Joseph
Conrad, polonês, não gostava de Dostoiévski, russo. Achava Os Irmãos Karamázov
“terrivelmente ruim, impressionante e irritante”. E dizia mais: “não sei o que
Dostoiévski representa ou revela; só sei que é russo demais para mim”. Conrad foi marinheiro, morou em Marselha,
aventurou-se em navios cargueiros pelo mundo afora. Andarilho romântico, “um
homem sem pátria que, para fugir do recrutamento do Exército russo,
incorporou-se à Marinha Mercante britânica”. O “Homem Subterrâneo”, de
Dostoiévski, na sua saga triste e torturada (“Notas do Subterrâneo”) é um
sensível, que se “ofende com facilidade”. Ele pode ser o “homem moderno em estado de fragilidade” –
anti-herói todavia – cujo sentido existencial definido está no personagem mais
marcante do mestre russo, Raskólnikov. Aquele que, por se julgar um ser
superior, pode cometer qualquer ato – inclusive um assassinato sem motivos –
livre de qualquer julgamento da história ou dos seus semelhantes imediatos.
Conrad
lida com heróis imperiais, fortes ou covardes – resistentes e dominadores –
como nos notáveis “Nostromo” e “Coração nas Trevas”. Ou no brilhante “Lord
Jim”. Dostoiévski capta o essencial do consciente e do inconsciente, nos seus
personagens repartidos, marcando o que
eles tem de dividido: suas dúvidas metafísicas, sua psicologia tortuosa, sua
emergência nos tumultos incompreendidos e nas revoluções em andamento.
Dostoiévski, o grande romancista do sofrimento, da angústia, da introspecção.
Conrad, um vagabundo lúcido, aventureiro experiente, que escreve cada história
como se, neutro, testemunhasse as emoções comuns do seu tempo vivido. Conrad e
Dostoiévski, dois escritores gigantes. Dois espíritos da época moderna, que nos
ligam pelos fios invisíveis da ironia e do drama, à nossa história recente. E
assim nos ajudam a poupar sofrimentos nas indeterminações do futuro.
Cada
um de nós tem um pouco de Conrad e Dostoiévski dentro de si. Na modernidade –
ao mesmo tempo decadente e tardia – que nos envolve, lá estamos nos
subterrâneos do inconsciente ou na tentativa de sermos épicos, em cada episódio
da vida, intercalando os nossos medos – suposta ou realmente heroicos do
cotidiano – com o que vem marcado pelo inconsciente coletivo. Conrad e
Dostoiévski. Estes medos, às vezes, são integrados nas inteligências dos
indivíduos e se tornam lucidez: desafio ou prece. Tudo mais ou menos heroico,
mais ou menos trágico, mais ou menos comum ou medíocre. É o torneio sem fim,
dentro daquilo que se chama vida, existência social, memória futura ou ação
escolhida pela frustração ou risco.
Por
acaso assistia pela manhã, na quinta-feira, à Globo News, e ali presenciei uma
cena emocional e patética, que me comoveu até as lagrimas. A mãe-cadelinha
salva do incêndio oito cachorrinhos e as apresentadoras do informativo, com
seus trejeitos afetivos próximos da perfeição artificial, se emocionam e nos
comovem na solidariedade da sua emoção pasteurizada. Transformam o instinto da
mãe-cadelinha num exemplo de humanismo luminoso, que enche a manhã de todos.
Importante: a cena é realmente um exemplo luminoso, que enche a manhã de todos!
São muitos os exemplos, em que o instinto animal ensina os seres humanos a
serem mais humanos, assim como “humanizamos” os animais para submetê-los ao
controle do nosso afeto. Mas algo de heroico e amoroso, que transmitiu aquela
matéria, ficou pendente na minha lágrima matinal, numa matéria que – não
recordo bem – precedeu ou antecedeu a notícia do instinto canino tornado
exemplo humanizador.
A
matéria que deixou uma emoção “pendente”, a que refiro, tratava do “trabalho
escravo”. Era uma matéria “fria”, “isenta”, sem sentimento e nenhuma dor
exposta ou contida. Ela terminava com a explicação burocrática e distante, que
a situação “nova” – criada pela Portaria do Presidente Temer – dava “segurança
jurídica” à Inspeção do Trabalho escravo! Esta Portaria exige – para que se
possa constatar a condição análoga a de escravo numa relação de trabalho – que
os trabalhadores contratados devem ser flagrados em “cárcere privado”. Como
fazê-lo, é a questão, pois o “cárcere privado” real na nossa modernidade tardia
é diferente. Não é apenas o espaço marcado por uma jaula material de aço e
cimento, mas é igualmente um invólucro forjado pela informação subliminar. É o
território social imposto pelos valores que despertam desejos impossíveis de
serem saciados no mercado ou a frustração suscitada pela necessidade de
entregar corpo e alma, a quem oferece apenas pão, para reproduzir força a dos
donos do mundo. É o enorme campo imposto pelos que se apropriam da dor alheia
para saciar a alegria de quem pode comprar. O cárcere privado está, também, na mente dos
aprisionados não só pelas mentiras, mas também pelas verdades sonegadas. Eis o
“cárcere privado” da modernidade tardia, tão humanizador como a Lei dos
Sexagenários, que libertou os escravos de 60 anos, fazendo-o quando os seus
donos deveriam alimentá-los na hora da impotência dos seus músculos cansados.
A notícia sobre o instinto da cadelinha,
que nos ensina que amor heroico é sempre somado ao risco da contingência, veio
da tradição dos heróis de Conrad. A planejada ausência de emoção, na matéria
sobre os escravos humanos e reais do nosso tempo – que fechou com a seca
resposta do Governo golpista – veio da lição dos personagens partidos de
Dostoiévski: a falta de emoção, planejada na matéria dos humanos, segrega a
nossa consciência nos porões da indiferença, que explodira benevolente na
emoção revelada na matéria dos caninos.
Uma
faz a gente chorar na contingência heroica do instinto animal, a outra nos faz
esquecer o escravos humanos, escondidos nos porões mentais e físicos do nosso
tempo. Para aqueles que são os sustentáculos mais bárbaros do liberal-rentismo,
a prisão é apenas a sua própria vida, que se submete -como dolorosa falta de
virtude capitalista- aos grilhões das necessidades insatisfeitas e das emoções
cientificamente reprimidas.
***
Tarso Genro foi
Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro
da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do
Brasil.
Caricatura de Joseph
Conrad por David Low, 1928 (do Wikimedia Commons)
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