Em
18 de agosto de 1977, Steve Biko foi preso numa barreira policial, em Porto
Elisabeth (South África) e interrogado durante 22 horas por oficiais da
Polícia, espancado, torturado e acorrentado. Quase um mês depois, foi levado
com múltiplas lesões e em precário estado físico a uma prisão, para morrer, em
12 de setembro daquele mesmo ano, aos trinta anos de idade. As lesões foram
constatadas e fotografadas. Seu assassinato sob tortura foi provado, mas os
policiais – autores do crime – foram inocentados pelo Sistema de Justiça do “apartheid”.
Graças
a jornalistas honestos como Donald Woods, politicamente democrático e liberal
branco, a brutalidade policial foi desmascarada e o crime cometido pelos
agentes do Estado foi exposto ao mundo. Woods teve que sair do país para
proteger sua própria vida e destacou-se como intelectual, militante e escritor
anti-apartheid. Seu livro, “Biko”, foi transformado num excelente filme de
denúncia do regime sul-africano, com uma poderosa interpretação de Denzel
Washington, no papel de Biko. Ele não morreu em vão, não foi o seu corpo
somente um portador involuntário de uma tragédia odiosa, protagonizada pelo
racismo e pelo fascismo. Foi um lutador brilhante, assassinado, como Mariella,
que não morreu em vão.
Biko
foi líder estudantil e dirigente político sem partido, ativista e escritor. Ele
dizia para os seus companheiros de infortúnio, que sofriam o racismo e o
preconceito erguidos à condição de política de Estado: “você está bem como você
é, comece a olhar para si mesmo como um ser humano.” Em 1994 Nelson Mandela
disse dele: “Eles tiveram que matá-lo para prolongar a vida do “apartheid”!
Após sua morte, muitos de seus escritos foram reunidos num livro denominado “Eu
escrevo o que gosto”, uma ironia contra uma penalidade imposta a Biko pelo
Estado sul-africano, que lhe proibiu – durante um certo período – de falar com
mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Queriam calar a sua voz de amor e liberdade
aos oprimidos, como tentam calar a voz de Marielle.
Quarenta
anos depois, aqui no Brasil, uma liderança política de esquerda com mandato
parlamentar, integrante de uma comunidade avassalada pela pobreza, os maus
serviços públicos, a exclusão e frequentemente submetida à violência ilegítima
da Polícia, é brutalmente assassinada junto com seu motorista. Marielle e
Anderson Pedro Gomes – como cantou tristemente Antonio Machado sobre o
fuzilamento de Garcia Lorca em Granada – morreram pelas mãos de verdugos que
“não ousaram olhar seus rostos”. Os verdugos não olham os olhos dos torturados,
tentam roubar sua alma e laceram seus corpos acorrentados. Ou assassinam à
traição: são os verdugos do mundo, de todas as origens e de todos os Estados.
A
poesia de Antonio Machado canta: “Todos (os verdugos) fecharam os olhos;
“rezaram”: (e disseram) ‘nem Deus te salva’: sangue na sua fronte e chumbo nas
entranhas”. Agora, o povo pobre e negro do Rio, os brancos que amam a
democracia e lutam por Justiça, juntos, cantarão sobre Marielle e Anderson, “a
carne que não tens, os olhos que te faltam (…) (debruçados) sobre uma fonte,
onde chore a água e eternamente diga” – não, que “foi em Granada” como contou
Antonio Machado – mas no Rio de todos os crimes e também de todas as lutas. No
Rio, cenário do conto de Machado de Assis, “Pai contra mãe” e cenário da
passeata dos cem mil, contra a ditadura. Do Rio, que renascerá dos escombros do
medo e da memória dos seus lutadores, que mandará o fascismo para os esgotos da
história e dará um recado para o Brasil.
Uma
grande novela de Lewis Nkosi (1986) – escritor sul-africano exilado na Zambia,
pelo regime racista do seu país – termina com a narrativa de um condenado, nos
cárceres do “apartheid”, acompanhando as vozes dos prisioneiros políticos,
primeiro fracas, hesitantes, depois unidas, que se combinam “num único e
potente som vibrante e estrondoso, sacudindo os próprios alicerces da prisão”,
cantando as canções da liberdade. E o prisioneiro, que vai morrer, pensa: “Sim,
aquelas vozes me acompanham. Eu não poderia exigir melhor despedida desse mundo
do que essas vozes anunciando o iminente amanhecer da liberdade e, então, é
claro, os pássaros turbulentos acasalando-se no céu!” Marielle, fica em paz,
tua voz não será silenciada pelos cultores da morte e assassinos da utopia. Teu
símbolo é dos pássaros turbulentos, acasalando-se no céu e tecendo uma rede,
primeiro frágil e delicada, depois potente e estrondosa. Como foi a tua lúcida
e luminosa presença no mundo. Não te calarão.
* Tarso Genro
foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre,
Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações
Institucionais do Brasil.
https://www.sul21.com.br/colunas/tarso-genro/2018/03/marielle-foi-no-rio-lorca-foi-em-granada/
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