Thomas
Hobbes (1588-1679), apesar do que se anda dizendo nos últimos tempos, não era
comunista. Não era “coletivista” (seja lá o que isto significar), não era
vermelho, não “matou 20 bilhões (SIC) de pessoas”, não era amigo do “Mao”, do
“Pol Pot” ou do Stalin. Também não teve seus livros editados “em conluio com o
MEC”, não defendia a pedofilia, tampouco o “feminismo ditatorial”. Não visitou
o Fidel, nem militou ao lado de Simone de Beauvoir “contra a família e os bons
costumes”. Talvez, dito tudo isto, possamos acordar que Thomas Hobbes é uma boa
fonte para pensarmos política. Ou para começarmos a pensar política.
Hobbes
não chamou o Estado de “Leviatã” à toa. O Leviatã era um dos demônios que
povoavam o imaginário herdado da medievalidade. Um demônio das águas que tinha
a propriedade de se tornar maior sempre que engolia algo. Terminaria, por
óbvio, numa condição de ter absorvido a tudo e a todos. Inescapavelmente. A
este “mal” insuperável, Hobbes opunha uma situação ainda mais desesperadora.
Fora do Estado o homem existiria em seu “Estado de Natureza”. Uma forma
animalesca de vida que apenas os impulsos mais primais seriam dados a convidar
ações. Alimentação, reprodução e, acima de tudo, sobrevivência impeliriam o
homem em suas decisões. Este “Estado de Natureza” não permitiria a construção
de uma sociedade, eis que ele seria resultado da “máxima liberdade humana
possível”. Sem leis, sem regras sociais, sem relações de subordinação o homem
gozaria do maior espaço de ação possível, com as mínimas restrições apenas de
caráter físico.
Hobbes
afirmava, contudo, que a máxima liberdade encerraria também a máxima violência.
Sem instituições que defendessem a sua existência (culturais, sociais ou mesmo
físicas), o homem estaria sempre ameaçado pelo meio e por outros homens que
também teriam sua máxima liberdade. O choque de dois pontos em “máxima
liberdade” (podendo fazer absolutamente tudo que a natureza lhes permitisse)
seria a “máxima violência”. Deste Estado (de Natureza) não se poderia construir
nada, eis que sem limites à bestialidade do comportamento primal humano nada
poderia sobrevir. Esta argumentação apontava para a necessidade do Estado. Por
mais apavorante que fosse. Hobbes defendia que o homem se submetesse à
centralização estatal, como único meio de obter-se uma sociedade. A redução das
liberdades individuais traria como contraponto a possibilidade de construção de
sociedades e estas eram capazes de alçar o homem para fora de sua bestialidade
natural. Não me parece casual que, no momento em que vozes pelo mundo se
levantam exigindo “liberdade”, em sentido abstrato, seja também o tempo das
maiores violências contra os seres humanos. Não me admira que o início do
discurso neofascista seja sempre uma ode à “liberdade”.
John
Locke (1632-1704) e Jean Jacques Rousseau (1712-1778) também não eram
comunistas, coletivistas ou escreveram suas ideias em conluio com o MEC do
“Paulo Freire”. Estes dois pensadores estavam na outra ponta do processo
defendido por Hobbes. A forma de organização política centralizada na figura do
governante único (que embora não fosse a única defendida por Hobbes era a
“melhor”, segundo ele) acabou gerando um governo em que o poder centralizado se
tornou tirânico e incontestável. Tanto Locke quanto Rousseau, ainda que por
caminhos diferentes, defendiam que era necessário um freio aos poderes de
Estado. Este freio seria exatamente o respeito aos direitos “inalienáveis” do
indivíduo. Locke defendia três: Liberdade, Igualdade e Propriedade, de forma
que o Estado não poderia arbitrariamente se opor ou restringir qualquer um
destes. Claro que ao direito da “liberdade” seriam acoplados toda sorte de
respeito aos limites jurídicos, policialescos, sendo garantido o direito de
expressão, de religião e etc. À “igualdade” se assegurariam todos os limites
impostos às diversas formas de diferenciação social e a propriedade seria
respeitada, por óbvio.
Rousseau
concordava com Locke nas duas primeiras, ainda que Rousseau afirmasse que elas
deveriam ser ensinadas e defendidas por meio da “educação” e não como regra
impositiva, mas discordava da última. Para Rousseau, a principal fonte de
violência nas sociedades era a propriedade e era necessário que não a
colocássemos no mesmo patamar da Liberdade ou Igualdade. Um ponto essencial em
toda a literatura do liberalismo político do século XIX era a necessidade de
restringir os poderes do Estado. Charles d’Secondat (conhecido como Barão de
Montesquieu) afirmava que só um poder pode ser opor a outro e pensou na divisão
do poder uno absolutista em três; de tal sorte que eles se restringissem,
propiciando que o indivíduo pudesse sobreviver a este poder “plasmado” do
Estado.
Para
o liberalismo político do XIX – no velho continente ou nas discussões dos “Pais
Fundadores” no Novo – a maior liberdade possível para o Estado e para as
instituições deveria ser freada bruscamente pelas liberdades individuais. O
mais livre que o Estado poderia ir seria submeter-se, totalmente, aos códigos e
leis. Se, para o indivíduo, valia a regra da liberdade sempre e apenas
restrições pontuais legais (“O que a lei não proíbe a lei permite”), para o
Estado era exatamente o oposto! Os pensadores do XIX viram a sociedade do
Antigo Regime e como foi custoso acabar com o Absolutismo. Era preciso criar
amarras ao Estado. Deixado “livre”, o Estado criminalizaria a quem quer que
fosse, com “provas” ou sem elas. Com leis ou sem elas. O Estado, deixado livre,
seria a figura do Leviatã de Hobbes e esmagaria o indivíduo.
O
Brasil se desfaz neste exato ponto. As instituições, os juízes, ministros,
procuradores parecem acreditar que o Estado pode tudo para fazer “justiça”,
sendo a ideia de “justiça” não o resultado da aplicação da lei (com todos os
seus ritos e o respeito às liberdades individuais), mas um julgamento moral
individual feito a priori, que EMBASA as ações do Estado antes de qualquer
veredicto institucional. Esta inversão abominável está sendo materializada de
diversas formas. Nas perseguições feitas à la Lava a Jato. No vale tudo para
construir provas para as narrativas acusatórias do Estado. No absurdo inventado
do “in dubio pro societate”, que vimos até senadores que mal sabem o que é
latim repetirem lustrosamente em seus discursos. Nas tais “dez medidas contra a
corrupção”, que nada mais fazem do que nos transladar ao Estado Absolutista, de
forma que cada membro do Ministério Público seria um Luiz XIV e cada juiz um
Cardeal Richillieu.
Ao
não compreenderem que a liberdade do Estado é tão somente a liberdade de seguir
adstritamente os códigos, os ritos e curvar-se totalmente às liberdades
individuais, nossos “operadores do direito” tornaram-se ditadores. Talvez por
falta de formação intelectual ou mesmo por falta de solidez moral, alguns
acreditam que estão fazendo “o bem”, quando na realidade são o mal encarnado,
denunciado desde o século XIX. O Estado com livre ação prova qualquer coisa
contra qualquer um. Inventa corrupção onde não existe e deixa de ver onde ela
realmente está. Culpa o inocente, julgado por um culpado. Inverte premissas de
prova, usa o princípio da publicidade como assistente de acusação, relê a letra
da lei de forma a lhe favorecer e tudo mais que for necessário para atingir seu
objetivo: esmagar o cidadão. Cidadão que é desnaturalizado e desconstruído com
adjetivos como “corrupto”, “estuprador” e agora até “pedófilo”. O rótulo
imputado parece ter o poder de derrogar os direitos que levaram séculos para
serem construídos. E são mortalhas morais nas quais são embalsamados os vivos
antes dos julgamentos.
Jovens
apedeutas “pela liberdade e contra a corrupção” estão conseguindo transformar o
Brasil do século XXI no pior dos mundos: defendem a liberdade máxima econômica
e assim protegem e expandem as possibilidades de um bem que não possuem (o
capital), e defendem um estado interventor, punitivista, censurador e que não
respeita o indivíduo, acabando com um bem que todos temos: nossos direitos
individuais, políticos e sociais. É um erro de quem nunca leu o século XIX.
Parece pequeno, mas está fazendo um enorme estrago.
http://jornalggn.com.br/blog/blogfernando/um-pequeno-erro-um-grande-estrago-por-fernando-horta
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