O
que espanta no depoimento de Antônio Palocci ao juiz Moro não foi a traição que
ele perpetrou contra Lula, mas o despudorado cinismo da traição - a total
desfaçatez com que foi feita. O depoimento foi, praticamente, uma delação.
Nestes termos, seguiu o padrão de outras delações. Todas revelam o
apodrecimento do caráter moral da política brasileira e de boa parte dos
políticos e de empresários que se relacionam com o mundo político e com o
Estado.
Palocci,
a exemplo de tantos outros delatores, não revelou "verdades" a Moro
como forma de arrependimento moral, como sinal de consciência penitente de
alguém que havia cometido graves violações da lei, como alguém que vem a
público confessar imperdoáveis pecados contra a sociedade, como alguém que
sente uma dor moral insuportável e um sentimento angustiante de perda da honra
pessoal. Nada disso está presente no depoimento de Palocci. O único objetivo do
depoimento foi torpe: conseguir um benefício pessoal, buscando que lhe seja concedido
o privilégio da delação premiada. Este tipo de pessoa está apta a alcançar a
liberdade para continuar persistindo no crime, assim como Temer se habilitou
pela traição a chegar à presidência da República para continuar na senda
criminosa.
Palocci
nunca teve senso de grandeza, de responsabilidade e de honra, pois se o
tivesse, teria se preparado e se preservado para ser presidente do Brasil, ao
invés de perder a sua dignidade política com acusações falsas contra um pobre
caseiro e com festas tipicamente brasilienses na casa em que morava. A Deusa
Fortuna lhe era benfeitora e a ocasião era propícia para que ele se tornasse
presidente. No entanto, preferiu entregar-se às frivolidades da vida. Pessoas
que têm essas oportunidades e as jogam ao vento não podem ser confiáveis.
Trata-se
de um grave equívoco comparar Palocci ao prisioneiro político que, sob tortura,
entrega companheiros. Ninguém tem o direito de julgar a conduta de um
torturado, pois somente aqueles que foram torturados sabem os seus limites
físicos e psicológicos. Claro que a perspectiva de passar alguns anos na cadeia
é algo profundamente desagradável. Mas não constitui o limite da
insuportabilidade.
A
traição pode ser uma infração moral, uma infração penal ou ambas as coisas. No
caso, Palocci cometeu uma infração moral, pois o costume, a moral comum, tem a
fidelidade como um valor. A traição, nesse sentido, é um crime imperdoável, uma
coisa vil, abominável, uma ação de homens mal-aventurados. A conduta de Palocci
ante o juiz foi abjeta: subserviência ao novo senhor e frieza com Lula que o
honrou. Frieza também ao criar frases de efeito para produzir maior dano ao
ex-presidente.
A
traição é um crime imperdoável porque é, antes de tudo, um crime do coração. A
fidelidade abriga a fé, a crença no caráter confiável das pessoas. A traição
como infidelidade é a ruptura da fé, do pacto tácito ou explicito que existe
entre duas pessoas ou um grupo de pessoas, os membros de empresa, de uma
comunidade, de um partido, de uma nação.
É
um crime do coração porque fidelidade implica confiança e a confiança original
da experiência de vida e de mundo que se estabelece é a confiança entre a mãe e
a criança, é uma confiança de sentimentos, da sensibilidade, do coração. Esta
confiança original se prolonga na vida através da família, das amizades, dos
agrupamentos associativos ou empresariais de diversos tipos, da comunidade, da
sociedade, da política, dos partidos e do Estado. Sem confiança os seres
humanos ficam sós diante do mundo, mergulhados em sua avassaladora solidão.
Trair significa estilhaçar tudo isto.
A
delação premiada sem provas, tal como vem sendo desenvolvida no Brasil,
tornou-se um aterrador pedestal onde sobem os oportunistas, os cínicos, os
hipócritas os chefes de organizações criminosas. Sim, porque alguns chefes das
maiores organizações criminosas - os Odebrecht e os Batistas - são delatores.
Traição e
inconfiabilidade
Se
é verdade que a delação premiada bem conduzida pode beneficiar a sociedade ao
se descobrir crimes contra o Estado e contra o interesse público, quando mal
feita, ela desestrutura ainda mais a sociedade, reforçando o clima de
inconfiabilidade, de traições e de vale tudo, derrogando os valores da
solidariedade, da igualdade, da justiça, do civismo e de comunidade de
pertencimento. Não por acaso, o Brasil ostenta o pior índice de confiança
interpessoal em toda a América Latina, com apenas 3%. De acordo com o Instituto
Latinobarometro, que faz pesquisas sobre a democracia na região há mais de 20
anos, o Brasil ocupa este lugar faz tempo.
Não
por acaso, o Brasil lidera a queda no apoio ao regime democrático na medição do
ano passado, passando de 52% em 2015, para 32% em 2016. Isto é um prenúncio do
cenário eleitoral tormentoso que vem se desenhando no horizonte assustador de
2018.
A
cultura da traição é como uma lepra que vai destruindo das carnes da sociedade,
minando o capital social. É uma doença moral e espiritual que destrói a
sociabilidade. Não resta dúvida de que a confiança interpessoal é uma
componente fundamental para o vigor do associativismo, para o desenvolvimento
do civismo político e participação popular, para o fortalecimento das formas
organizativas da sociedade civil e para a superação das atomizações e divisões
sociais e políticas que enfraquecem o povo.
No
Brasil de Temer e de Palocci, dos Odebrecht e dos Batistas, há uma sistemática
ofensiva em favor dos valores da infidelidade, da traição e da vilania. Há uma
violenta ofensiva contra os valores do civismo, da unidade e da solidariedade
social. Esta é uma das formas astuciosas para manter a hegemonia de uma elite
predadora, que usa o Estado para manter seus privilégios e para assaltar o povo
pela corrupção, pela carência de direitos e pela extorsão tributária.
Um
país sem confiança interpessoal, social e política, um país que se move pela
infidelidade e pela traição, é um país sem futuro. Para que o país prospere e
se desenvolva, para que o país alcance elevados níveis de bem estar social, é
preciso que haja confiança nas instituições e nas leis, nos partidos e nos
líderes políticos. É preciso que haja sentimentos de honestidade, de
solidariedade, de confiabilidade e expectativa de normas e valores comuns,
compartilhados pela sociedade. O pouco que o Brasil tinha avançado neste rumo
da boa fé, da autoconfiança em si mesmo, sofreu um duro golpe com o golpe
político perpetrado pelo grupo de criminosos políticos que se instalou no
poder.
Na
medida em que a traição e a infidelidade foram erigidas em práticas contumazes,
os brasileiros se tornaram uma multidão de estranhos entre si, cada um
desconfiando do outro. O crescimento da violência criminal é a forma exasperada
da quebra da confiança e da boa fé que se desenvolveu a partir do meio
político. Hoje o que se tem é um Estado desorganizado e uma sociedade estraçalhada.
Aqueles que dizem que a democracia está funcionando no Brasil comentem um crime
de lesa-pátria. Se é verdade que a lei nunca funcionou bem e que o Judiciário
sempre foi tendencioso contra os pobres, os negros, os índios e as mulheres,
agora, com seu terrível martelo, ajudou a golpear a Constituição, se omitiu e
cometeu crimes também. Não por acaso, apenas 9% dos brasileiros acreditam que o
governo governa para todo o povo.
Somente
o povo nas ruas, liderado por líderes autênticos e corajosos, terá condições de
construir laços de unidade, de confiança, de solidariedade e de justiça
peregrinando rumo a um futuro mais promissor. Aconteça o que acontecer com
Lula, enquanto a sua liberdade não for cerceada, terá que peregrinar junto com
este povo, confiando nele, pois ele é a fortaleza dos líderes verdadeiros. Os
demais líderes progressistas também devem caminhar nesta peregrinação da
unidade e da esperança. Os Palocci da vida, por terem cometido delitos
imperdoáveis, devem ser esquecidos, devem ser condenados à damnatio memoreae.
http://jornalggn.com.br/noticia/o-brasil-da-traicao-por-aldo-fornazieri

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