sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

O SONHO DE UM HOMEM RIDÍCULO, OU O DESABAR DA UTOPIA. UMA RELEITURA DE DOSTOIÉVSKI. Por Carlos Russo Jr

Nesse momento você tem em mãos o relato de alguém que ansiou pelo fim. Não me lastime e não se espante tão pouco me inveje, pois eu fiz por merecê-lo após tanta estultice, desencanto e muita labuta.

Peço também que tenha um pouco de paciência comigo. Afinal, o custo de minhas confissões será um pouco de indulgência a pagar até chegarmos ao meu sonho. Mas estou eu antecipando, por pura ansiedade o que virá depois. Vamos ao meu escrito, pedindo-lhe que não estranhe o fato de eu escrever no mesmo tempo presente com que escrevem os seres viventes.

Para começar, reconheço ser um sonhador estúpido e empedernido. Por toda uma existência ouvi das pessoas que busco encrencar-me, que ajo motivado pela inveja ou pelo descontrole, quiçá por uma imaturidade que os anos não curaram, talvez pela loucura, ou por qualquer coisa que por aí vai…

Quando sobre mim assim falam, creia-me caro leitor, fazem-me um favor, pois sei que na essência não passo mesmo de um tipo parvo de sonhador. Parvo ao nível de deixar-me envolver por um sonho sem medir as consequências, permitir-me como uma vítima de sonambulismo ser por ele conduzido. Sim, um sonho, nada mais que um sonho foi o motivo da transformação da minha vida.

Peço que isso não soe como auto absolvição; tratei de viver a minha verdade, o meu sonho, ou aquilo que julguei que ela assim o fosse. Pois essa verdade sonhada tornou-me um misantropo na vida. Aqueles que foram meus amigos e que de mim se afastaram nada têm a ver com isso. Até creio ser distinto afirmar que é difícil crer que hajam me suportado por muito tempo e, se agora, simplesmente, fujam de mim, não os posso censurar. Mesmo porque, se eu digo que me tornei parvo devido ao meu sonho, isto também não é verdade. Se o faço é para encobrir a certeza íntima de que sempre fui, creio mesmo que de nascença, um estúpido, um ser inadequado ao convívio social.

Em minha própria defesa o que posso dizer? Como um pecado original, meu carma, meu sonho conduziu-me ao pavor de acrescentar qualquer nova mentira para mim mesmo. Por um estranho impulso deixei de considerar que a mentira é um dos componentes mais criativos do comportamento humano, tão necessário quanto a verdade; dessa maneira tornei-me um crente, um monomaníaco que em sua ideia fixa cre que viver com a mentira significa caminhar até o ponto de não mais distinguir o que seja a verdade nem em si e nem ao seu redor. E que assim o sendo, o indivíduo vê se esfarelar o auto respeito e acaba por não respeitar ninguém, perdendo a capacidade de amar e entregando-se para se ocupar e se distrair, unicamente às paixões e gozos mais corriqueiros.

Meu sonho induziu-me a crer que, em decorrência de uma vida fadada a ser falsa, o mentiroso buscaria incansavelmente por poder, por dinheiro e pelo esnobismo do consumo. E isso ele o faria com a volúpia de um viciado em drogas, uma volúpia incontida, considerando inimigos todos os que nele esbarram com um mínimo de crítica ou censura. Comecei a crer que para essas pessoas, não existe um gozo maior que poder construir uma própria aparência de realidade, enquanto o seu íntimo nada mais é do que um charco de charlatanismos e absurdos.

Estou falando demais dos aproveitadores de situações, mas peço que me acreditem, existem muitos seres inocentes e ingênuos, seres mais puros que pecam por acreditar nas meias-verdades, que no fundo nada mais são que mentiras. Esses ingênuos são mesmo capazes de darem ao cepo seu pescoço na defesa de nada mais, nada menos, dos expertos aproveitadores. Aliás o que seria destes malandros se não existissem seres inocentes ao seu lado para lhes ofertarem um inconsistente halo de “virtude”? Pois foi ao lado deles, como um tolo, que percorri boa parte de minha caminhada e, o fato de haver-me apartado da companhia dos mesmos, justamente no melhor momento da festa, quando os espólios de batalha estavam disponíveis, fez de mim um estúpido, ou melhor dito, um louco.

Sou julgado como aquele miserável que se nega, talvez apenas por maldade contra si próprio, a participar do banquete em que todos mergulham e se empanturraram até à indigestão.

À parte disto, alguns que mal me conhecem, chegam a me caluniar por supor que eu tenha abandonado meus ideais, havendo-me transformado num tipo de niilista, que tudo nega e que em nada acredita. Mas eu insisto: isto não é verdade!

Na realidade, em meu íntimo, eu repilo aqueles que são inimigos da vida viva, os pequenos retardados e oportunistas que têm medo de tudo que fuja ao seu controle de poder, os lacaios do pensamento único, os inimigos da transparência real e da liberdade, os amigos da sujeição e das frases feitas, os alucinados pelo dinheiro e pelo poder, aqueles para os quais os despossuídos constituem apenas uma referência, se possível distante, não hepática e, menos ainda dermatológica, mas, simplesmente, cerebral.

Muitos se perguntam como isto pode acontecer comigo? Bem, acho que chegou a hora de confessar-lhes o porquê de meu afastamento e minha repulsa a tudo em que amigos meus se transformaram.

Mas chega de circunlóquios. Vou sem mais preliminares contar-lhes como tudo começou.

Há algum tempo chegara eu à conclusão de que a vida perdera, para mim, qualquer importância. Desde meu nascimento, minha adolescência, meu engajamento político, todos os caminhos e descaminhos seguidos a que levaram? No momento em que passei a incorporar como minha a despedida da vida do escritor que com uma bala “resolveu sair pela janela”, senti que me seria indiferente que o mundo continuasse ou não a existir. Dava-me conta de que minha vida decorria agora em função das aparências e que estas já não mais me abrigavam. Eu não tinha ninguém ao meu redor, até mesmo minha própria família se dissolvera em um mundo tumultuado, onde o principal furacão tinha origem em meu próprio cérebro.

Pensava muito naqueles que deram a vida em plena juventude pela causa da humanidade; a maior parte deles homenageados, uns poucos transformados em símbolos comercializáveis, mas sempre em heróis inofensivos, e a nova sociedade tão sonhada, tão acalentada e em nome da qual tantos se sacrificaram, quando chegou um dia a ser parida, degenerou-se ainda na infância pelo poder, pela corrupção, pela criação do burocratismo, a base da criação de novas castas de privilegiados. Ideais tais quais os meus, como fogo fátuo, haviam se consumido nas chamas do seu próprio exaurir.

Foi difícil, um caminho longo e árduo para percorrer e chegar a todas essas conclusões, mas quando o logrei deixei de me aborrecer com os homens. Fechei o computador e não mais escrevi sobre eles. Doei de uma única vez todos os meus livros, afinal ler para que? Desinteressei-me por toda vida social. Cancelei o jornal do dia, vendi meu televisor, mudei-me para um pequeno apartamento distante de tudo, sem telefone, sem internet, e, principalmente, sem ninguém ao lado.

Na medida em que nada mais possuía relevância para mim, decidir-me pelo suicídio foi um passo curto. Adquirir uma pistola automática e deixá-la na escrivaninha foi um lenitivo, ou melhor, a única alegria rediviva a cada manhã: ao acordar eu realizava que minha saída de cena estava garantida por uma pequena bala na agulha. Apenas faltava marcar o dia e a hora e isso fazia sentir-me leve e liberto de qualquer escravidão. Até mesmo, auxiliava-me a viver mais um dia, sempre um novo dia. Mas afinal tomei coragem e marquei o dia de minha execução.

À guisa de despedida, retirei o velho carro da garagem e fui percorrer alguns lugares que algum dia amara. Tive, então, pela primeira vez, a sensação de ser um mero observador, de alguém que de nada já participava, uma sensação de sentir-se fora do jogo da vida. Percorri o centro velho de minha cidade, visitei lugares de infância e foi próximo a um deles que estacionei para enviar mensagens de despedida a uns meus poucos amigos e parentes.

Quando menos esperava fui abordado por um adolescente vestido em andrajos e não lhe tive medo; veio-me do coração um sentimento de paz, e eu sorri. Ao buscar alguma esmola nos bolsos vi que ele tinha uma arma na mão. De repente, nos últimos atos de minha vida, eu estava sendo assaltado! Por segundos tive em minhas próprias mãos a oportunidade de deixar-me matar. Então, por que não a aproveitei? Qual o motivo de haver-lhe entregue a carteira ao invés de resistir? Tudo teria sido mais simples. Mas qual, eu entreguei o que o ladrão havia pedido e voltei ao carro e de certa forma corri de volta ao meu canto. Afinal, eu me negara, e com razão, a terceirizar minha própria morte.

Apanho, então, a arma com a bala na agulha. Sento na única poltrona e a encosto na têmpora. Destravo o cão, mas ainda não disparo. Vem-me à mente a figura do guri, os olhos dilatados, o cheiro da miséria que me agredira o olfato, a tragédia de uma vida que me assaltara meia hora antes. Eu não me deixara matar e isso, agora, fazia-me estranhamente feliz. Entregara-lhe minha carteira, isso quem sabe, iria mitigar-lhe as necessidades por algum tempo e o impedira de tornar-se, quem sabe, o criminoso de outro alguém que preferisse a vida. Eu não contribuiria para sua lista de maldades, mesmo porque, minha morte terceirizada seria como uma fraude.

Então, nada mais que de repente, o rosto crispado do assaltante sofreu uma transformação. Não mais o ódio e o medo do seu olhar. Eu o via sorrir. Meu braço foi se abaixando até que o revólver se desprendeu de minha mão e caiu ao chão. Foi assim que, ao adormecer, o tiro não foi disparado e meu sonho começou.

Em meu sonhar a pistola disparara e como um espectador de meu suicídio, pude ver a trajetória da bala perfurando-me o cérebro. A primeira sensação foi a de uma incomensurável explosão; depois eu sentia que agonizava. Enquanto ao meu redor uma poça de sangue crescia e chegava até a porta do apartamento num tudo tingir de vermelho, a paz penetrava em mim por todos os poros. Mas o sangue seguia escorrendo e como fiapo de rio espraiou-se pelo hall de entrada e alcançou a porta do elevador. Eu podia ouvir claramente o seu pingar gota-a-gota no poço. Espectador de minha própria morte, eu assistia a tudo de fora de meu próprio corpo, como se tivesse deixado de habitá-lo. Ouvi os vizinhos quem me chamavam à porta e sobressaltei-me quando ela foi arrombada.

Entrou muita gente que eu jamais vira. Puseram-se a vasculharam meus poucos pertences, numa busca inútil por nomes de parentes ou amigos. Nada poderiam encontrar, preparara minha morte de tal modo que ninguém se aborrecesse ou se avantajasse. Cansaram-se de procurar por qualquer coisa e, em fim os oficiais do Corpo de Bombeiros puseram-me sobre uma padiola e fui levado à morgue, onde mãos desconhecidas e pouco cuidadosas, abriram-me, costuraram-me e me despacharam.

Um velho rabecão deu carona para minha carcaça até um cemitério de periferia. Confesso mesmo que gostei de todo desfecho, pois graças às minhas providências não tive que aturar um velório. Tenho a mais absoluta certeza de que surgiriam hipócritas para falar de virtudes que provavelmente eu nunca as tenha tido, da firmeza, da perseverança e humanidade, assim como outras estupidezes justificadoras do velar e consoladoras para os que seguem vivendo.

Assisti a tudo aquilo como se não fosse comigo próprio. Tão pouco qualquer dose de entusiasmo ou surpresa quando meu corpo baixou à sepultura e sete palmos de terra em cima encerraram de vez minha conta corrente.

Dizem que nos sonhos não temos noções nem de espaço e nem de tempo. Aqui testemunho ao contrário, pois me incomodava enormemente a estreiteza da caixa onde havia sido entalado meu corpo. E não somente essa sensação de falta de espaço, algo mais me importunava, uma determinada umidade abraçava meus restos mortais. Estranha sensação… Todavia, eu percebia a umidade aumentar e a água me inundava pelas frestas do caixão. Por que eu me recordei daquele verso que dizia mais o menos o seguinte: “céu borrascoso, não se desanuvia sem uma tormenta”?

Foi quando ouvi uma chuva inclemente caindo sobre a terra que cobria a minha sepultura. Pois pasmem, eu escutava. Por quanto tempo aquilo tudo duraria?

Desculpe-me, caro leitor, por não saber precisar em que momento tudo se modificou. O que eu presenciei estando fora e ao mesmo tempo dentro de meu corpo- situação ubíqua esta de se estar fora e dentro ao mesmo tempo- é que a chuva diluviana trouxe meu esquife à superfície e arrastou-o para longe do cemitério; o esquife no qual permanecia entalado meu cadáver imóvel de repente servia-me de um pequeno barco que se pôs a navegar. Primeiro era uma enxurrada, depois um pequeno rio, após desembocamos em um maior e, por fim, depois de um longo flutuar descortinei-me num oceano de água.

Caminhei num mundo de água em meu caixão, e um detalhe importante, ele, por sorte, perdera a tampa, estava aberto. Meus olhos fechados podiam, através das pálpebras, vislumbrarem um céu repleto de estrelas, iluminado por uma lindíssima lua cheia que resplandecia. Eram os mais intensos brilhos que eu jamais vislumbrara em vida, difícil mesmo diferenciarem-se de dias sombrios tal a intensidade luminosa, mas posso assegurar a todos vocês que os astros e a lua eram os mesmos que todos conhecemos em vida, nada havia de magia. Afinal, Vênus, Marte, as Três Marias, o Cruzeiro do Sul, todas estas estrelas eu as identifiquei. Viajamos, então por todo um oceano ao sabor das ondas e, quando o sol, finalmente surgiu, ele era o mesmo sol que sempre me iluminara enquanto fora vivo.

Nos sonhos a noção de tempo perde qualquer significado. Somente posso dizer que, de repente, meu caixão encalhara e meu corpo, no baque, rompera a madeira do esquife e se estatelara na areia. De algum modo eu sabia que a viagem ali terminava. Senti, então, meu ser despertar da letargia da morte e meus olhos, parando de enxergar através das pálpebras, voltarem a se abrir. Demorei algum tempo a acostumar-me à claridade, mas aos poucos consegui colocar-me de pé e a meus olhos descortinou-se um ambiente de inenarrável esplendor!

Ocorreu-me a ideia de uma vida após a morte. Poxa! Custava-me crer, mas eu teria estado errado por toda a minha vida de mortal? Se eu ali estava, a morte nesse caso não encerrava tudo, haveria vida depois dela e, isso me arrepiou, pois como ficava a filosofia existencial em que eu confiara piamente? E por que cargas d’água, um suicida, com um passado como o meu, que qualquer religioso consideraria repleto de pecados, teria aportado a um Paraíso? Não, não era definitivamente possível, os deuses conspiravam para tornarem-me louco, antes que a morte definitiva me socorresse.

O sol brilhante era aquele mesmo meu velho conhecido; as palmeiras, a vegetação que me cercava eu poderia jurar que a vira em algum lugar; a água molhava meu corpo como sempre o fizera em toda a vida vivida. Afinal, que local era esse?

O que posso deixar escrito nesse meu testamento é que o brilho da aurora de dedos alaranjados, resplandecendo naquele recanto encontrou eco no meu coração. Um sentimento de paz e de ternura inundou-me a alma reverberando por cada célula de meu corpo redivivo; a sensação de integração total com o cosmos penetrou-me, talvez, pela primeira vez em muitos anos, talvez desde nunca, de tal forma que não me sentia mais um estúpido, mas um privilegiado. Podia sorver no ar puríssimo uma alegria incontida, bem-estar que de tão completo não me pertencia pois não era individual, era-o de um Todo, do qual eu me sentia apenas pequena parte.

Olhei melhor o meu entorno. O mar, de um azul dulcíssimo tocava delicadamente, como dedos delicados de sereias a produzirem carícias nas franjas de areia fina e macia. Como uma carícia que me fosse dedicada, as águas transparentes tocavam delicadamente meus pés.

Chegaram, então, aos meus ouvidos como que por magia, os trinares de centenas de diferentes pássaros que aos milhares saudavam a manhã. Alguns chilreios eu conhecia, outros não. Parecia que competiam em solos dentro de uma polifonia maviosa. Tudo cantava, ressoava, zunia, estrondava, sussurrava, matraqueava e rugia, na floresta vizinha. Quem sabe, talvez fossem anjos travestidos que anunciavam minha chegada ao Paraíso, cheguei a pensar por um momento.

Não tenho noção do quanto durou meu enlevo. Foi quando que, de repente, o perfume de flores tirou-me do transe, mas tão somente para conduzir-me a outro, se possível ainda mais impressionante. E, para minha surpresa, deparei-me com lindos pares de olhinhos infantis sobre mim pousados e lírios brancos estendidos por pequenas mãos para me recepcionarem. Abaixei-me para abraçá-las e agradecer-lhes, mas fruto quem sabe de minha estupefação, caí sobre meus joelhos dobrados e sem conseguir proferir palavras, chorei. As crianças abraçaram-me e, em minha língua, disseram-me que eu era muito bem-vindo.

Lentamente recuperei-me da surpresa. Ao tomar alento, senti-me cercado por muitas outras pessoas, criaturas tão amáveis quanto seus filhos, que me sorriam e que logo também estavam a me abraçar. No olhar de cada pude encontrar a transparência de todas as virtudes, a cordialidade absoluta que só a paz afaga e o amor aconchega. Eram seres transbordantes de felicidade, mas de um sentir que somente se fazia possível por em tudo se coadunar e mesmo se confundir com o Todo, do qual todos os seres vivos e a natureza harmoniosa eram partes.

Olhando-os melhor, recordo-me de jamais haver estado em vida seres com corpos tão perfeitos e harmoniosos. Não somente o das crianças, dos homens e das mulheres, mas até mesmo dos próprios velhos. Todos eles dignos de sua idade, repletos do bem-estar, o bem-estar daqueles que atingiram a perfeição do sentirem e darem-se na complementaridade.

Não me interrogaram sobre quem eu seria, o que queria em suas terras, nada. Contentavam-se em expressar gestos transbordantes de carinho e afeição. O maior interesse era que eu me sentisse acolhido, feliz. Convidaram-me a comer e a me vestir. Somente então me dei conta de que saíra nu em pelo de meu esquife. Vesti os mesmos trajes sumários que eles usavam e comi de um grande prato de barro repleto de vegetais e frutos do mar que possuíam um sabor diferente de tudo aquilo que eu já provara. Quando me senti saciado, forrado por pétalas de rosas, recostaram-me em um colchão de palha seca para que descansasse de minha “longa viagem”.

Não buscara sempre em minha vida um lugar e pessoas com quem valesse à pena viver? Pedi-lhes e foi-me concedida a graça de com eles conviver com a única condição de respeito mútuo e a toda às criaturas da natureza, inclusive às rochas, às águas, ao ar.

Compreendi que apesar de hábitos e gostos simples, nada lhes faltava; meus novos amigos viviam em pequenas casas, muito semelhantes entre si, mas decoradas cada qual a sua maneira. Em algumas predominavam os desenhos infantis, em outras, cenas naturais pintadas e, em outras ainda, somente as cores sem forma das tintas sobressaiam; cada habitação possuía o seu pomar e os campos em que plantavam cereais ou criavam seu gado miúdo, assim como a cerâmica e os teares, tudo o que produziam faziam-no comunitariamente, cada ser atraído pela atividade que com ele mesmo mais conversava.

Suas crianças cresciam juntas e, apesar de terem seus próprios pais e de com eles residirem, eram de certa forma consideradas como filhos de todos, amados e cuidados por toda a comunidade.

Meus novos amigos desconheciam doenças e dores, embora como nós, também envelheciam e morriam. Mas o seu morrer em nada se parecia à ruptura maior a que a civilização me conduzira; assemelhava-se, sim, a um desligar-se da vida, pois o que partia era rodeado pelos amigos e ao som de uma música divinal que somente mais tarde eu descobriria a origem, ele, o velho, morria. Porque, de qualquer forma, ao contrário de nossa cidades, para morrer fazia-se necessário envelhecer, e último ato era um retorno ao útero maior, o seio da mãe terra.

Recordei-me de Ulisses e dos feáceos. Estaria eu realizando a trajetória do grego e seria esse o povo dos sonhos de Homero?  Como Ulisses, eu chegara em uma espécie de jangada. Ainda como o herói grego fui recepcionado por um povo feliz que vivia a mil léguas da mentira e do orgulho. Mas se o poema homérico influenciava e penetrava no meu sonho, por que jamais me foi concedida a graça de conhecer a linda Nausíaaca e fazê-la por mim se apaixonar? Garanto que eu jamais deixaria esse sonhar.

Apreendi a conhecê-los ainda melhor. A eles que não possuíam filosofia, ciência ou religião. Ao contrário de qualquer mortal por mim conhecido, isso não os impedia de possuir o saber, o conhecimento profundo da natureza da alma humana, na sua mais íntima essência. Nesta sociedade, o homem era o maior amigo do homem, o maior amigo dos seres da natureza, com a qual estabelecera um pacto de amor recíproco. Talvez por isso mesmo jamais pude encontrar entre eles brigas, ciúmes, desgostos ou lágrimas: era como se o amor solidário se espraiasse, resplandecesse num sereno êxtase, perfeito, integral e contemplativo. Quando um dia eu lhes perguntei se aquele paraíso seria a vida eterna, permaneceram sem me responder, pois para eles o termo “vida eterna” nada significava, apenas conheciam uma vida, o presente.

Interroguei-os também sobre Deus e todos me garantiam que com esse ser jamais haviam tido contato ou mesmo ouvido falar a respeito. A felicidade, a permanente comunicação com o Todo os ocupava tanto que não lhes sobrava tempo para pensar sobre o bem e o mal. O bem era inequívoco, reinava absoluto e ao mal, pobre mal, nem mesmo uma migalha lhe sobrava.

E quando eu falava, eles me ouviam atentos. Dizia que em minhas utopias, nas ilusões e nos sonhos mais maravilhosos de meu espírito, não havia previsto um mundo como o deles; que o júbilo que sentia na alegria incontida de encontrá-los, era uma recompensa extraordinária àquele que se sentira um homem estúpido, um louco a desintegrar-se num mundo de loucos. Agradecia à morte o júbilo de encontrá-los. Ao dizer isso, entretanto, novamente percebia que eles não me acompanhavam, pois, simplesmente não me entendiam, para eles eu estava vivo e nós vivíamos em comunhão.

Soube também que a comunidade onde eu me integrara não era a única naquele oásis de paz. Outras mais existiam e estas se comunicavam.

Apenas a um primeiro olhar as comunidades pareciam ser autossuficientes. Muitos artigos fruto do trabalho manual ou daquilo que a terra lhes ofertava, eles trocavam entre si. Para tanto, seus mensageiros caminhavam dias e dias com o máximo de peso que conseguiam transportar no próprio lombo, os povos não possuíam animais de carga.

Foi com a melhor das intenções que tentei facilitar a vida de meus maravilhosos anfitriões, e meu conhecer os colocou a perder, e vi naufragar todo um universo de amor, de paz e concórdia. E o agente da perdição da civilização maravilhosa foi nada mais, nada menos que eu, um homem ridículo. Não consegui como Ulisses simplesmente me deleitar com a beleza e com a pureza desses faécios e deixá-los sem os contaminar com um dos principais germes da discórdia que eu trazia da minha civilização. Mas preciso ir com calma, caro leitor, não devo me apressar, voltarei a dizer mais adiante como esta tragédia toda ocorreu.

Entrementes, as surpresas que me aguardavam ainda não haviam terminado. Numa manhã, enquanto percorria com um grupo de meninos e adolescentes a floresta próxima, voltei a escutar a dulcíssima música que eu já ouvira quando da cerimônia da morte, passagem no dizer dos autóctones, de um velho. Deparei-me com um alguém metade homem, metade animal a soprar uma flauta feita com delicados pedaços de bambu. Ao lado do fauno, havia mais um ser mitológico, uma linda e deliciosa ninfa, nua, a bailar ao som dos acordes musicais, com as pernas mergulhadas no leito de um rio, seu pai. Parei extasiado e no meu sonhar recordo-me haver fechado e friccionado meus olhos para afastar a ilusão. Mas ao reabri-los eu vi que meus acompanhantes e os seres mitológicos eram conhecidos e se confraternizavam. Alguns ensaiavam desconhecidos passos de dança.

Neste mundo de maravilhas perguntei aos meus guias se existiriam mais destes seres extraordinários e eles responderam-me afirmativamente, “afinal, nossos amigos são os eleitos da floresta”. Disseram-me ainda: “Mas veja, irmão- pois assim me chamavam desde os nossos primeiros contatos- nem são todos são assim tão felizes e amáveis; alguns, como os centauros, são meio neuróticos e nada simpáticos”. Tentei dizer-lhes que os mitos reais eram uma impossibilidade e meus amigos simplesmente sorriram-me e responderam-me “mas esses seres da floresta sempre existiram, tanto quanto nós mesmos”.

Neste momento, interrompo minha narrativa, pois meu leitor deve estar rindo desse relato impossível, do qual eu mesmo duvidaria se eu não o tivesse vivido. Se do fundo de meu coração eu soubesse que tudo na verdade não passara de um delírio, que se trataria tão somente de literatura fantástica, a vida para mim voltaria a ter algum sentido, quem sabe? Mas meu sonho foi mil vezes mais real, vívido, deslumbrante e, no seu final, mais aterrorizante do que eu pude até aqui reproduzir. Afinal, em meu testamento de vida, ou melhor, de morte, eu o relato da forma como me ocorreu, e ninguém me obrigará jamais a reconhecê-lo haver sido somente um simples sonho, ou um delírio se o acharem melhor.

E o que a seguir contarei é algo tão profundamente demoníaco e inusitado, que, em sã consciência jamais poderia ser contido em um simples relato, em algumas linhas escritas por uma caneta. Entretanto, posso assegurar-lhe, meu leitor, que a abominação ocorrida feriria a qualquer um da mesma maneira letal como o fez comigo.

Porque aquele povo maravilhoso, pacífico, cúmplice em sua fraternidade, ingênuo no viver com o Todo, que abominava qualquer agressão entre eles mesmos, contra a natureza e seus filhos, corrompeu-se irremediavelmente. E eu, que os adorava, de uma maneira e de uma intensidade como jamais amara a nenhum mortal em vida, fui o agente da destruição, o elemento corruptor, aquele que transformou a pureza em podridão, a virgindade em perversão.

Sim, fui o agente que inoculou em todo aquele povo o vírus mortal da cobiça, da mentira, da destruição da união entre os homens e a natureza, que rompeu para sempre a feliz fraternidade em que viviam. O que é o pior é eu o fiz com o intuito idiota de ajudá-los. Creiam-me, no momento em que já diviso o final de minha carta, confesso que tudo o que fiz foi com o simples propósito de ajudá-los e a consequência de minha ação destruiu um mundo maravilhoso.

Nesse momento da narrativa o amigo deverá ter-se assustado. Afinal o que esse narrador poderia ter realizado de tão grave a ponto de conseguir desmoronar toda uma forma de existir? E interrogar-se por que eu o teria feito? Estou pronto a responder-lhes que, em última análise, sou tão somente um estúpido, um homem ridículo!

Primeiro lhes inoculei a ganância. Por que não aumentavam o intercâmbio entre as diversas cidadelas e aldeias? Viveriam ainda melhor do que no presente, não teriam que realizar longas viagens com tanto peso nas costas para realizarem tão poucas trocas. Organizassem mercados, soubessem aproveitar-se do aumento da demanda e, mesmo, da redução da oferta de seus bens. Administrassem valores. E, por fim, ensinei-lhes o valor simbólico do dinheiro!

A eles que possuíam prata e ouro, mas que não louvavam esses metais, oferecendo-os geralmente aos animais mitológicos da floresta, que dentre todos eram os únicos a apreciarem o enfeitar-se. Sugeri que os espoliassem destes mimos e ensinei-lhes a cunhar moedas e que o ouro e a prata fossem as bases para a troca das pesadas mercadorias e, com o excedente, enfeitassem suas próprias mulheres.

Com isso despertei naqueles povos ingênuos o orgulho, a cobiça e ambição. Eles, convidados por mim a provar do elixir do diabo, dele gostaram e terminaram por se embebedarem até se sentirem fartos e terem seus ventres estufados de tanto beber.

Do orgulho, do aprendizado da cobiça e da ambição, ao embuste da mentira, da compreensão de como ela pode ser útil na relação interesseira entre os homens, foi uma distância percorrida rapidamente. Em pouco tempo, também, fruto das “conquistas” realizadas surgiram a volúpia, o ciúme que cega e até mesmo a crueldade que mata.

E o primeiro assassinato foi cometido por ação de ganância. O sangue que escorreu do primeiro corpo, marcou-os com o sinal de Caim, separando-os para todo o sempre. Foi o ponto de partida para que cada agrupamento buscasse um abrigo, que determinadas famílias realizassem alianças contra as outras.

Muito em breve cada agrupamento ergueria paliçadas protetoras, que terminariam substituídas por fortalezas, todas elas feitas com as mais fortes árvores abatidas da floresta. Logo os campos de cultivo e de gado comunais foram invadidos e os mais fortes, as famílias mais numerosas, deles tomaram posse. A propriedade da terra passando às mãos de poucos, tornava os mais débeis escravos destes. Nada mais se repartia, uns acumulavam riquezas e enquanto outros arrastavam sua pobreza pelos vilarejos.

Ao mesmo tempo, quebrou-se o elo que mantinham com a natureza, deixaram de respeitar as árvores, os rios, a matar e aprisionar os animais selvagens. Os inocentes seres mitológicos desapareceram como do dia para a noite, para todo o sempre. Naquela sociedade pervertida não havia mais espaço para sonhos, para mitos, para a inocência.

Foi assim que, de repente, não se sabe de onde surgiu o termo, mas alguém pronunciou a palavra ciência, e as pessoas, para meu pavor, passaram a acreditar que o conhecimento era superior à própria vida.

Nesse processo de novas descobertas os mais jovens, ainda mais que os outros, ridicularizavam a experiência que todos haviam vivenciado antes de minha chegada e a denominaram de “a era da utopia”. Insistiam em que, por ultrapassada, extinguira-se naturalmente.

Entretanto, isso eu logo me dei conta, ninguém se sentia tão seguro como no passado, rompera-se para sempre a aliança com o Todo e os homens passaram não somente a temerem aos outros, mas também aos fenômenos da natureza, dentre eles, a naturalidade da morte. Inventaram suas crenças e seus deuses. Surgiram os templos para o culto das divindades criadas, templos que foram se enriquecendo, tornando-se opulentos. E para ordená-los, estipular suas regras, apareceram sacerdotes.

Com a perda da justiça natural, surgia a necessidade de estipularem leis, direito e deveres. Criaram o direito, depois os juízes, os acusadores e as cadeias.

Em meu desespero, eu lhes implorava para que refletissem, não reproduzissem a sociedade que eu abandonara ao morrer. E eu, a quem nem ao menos era dado o direito de me matar, pois morto já estava, fui assaltado pelo desespero mais absoluto.

Não tardou muito para que me evitassem. Aqueles homens e mulheres que eu tanto amara desde minha chegada, passaram a dizer que eu possuía o gênio da “mania”. Acusaram-me de louco! Ao cruzarem comigo diziam que não havia mais dentre eles, um lugar para mim.

E, foi aí que eu acordei…

Ao despertar ainda com a última frase nos ouvidos, decidi sentar-me e escrever essa longa carta, na esperança de que seja lida por pelo menos um leitor: você mesmo! Esse é o resultado de meu trabalho, um único testamento!

Agora me sinto-me livre para o último ato que desejo realizar: recolher o revólver que jaz ao solo, bem ao meu lado, e, com sua única bala, arrebentar meus miolos.

Boa leitura para você que teve a paciência de ler minha última carta e ainda teima em seguir vivendo!


http://proust.net.br/blog/?p=1159

Nenhum comentário: