Ministros
do Supremo Tribunal Federal fizeram chegar à Procuradoria-Geral da República,
recentemente, uma advertência: o Judiciário não vai mais tolerar manobras do
Ministério Público Federal destinadas a constranger juízes. Dois exemplos
recentes são o arquivamento do inquérito contra o senador Romero Jucá e a
suspensão do indulto de Natal.
No
caso de Jucá — uma acusação solta sem definição de culpa, indício de autoria ou
materialidade criminosa —, vendeu-se à opinião pública a falsa ideia de que o
tribunal acumpliciou-se com um criminoso para poupá-lo. Na vida real, a
prescrição deu-se por causa de inúmeros pedidos de diligências do Ministério
Público, titular absoluto da ação penal. Não por acaso, o inquérito já estava
há um ano na PGR quando prescreveu. No caso do indulto, a falsa notícia foi a
de que o decreto libertaria os acusados da “lava jato”.
Essas
foram duas das muitas fake news que, neste início de ano, colocaram o STF no pelourinho
da imprensa nacional e das desinformadas redes da internet. O ministro Gilmar
Mendes, alvo principal das agressões, enxerga por trás do fenômeno “uma onda de
irresponsabilidade e falso moralismo que é, acima de tudo, desonesta”. A
difusão das mentiras, afirma o ministro, “leva a população a acreditar que o
Judiciário protege ricos e poderosos, enquanto os acusadores é que defendem o
interesse público — o que compromete a imagem da Justiça”.
Desde
que anunciou a disposição de rever seu voto em relação à antecipação da
execução da pena em condenações confirmadas pela segunda instância, Gilmar
Mendes passou a ser atacado diariamente por jornalistas e por membros do
Ministério Público que integram a força-tarefa da “lava jato”.
O
fuzilamento retórico só se intensifica. Semana passada, um procurador da
República chamado Carlos Fernando de Lima se permitiu esculachar em público o
ministro do STF Ricardo Lewandowski. Em resposta a um artigo em que o ministro
defendeu uma cláusula pétrea da Constituição — onde se determina que “ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença criminal
condenatória” —, o procurador afirmou que isso não passa de bobagem de
pseudojuristas que defendem a impunidade de poderosos.
Esse
tipo de agressão, em geral, emerge da onda de falso moralismo que, ao longo da
história e em todo o mundo, varre países em crise de identidade. Mas a elas se
somam críticas mais profundas, anteriores à era lavajatista. Em busca de mais
referências, este site perguntou a um grupo de juízes e advogados o que mudou
para que o STF, até há pouco tão respeitado, passa-se a ser tão atacado. Nem
todos os entrevistados se dispuseram a ser identificados. Veja as respostas:
Sérgio Rosenthal,
advogado
O
país vive um acirramento de opiniões. Vive-se uma pretensa (e falsa) luta do
bem contra o mal. Ministros que não jogam para a torcida, que preferem seguir a
Constituição ao clamor público, são atacados. As críticas ao ministro Gilmar
Mendes têm duas origens. A primeira, pelo fato de ele cumprir a Constituição no
que toca às garantias e direitos fundamentais. A segunda é a dificuldade de se
comunicar — seja pela indisposição da mídia, seja pela sua falta de paciência e
sarcasmo, o que irrita os justiceiros. Alguns veículos de comunicação trabalham
para o embate. Investem nisso. Quem não se dobra ao movimento populista é
tachado como defensor da corrupção. Mas estou certo de que esse é um movimento
pendular. Logo os oportunistas e “paladinos da justiça” serão identificados
como os aproveitadores que são. Até porque, essa noção de que o Brasil progride
no combate ao crime e à corrupção não é verdadeira. Fosse real, a Polícia
Federal já teria contido a criminalidade no Rio de Janeiro, onde, em certos
bairros, sequer se pode sair à rua. Esse rufar de tambores nem sempre é
qualificado. Hoje, qualquer pessoa, de qualquer profissão, critica decisões
judiciais com toda a convicção do mundo. Esse tipo de desrespeito deriva
sobretudo da ignorância. O exemplo desse Carlos Fernando é apenas mais um de servidor
público que aparece por acidente mas logo voltará à obscuridade que o merece. O
avanço é lento, mas é inexorável. O país precisa muito de um pouco mais de
civilidade. O STF, assim como a classe dos advogados, padece de grande
dificuldade na comunicação. O ruim disso é que as pessoas passam a acreditar em
coisas que não existem. Para piorar, o Supremo muda toda hora de entendimento —
o que cria instabilidade e insegurança jurídica.
Ministro do STJ
Não
há um motivo só, claro, e a resposta não é simples. Há fatores que são
conjunturais, contextualizados, subjetivos. Primeiro, há uma falta de liderança
no Judiciário. Também vivemos um momento em que a Presidência do país está
fragilizada. Normalmente o Executivo é forte, mas não é o caso agora. E com o Legislativo
submisso, pressionado, encurralado, houve um agigantamento do Judiciário, sem
que o STF estivesse preparado para isso. Há falta de sentimento de
colegialidade e não há um líder que una a instituição, com o paradoxo de um
crescente ativismo anárquico. A composição também é um problema, ela não
obedeceu nenhum critério, não há identidade nenhuma entre os seus integrantes,
então são 11 ilhas sem relação uma com a outra. Alguns problemas são de ordem
objetiva, especialmente a dualidade corte constitucional/corte recursal. Não
existe parâmetro no mundo para uma corte suprema funcionar ora como corte
constitucional, ora como tribunal de recurso, ora como juízo de primeiro grau.
Com isso, houve progressiva transformação do Supremo em corte penal.
Ministro do STJ
O
Legislativo e o Executivo querem sair do foco e estão de cócoras. Nesse
cenário, o STF ficou indeciso e se autoflagela por dramas que não são
exatamente seus. Uma parcela dos juízes insiste em defender privilégios sem
perceber o momento em que estamos. Outra quer ser notícia chamando atenção para
si. As decisões atraem a ira da direita e da esquerda. Então, o ataque não é só
ao STF, mas ao Judiciário como um todo.
Ministro do STJ
Acho
que a transmissão direta dos julgamentos, expondo a vaidade dos ministros,
fascinados pela popularidade e pela “opinião pública”, o que foi percebido e
bem explorado pela grande mídia, deram aos críticos, notadamente ao povo, a
sensação de intimidade que gera as críticas, inclusive as desrespeitosas,
daqueles que não conhecem o papel de uma corte suprema.
Cláudio Lamachia,
presidente do Conselho Federal da OAB
Que
momento estamos vivendo! O Brasil está muito doente. Esse clima de intolerância
não pode continuar.
Pierpaolo Bottini,
advogado
A
crítica ao STF não é o problema. A partir do momento que a suprema corte passa
a ser protagonista de decisões políticas, de impacto nacional, estará sujeita a
críticas jurídicas e políticas. O problema é quando a crítica tem por
estratégia inibir certas decisões, com a propagação de informações equivocadas
ou com a desqualificação do magistrado, sem uma análise real do conteúdo de
suas decisões ou ideias. Essa crítica desvirtua o debate.
Luís Inácio Adams,
advogado e ex-advogado-geral da União
Acredito
que o STF tem sido chamado a tomar decisões que seriam do Congresso e do
Executivo. Ao fazê-lo, são expostos a um debate político para o qual a
instituição não está preparada. Além disso, os próprios membros do Judiciário
assumem um protagonismo que expõe ainda mais a classe dos juízes. Nesse debate,
práticas questionáveis, como o auxílio-moradia, acabam por serem expostos ao
debate público. Por fim, ao assumir um protagonismo ético no combate à
corrupção, como é o caso do juiz Moro, acaba por ser objeto das críticas decorrentes
de práticas que são contraditórias a esse protagonismo.
Igor Tamasauskas,
advogado
O
Estado Democrático de Direito passa por uma crise que não é somente no nível
nacional. As instituições estão buscando lidar com essa brutal crise de
representação. Dentro desse contexto, é natural que ocorram incompreensões,
erros e acertos. Todavia, por ser um processo histórico, somente conseguiremos
entender com exatidão esse quadro daqui uns muitos anos.
Marco Aurélio
Carvalho, advogado
Como
o tribunal assumiu um caráter notadamente político, nas ausências do
Legislativo e com as brechas que a Justiça tem, o STF acaba entrando em campo
para atuar nesses vácuos e legislar mesmo. O problema é que a pretexto disso
ele assumiu um papel moralista e acabou virando caixa de ressonância da
sociedade. Há um emparedamento do tribunal. Mas não sem motivos: falam fora dos
autos, como querem, a hora que querem, do jeito que querem. Voltam atrás com
uma facilidade enorme, segundo a conveniência e a circunstância. Tempos tristes.
Antônio Sérgio
Altieri de Moraes Pitombo, advogado
A
critica ao STF nasce de uma parcela do Judiciário e do Ministério Público, a
qual almeja julgar conforme a ideologia punitivista que professa. Assim,
revoltam-se quando o STF impõe o padrão da legalidade e reconhece direitos
individuais. Pena usarem a imprensa para tal fim e fugirem do debate público
com quem tem altura intelectual para lhes mostrar as iniquidades que dizem.
Walfrido Warde,
advogado
O
jusfilósofo norte-americano Duncan Kennedy explicou como ninguém que a Suprema
Corte americana é, por excelência, o órgão da democracia daquele país que
resolve problemas políticos por meio do Direito. Mais do que isso, que a corte,
em uma sociedade heterogênea, resolve impasses políticos usando a técnica jurídica
como pretexto. Cita o exemplo das soluções que proveu historicamente nos casos
de segregação racial e da liberação do aborto. É precisamente esse o motivo
pelo qual o nosso STF vem sofrendo nos últimos meses e ultimamente uma brutal
pressão. É o lugar onde se disfarça política sob as vestes do melhor Direito. O
STF irá se desincumbir dessa função se for capaz de convencer que aplica a
melhor técnica jurídica.
Rodrigo Dall'Acqua,
advogado
O
Brasil está passando por uma crise em que a classe política encontra-se
vulnerável como nunca antes na história. A sociedade quer vingança, mas o STF
tem a função de impor os limites constitucionais desse combate. Os ataques aos
ministros são previsíveis, a plateia sempre vaia o juiz que interrompe a luta
para fazer cumprir a regra.
Sérgio Renault,
advogado
A
impressão que se tem é que o Judiciário não está conseguindo cumprir o papel de
protagonista das grandes questões nacionais que este momento histórico lhe
reservou. Na realidade, não há mesmo sentido que venha ser dele cobrada a
solução dos maiores problemas nacionais. Diante da inoperância no Executivo e
da passividade do Legislativo, tudo parece sobrar para o Judiciário. Mas esse
não é o seu papel nem a sua responsabilidade. Ocorre que não tem ele conseguido
dar conta nem mesmo de sua atribuição mais primária: prover justiça célere e
eficaz a todos. Não é justo responsabilizar o Judiciário e especialmente o STF
pelos males do país. O Brasil precisa encontrar um rumo para que cada um e cada
instituição possa cumprir o seu papel e as cobranças sejam feitas a quem de
direito.
Eduardo Carnelós,
advogado
As
críticas são quase sempre às decisões que fazem valer as garantias
constitucionais de investigados e acusados, como decorrência de uma cultura
punitivista. Custa crer que, no ano em que a Constituição completará 30 anos,
ainda haja tanta resistência àquelas garantias, como se fosse possível viver
sem elas num Estado de Direito Democrático.
Fabiano Silva,
advogado
Acho
que o STF passou a ser um “personagem” muito ativo e tomou decisões que
contrariam muito a classe política — desde o ministro Teori. Por outro lado,
passou a ter entendimentos que acabam indo na mesma mão da sanha punitivista da
mídia e do MP. Deixou de lado seu papel de garantidor da Constituição e passou
a buscar mais protagonismo. Isso tudo movido por uma imprensa cada vez mais
ávida por notícias e condenações. Com isso, deixou de lado sua tradição de
garantismo e respeito aos princípios constitucionais até então sempre muito
valiosos.
Advogado
As
críticas vêm por conta da politização exacerbada e da excessiva exposição. A
conjunção desses fatores permitiu a manipulação midiática e a projeção da ideia
de que só há justiça quando há condenação. Essa ilusão de ótica produz a fé que
leva os cidadãos a perderem o respeito pelos julgadores. Assim como acontece
com os advogados, passa-se a confundir o julgador com o crime, e se sentem no
direito de ofender um ministro em praça pública, como se a sessão do STF fosse
um capítulo de novela ou de um seriado.
José Eduardo Alckmin,
advogado
Acho
que a tensão política desabou sobre a cabeça do STF. E aí tudo passa a ser
motivo de crítica de ampla repercussão. É como, mal comparando, árbitro de
futebol. Quando ele apita Paulista de Jundiaí x Taubaté, não há maiores
problemas. Mas num clássico Corinthians x Palmeiras as discussões sobre acerto
ou erro são intermináveis.
Eduardo Sanz,
advogado
Faz
algum tempo que o Supremo vem sendo atacado publicamente por autoridades
públicas mais preocupadas em propalar um discurso populista e expansionista do
Direito Penal. Clamando por precedentes autoritários e que restringem os
direitos garantidos na Constituição cidadã de 1988, essas autoridades se
utilizam do discurso de combate à corrupção para justificar seus excessos.
Nessa senda de desrespeito à suprema corte da nação e de seus atores, tais
autoridades têm se utilizado das redes sociais e da imprensa para constranger
os ministros que tentam resistir a essa sanha punitivista e populista. De forma
indireta, essas autoridades são responsáveis pelos ataques que ministros têm
sofrido na vida privada, com pessoas gravando vídeos vilipendiando a reputação
e a paz quando estão em espaços públicos. Não é admissível, em um Estado
Democrático de Direito, que os ministros da suprema corte tenham que julgar e
garantir princípios que, em regra, contrariam o pensamento autoritário,
populista e punitivista, sob essa pressão irracional e desleal. Faz bem à
democracia que os julgadores possam atuar livres de pressões desleais e que
possam julgar com suas convicções, e vinculados ao texto da Constituição, sem
que isso represente ataques em restaurantes, aeroportos ou onde quer que seja.
As liberdades e o respeito aos direitos fundamentais de todos nós são mais
importantes do que o combate à qualquer tipo de criminalidade. Afinal, não se
combate a corrupção corrompendo as leis e a Constituição do país, menos ainda
com pressões desmedidas sob as liberdades e a reputação dos integrantes da
corte.
Márcio Chaer é
diretor da revista Consultor Jurídico e assessor de imprensa.
Revista
Consultor Jurídico
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