Não
precisou da ordem de um juiz para que um grupo de advogados dispostos a
confrontar a escalada punitivista do Judiciário começasse a se movimentar. Sem
árbitros em campo, o time de profissionais do Direito intitulado Prerrogativas
enfrentou os craques do Politheama, de Chico Buarque de Hollanda, no Recreio
dos Bandeirantes, Rio de Janeiro.
Chico
marcou o gol da vitória — por 6 x 5 — e, além do troféu pelo jogo, recebeu a
primeira comenda da nova entidade de advogados: a Comenda das Prerrogativas.
Crítico
do punitivismo, o compositor sabe que qualquer réu que aparece na TV torna-se,
automaticamente, a Geni de sua canção. Pode atender aos pedidos do prefeito e
do banqueiro, topar uma delação, "salvar a cidade", mas, ao fim, será
o alvo de todo e qualquer ataque, sem a real chance de se defender.
A
diferença entre o fair play em campo e o que tem sido visto fora dele chamou a
atenção de profissionais gabaritados que estavam na partida, como o
constitucionalista (e goleiro) Lenio Streck, e o criminalista (e ala direito)
Cristiano Zanin Martins.
Em
um bate-bola com a ConJur, eles contaram como os juízes do país da “lava jato”,
antigo país do futebol, têm participado cada vez mais do jogo (e jogado para a torcida):
ConJur — Pentacampeão mundial de futebol, o
Brasil já foi famoso por sua defesa. Hoje é conhecido por dar prioridade
absoluta ao ataque. Como os senhores vêem este momento?
Lenio Streck — A cada dia esse novo esquema tático
vem sendo mais utilizado. Tal ânsia de atacar acabou, inclusive, por acarretar
em alteração no tamanho das goleiras, que foram aumentadas para facilitar mais
gols. Os atacantes pediram — e foram atendidos — também em outro pleito: quem
colocar barreira na cobrança de falta será expulso de campo por infração de uma
nova regra: a de obstrução da trajetória da bola. Outra medida foi decretada
visando a facilitar o ataque: a defesa não pode ter goleiro com mais de um
metro e meio de altura. A cada jogo os goleiros são colocados em um medidor,
para evitar obstrução da trajetória da pelota.
Cristiano Martins — Claramente há um desequilíbrio entre
defesa e ataque. O ataque imagina a jogada e não precisa realizá-la, pois o
juiz apita o gol sem que ela tenha ocorrido. Já a defesa tem que desmontar até
os lances imaginários. É mesmo assim suas iniciativas são desprezadas. O placar
final é construído com base em lances imaginários e delirantes.
ConJur — O ataque foi liberado para chutar
sem seguir regra alguma. Parece até que tem um time só em campo. O regulamento
é reescrito na arquibancada. Dá pra jogar desse jeito?
Lenio Streck — Não há mais regras. Na verdade,
regras existem, mas elas dizem o que o árbitro diz que elas dizem. É o que se
chama de "principio da adequabilidade da regra em favor do time que
ataca". Dizem que o Atacante Geral da Republica (AGR) importou uma teoria
chamada "teorema de Humpty Dumpty", pelo qual o árbitro dá as
palavras da regra o sentido que quer.
ConJur — O que acha desse movimento em que
se determina o resultado da partida antes do início do jogo?
Lenio Streck — Desde que a regra foi transformada
na regra que o árbitro disser que é, a coisa ficou desse modo. Primeiro o
árbitro diz quanto será o jogo. Depois deixa jogar para chegar ao resultado já
definido. Claro que, para isso, rigorosamente são obedecidos os ditames das
regras que proíbem os goleiros do time adversário de terem mais de um metro e
meio, proibição de barreira e goleiras do lado do adversário aumentadas em um
metro para cima e um metro de cada lado.
Cristiano Martins — Está claro que estamos em campo
apenas para dar conferir alguma legitimidade à partida.
ConJur — Essa novidade de o juiz matar a
bola no peito, sair driblando as regras e chutar a gol contra o time da defesa
pode matar o campeonato a médio prazo?
Lenio Streck — Nos meios desportivos diz-se que já
não há mais campeonato. Tudo começou no dia em que o árbitro marcou um pênalti
no meio do campo. O time prejudicado foi pra cima dele e ele disse: apitei e
mato no peito a responsabilidade. Não tem bandeirinha nem juiz de vídeo que me
convença. Na semana seguinte este mesmo árbitro, diante de um lance semelhante,
não só não marcou falta como expulsou o atacante. Foram pra cima dele e ele
chamou a si a responsabilidade. Disse que as regras do jogo estavam defasadas e
que era necessário reescrevê-las. É o que vem se chamando, nos comentários
esportivos, de realismo futebolístico: a regra do jogo é a que o arbitro diz
que é.
ConJur — A divulgação pela imprensa do
resultado do jogo antes da partida influencia o desfecho da disputa?
Cristiano Martins — Não há dúvida de que a divulgação
antecipada do resultado de uma partida, além de sugerir uma combinação prévia,
desestimula qualquer competição equilibrada, como seria de rigor. A conduta
busca tornar aceitável perante a torcida resultados que não poderiam ser
obtidos seguindo o regulamento.
Lenio Streck — Segundo lideres de facções de
torcedores com ligações diretas com os cartolas, divulgar o resultado do jogo
antes da partida dá segurança para os torcedores. No "novojogo",
sempre se sabe antes sobre o que vai ocorrer no jogo. Evidentemente que apenas
alguns veículos é que podem transmitir essas informações.
ConJur — Em algum outro país o juiz, os
bandeirinhas, os cartolas e a torcida fazem parte do mesmo time como se
fizessem parte de uma força tarefa?
Lenio Streck — Há registros de que em alguns
países isso já ocorreu. Começa exatamente com uma conclamação da torcida,
dizendo que o jogo como vem sendo jogado estimula resultados pelos quais times
pequenos podem vencer dos times grandes. Por isso, a primeira coisa é proibir
uma das torcidas a ir ao estádio. Depois, sabe-se já de antemão o time que deve
vencer. Para garantir isso, alteram-se as regras durante o jogo.
ConJur — Logicamente, se as regras do jogo
são as regras do juiz, então não há mais regras do jogo, certo?
Lenio Streck — Antes se procurava seguir as regras
do jogo e nunca se sabia o resultado de antemão, mas isso não era bom, porque
gerava insegurança. Então veio uma teoria chamada "neofutebolismo",
que, junto com a tese do "realismo futebolistico", permitiu que a
regra fosse o que o árbitro dissesse. Isso facilitou tudo. Pode-se dizer que os
árbitros se transformaram na vanguarda do futebol do futuro.
https://www.conjur.com.br/2017-nov-19/advogados-jogaram-chico-lutam-fair-play-fora-campo
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