Claude
Lévi-Strauss (1908-2009), antropólogo belga, um dos pais fundadores do
estruturalismo, viveu no Brasil, de 1935 a 1939. Lecionou na então criada
Universidade de São Paulo. Viajou pelo país, com especial atenção nas
comunidades indígenas, que observou e sobre as quais escreveu. Os registros de
suas observações e pesquisas lhe garantiram uma posição privilegiada no quadro
teórico e pragmático da Antropologia do século XX.
Posteriormente
professor de Antropologia Social no Collége de France, Lévi-Strauss é um dos
nomes mais importantes do cenário cultural contemporâneo. Testemunha de um
tempo no qual o saber se limitava a um saber cada vez fragmentado (o mundo dos
especialistas), Lévi-Strauss apostou no equilíbrio entre o sensível e o
inteligível[1]. Sua trajetória intelectual é o ponto de inflexão para o qual
converge um grupo heterodoxo de pensadores de nossa época: Sartre, Dumézil,
Beauvoir, Jakobson, Barthes, Lacan e Foucault. Lévi-Strauss é referência de uma
nova idade do ouro do pensamento.
Com
agudo interesse nas artes em geral, na música e na poesia em particular,
Lévi-Strauss exemplifica uma espécie em extinção. Fez parte de seleto grupo de
pessoas de fortíssima sensibilidade, para quem, mais do que tudo, o que vale é
a plena realização do ser humano, o que se faz substancialmente em um contexto
de contato com as ideias que tocam a alma. Porque, para quem pensa, a alma
efetivamente existe; a alma não é apenas um fragmento mais sutil da matéria.
Lévi-Strauss
nos deixou um testamento espiritual, Tristes Trópicos, um livro de memórias. Em
Tristes Trópicos, esse intelectual belga nos conta, entre outros, o que viu,
fotografou, pesquisou, sentiu e viveu em suas andanças pelo Brasil da década de
1930[2]. É também um delicioso livro de viagens, e ao mesmo tempo um delicioso
livro de memórias.
Lévi-Strauss,
entre outros assuntos, conta-nos como reagiu ao convite para lecionar em São
Paulo. Explica como um europeu sentia um país antípoda, evocando um imaginário
Brasil no qual havia apenas “feixes de palmeiras torneadas, ocultando
arquiteturas estranhas, tudo isso banhado num cheiro de defumador (...)”[3].
Intuiu que, menos do que um percurso, uma exploração é uma escavação[4]. É um
livro fundamental para se conhecer o Brasil, ainda que reconhecidamente eurocêntrico
e colonialista. Porém, é um livro que demonstra a universalidade e a
fragilidade dos arranjos institucionais humanos, a exemplo da Justiça.
Lévi-Strauss era um desencantado com o a Justiça e com o Direito. Como
antropólogo, sabia como somos de verdade, e o que ocorre no estado puro de
nossas maldades e contradições.
Conta-nos
que, saído do segundo grau, um professor o convenceu a estudar Direito.
Lévi-Strauss registrou que há uma curiosa fatalidade que pesa sobre o ensino
das leis[5]. É que, preso entre o museu de velharias da Teologia e o magazine
de novidades do Jornalismo, o Direito não consegue se situar em um plano único,
sólido e objetivo[6]: está perdido entre um passado que não compreende e um
presente que não quer compreender. O jurista, segundo Lévi-Strauss, parece um
animal que tenta mostrar uma lanterna mágica para um zoólogo[7]. A metáfora
sugere representação negativa muito forte. Lévi-Strauss então mudou seu roteiro
de estudos, concentrando-se na Filosofia.
Esse
desconforto com o Direito foi posteriormente confirmado em sua experiência
empírica. Era um observador. Há eloquente passagem dos Tristes Trópicos, na
qual Lévi-Strauss descreve um julgamento que presenciou quando esteve na
Martinica. Um camponês fora condenado a oito anos de prisão porque mordeu a
orelha de um desafeto. Segue o relato:
“Um
dia, entrei na sala do tribunal que se encontrava em sessão; era minha primeira
visita a uma corte, e continuou sendo a única. Julgava-se um camponês que,
durante uma rixa, arrancara com uma dentada um naco de orelha de seu
adversário. Réu, querelante e testemunhas expressavam-se num crioulo fluente
cujo cristalino frescor, em tal lugar, tinha algo de sobrenatural. Fazia-se a
tradução para três juízes que suportavam a duras penas, no calor, as togas
vermelhas e as peles cuja beleza a umidade ambiente murchara (...) Em exatos
cinco minutos, o negro irascível viu-se condenado a oito anos de prisão. A
justiça estava e permanece associada em meu espírito à dúvida, ao escrúpulo e
ao respeito. Que se possa, com tal desenvoltura, dispor em tempo tão breve de
um ser humano deixou-me estarrecido. Eu não podia admitir que acabava de
assistir a um fato real. Ainda hoje, nenhum sonho, por fantástico ou grotesco
que seja, consegue me imbuir de tamanha sensação de incredulidade”[8].
A
condenação de um camponês a oito anos de prisão, por causa de uma mordida na
orelha de um desafeto, em uma discussão, em julgamento que durou poucos
minutos, é certamente episódio que não ocorreu apenas na Martinica, e que
também não ocorreu apenas com o testemunho de Lévi-Strauss. Essa iniquidade é
recorrente e comprova a prática dos juristas de nos afastarmos do mundo real. O
jurista tem soluções para problemas que não existem. E não tem soluções para os
problemas efetivamente existentes. Contenta-se em justificar os arranjos
institucionais existentes, como se fossem naturais e necessários, e não
contingentes e arbitrários. Não se condena, em poucos minutos, a oito anos de
prisão, um mordedor de orelhas. É só o uso das fórmulas distante da realidade
que justifica tamanha iniquidade.
No
mundo das fórmulas, insiste-se no uso de uma linguagem que se afirma ser de
especialistas, dita “técnica”, mas que “só serve para criar um abismo entre
estes [especialistas] e leigos, para proteger e ‘distinguir’ o especialista
dentro de uma linguagem hermética para iniciados e permitir o uso do
conhecimento como mero ‘fetiche’ do mesmo modo como se utiliza o dinheiro na
vida social: para ‘comprar’ reconhecimento e legitimar privilégios”[9]. Justifica-se
o que existe, e o que existe são privilégios e interesses corporativos.
Como
Dante de algum modo cantou na Divina Comédia, o lado mau da humanidade existe
preponderantemente no inferno[10]. Porém, também de acordo com o poeta
italiano, há ao mesmo tempo um lado bom, bem-intencionado, afetivo e sensível
entre nós, o que nos define como a imagem de Deus. Este lado estaria no céu,
onde talvez prepondere o intelecto. Lévi-Strauss é exemplo dessa preponderância
intelectual, e a injustiça que o horrorizou está menos no inferno de Dante do
que ao nosso redor e à nossa vista.
[1]
Cf. DOSSE, François.História do Estruturalismo, O Campo do Signo, Volume I.
Bauru: EDUSC, 2007, p. 39. Tradução de Álvaro Cabral.
[2]
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Tradução de Rosa Freire D’Aguiar.
[3]
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, cit., p. 45.
[4]
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, cit., p. 46.
[5]
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, cit., p. 51.
[6]
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, cit., loc. cit.
[7]
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, cit., loc. cit.
[8]
LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, cit., p. 30.
[9]
SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira ou como o país se deixa manipular
pela elite, São Paulo: LeYa, 2015, p. 13.
[10]
A imagem é colhida em fascinante estudo de Charles Edward Andrew Lincoln IV,
Law and Catastrophes in Shakespeare’s King Lear, disponível em
www.academia.edu.
Arnaldo
Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e
doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela
FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela
UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e
pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto
Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).
Revista
Consultor Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário