como essa.
Não
obstante, o governo do golpe já deu mostras de total comprometimento com tal
“nobre causa”.
Por
outro lado, a realização de exercícios militares conjuntos entre Brasil, EUA,
Peru e Colômbia em nosso território, algo aberrante na nossa tradição de defesa
da Amazônia, sinaliza que, com o golpe, vieram à tona setores das forças
armadas empenhados numa mudança da nossa estratégia de defesa, colocando-a sob
a órbita de interesses geopolíticos dos EUA.
Mas
é possível se afirmar, a priori, que uma intervenção desse tipo, ainda que parcial
e velada, acarretaria consequências desastrosas para os interesses brasileiros.
Obviamente,
o conflito interno da Venezuela se agravaria, com danos irreparáveis à nossa
relação bilateral com aquele país e ao processo de integração regional, que
tanto nos beneficia.
Ademais,
há o risco de que o conflito venezuelano acabe se internacionalizando, pois nem
a China nem a Rússia veriam com bons olhos uma intervenção desse tipo.
A
América do Sul poderia acabar ficando numa situação parecida a regiões instáveis
do globo, como a do Oriente Médio, por exemplo.
Enfim,
um desastre completo, como soe acontecer em todas as “intervenções
humanitárias” que os EUA fazem.
Os
países acabam sendo destruídos e as populações que seriam “protegidas” sofrem
muito mais.
Só
se salva o petróleo, que é desviado para o mercado mais voraz do planeta.
Não
se espere, porém, racionalidade do governo dos EUA, ainda mais na gestão de
Donald Trump.
Poder-se-ia
esperar racionalidade do Brasil. Não mais. Mesmo com mesóclise.
O
governo do golpe rompeu com todos os parâmetros e paradigmas e dedica-se, com
notável empenho, na destruição e na venda do Brasil.
De
um governo como este, que não hesita em ser desumano com sua própria população,
atendendo aos interesses do “mercado”, pode-se esperar apoio a “intervenções
humanitárias” contra vizinhos, atendendo aos interesses de seus donos.
Vira-latas podem ser raivosos.
*Marcelo Zero
é sociólogo e especialista em Relações Internacionais
http://www.viomundo.com.br/politica/marcelo-zero-sobre-intervencao-na-venezuela-atendendo-as-ordens-de-tio-sam-vira-latas-podem-ser-raivosos.html
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