Muito
tem sido dito nos últimos dias sobre a Reserva Nacional do Cobre e Associados
(Renca). Primeiro o governo federal anunciou sua extinção e, devido à ampla e
negativa repercussão nas mídias nacional e internacional e também nas redes
sociais, recuou. Cancelou o decreto que previa a extinção da Renca e editou às
pressas um novo (No – 9.147, de 28 de agosto de 2017), publicando-o na segunda
edição do Diário Oficial de segunda-feira. No entanto, a mensagem essencial em
nada foi alterada: o “governo” Temer não mede esforços e muito menos
consequências para atrair novos investidores e aventureiros para explorar
recursos naturais amazônicos.
Mas
vale ainda qualificar algumas questões sobre a Renca e sua extinção para melhor
compreender o tamanho do problema e da irresponsabilidade do governo Temer com
a Amazônia e com o país.
Uma
primeira questão é sobre as intenções do governo militar com a criação da Renca
em 1982, e como o contexto à época abriu brecha para que um outro projeto para
Amazônia fosse colocado no seu lugar: o projeto da floresta preservada ao lado
do direito dos povos indígenas, ribeirinhos e extrativistas às suas terras e
territórios.
Para
o governo militar, a Renca foi a saída encontrada para assegurar uma espécie de
“reserva de minério para a Companhia Vale do Rio Doce (então uma empresa
estatal, hoje privatizada e rebatizada como Vale), em um contexto em que os
militares tinham como projeto garantir o protagonismo da empresa na grande
exploração mineral na Amazônia, a exemplo do que já havia se dado com Carajás.
(…)
“Não está em nossas mãos afetar ou diminuir o grau de competição mundial às
nossas empresas estatais. O que está em nossas mãos é decidir – sim ou não – se
os competidores podem operar no Brasil, sujeitos às nossas leis, integrados nos
nossos interesses, cativos de nossa influência, vinculados aos nossos
investimentos aqui, e, portanto, por nós influenciados – ou fazer com que eles
concorram com a Vale do Rio Doce, a partir de outras áreas, sem qualquer
vinculação aos interesses da economia nacional, sem nenhum desejo de preservar
seus investimentos aqui, lançando-se numa competição talvez desalmada, regulada
unicamente pelas vantagens comerciais que pudessem obter no mercado
mundial”[1].
Ocorre
que essa “reserva” foi feita em um momento, começo da década de 1980, em que,
de um lado, as grandes mineradoras transnacionais estavam em uma profunda crise
de superprodução, revendo e cancelando investimentos e, de outro, a Vale estava
envolvida, e endividada, com os investimentos do projeto Ferro Carajás. Além
disso, o Brasil estava mergulhado em uma profunda crise fiscal. Ou seja, a área
da Renca, embora altamente relevante do ponto de vista do controle do acesso a
recursos minerais estratégicos, não era de interesse imediato, nem das grandes
mineradoras internacionais nem da da Vale do Rio Doce, então controlada pelo
governo militar e já em clima de “final de festa”. A ninguém interessava
disputar e explorar a Renca, e por isso ela foi mantida quase no esquecimento.
A
Renca tinha, portanto, um propósito claro de controle pelo governo da
exploração em grande escala de recursos minerais amazônicos. Por isso, o
decreto que a criou em 1982 estabelecia o monopólio da pesquisa para a
Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), outra estatal brasileira; e
que a exploração das jazidas potencialmente descobertas só poderia ser feita
mediante negociação dos resultados dos trabalhos de pesquisa com a CPRM e,
também, sob condições especiais estabelecidas pelo Ministro das Minas e Energia
e como parte de uma estratégia de “Segurança Nacional”.
Em
paralelo, outro projeto de país e para Amazônia estava em construção na década
de 1980, sob os escombros do regime militar. O projeto democratizante, da
Constituição Cidadã de 1988, da luta dos seringueiros e de Chico Mendes pelo
reconhecimento de seus territórios, dos povos indígenas pelo direito às suas
terras. foi nesse contexto de luta socioambiental pela preservação da floresta
e dos direitos de quem nela vive que foram criadas, depois da Renca, seis das
setes Unidades de Conservação e as duas Terras Indígenas que estão hoje
sobrepostas à área da hoje extinta Renca. Assim, na área da falida Renca se fez
presente um outro projeto para Amazônia, que está agora sob forte ameaça.
E
não é à toa que a legislação destas áreas protegidas vetou a exploração mineral
– proibida hoje em Unidades de Proteção Integral, em Terras Indígenas, e no
caso das Unidades de Uso Sustentável, somente quando os planos de manejo
permitirem a exploração em lugares específicos.
São,
em síntese, projetos antagônicos que deveriam ser dessa forma compreendidos
pela sociedade brasileira, para que essa pudesse se posicionar com a segurança
de quem sabe das consequências. Trocando em miúdos: a legislação consolidou o
entendimento que permanece: a mineração é sim incompatível com a proteção
ambiental conforme prevista nestas Áreas Protegidas.
Uma
segunda questão: por quê extinguir a Renca no atual contexto e quais interesses
esse ato revela? De um lado, não é novidade que canadenses, australianos,
chineses, empresas júniores da mineração loucas para descobrir reservas, e
depois vendê-las caro, estão sempre de olho em reservas de alta relevância para
exploração em grande escala – no BrasiL, em outros países da América Latina, na
África, onde quer que estes recursos estejam. No caso da Renca, reza a lenda (e
os pedidos de pesquisa) que lá se escondem muitos recursos, principalmente
ouro, mas também titânio e cobre.
De
outro lado, também não é novidade que no contexto de profunda crise fiscal de
que o atual governo nos mantém refém, também reza a lenda que atrair
investimentos estrangeiros para a grande mineração fará crescer a economia e
gerar prosperidade. Sobre isso, vale dizer que não vão! Grandes projetos
minerais na Amazônia servem essencialmente para garantir a lucratividade de
corporações transnacionais, inclusive a Vale (hoje não mais uma empresa
estatal) e seus investidores. Lucratividade que se serve não somente de
recursos naturais que se esgotarão, mas também da superexploração do trabalho,
de um licenciamento ambiental frágil, e, ainda, de inúmeros benefícios fiscais
e tributários que tornam a Amazônia um paraíso extrativista e tributário para a
grande mineração.
Por
fim, uma terceira questão: o governo federal vem articulando uma série de
medidas com as bancadas ruralista e mineral, em paralelo à Renca e com o
propósito de abrir novas frentes de exploração de recursos naturais no Brasil,
a saber:
1)
a tentativa de flexibilização do licenciamento ambiental que tem entre seus
propósitos também atrair investimentos para a exploração de recursos naturais e
infraestrutura para garantir sua exportação;
2)
o fim das restrições para exploração de recursos minerais em Unidades de
Conservação;
3)
a liberação da mineração em Terras Indígenas;
4)
a criação de uma nova governança para o setor com a substituição do
Departamento Nacional de Produção Mineral por uma Agência da Mineração com a
promessa de agilizar a concessão de novas licenças para pesquisa, privada, e
exploração.
Por
isso, a publicação de uma nova versão do decreto de extinção da Renca em nada
muda a intenção do “governo” Temer de atrair novos investidores e aventureiros
para explorar recursos naturais amazônicos. Ele pode escrever, o que é o mesmo
que chover no molhado, que, por enquanto, a exploração mineral somente está
permitida na área da falida Renca que não se sobrepõe a áreas de proteção onde
a mineração não é permitida. Mas está claro que as intenções vão muito além
disto.
O
novo decreto foi meticulosamente arquitetado para parecer um avanço em relação
ao publicado na semana passada, mas, na verdade, não passa de uma retórica
vazia e perversa.
Alguns exemplos:
-
Prevê o cancelamento de títulos concedidos e o indeferimento de requerimento de
novos títulos nas áreas que já são protegidas da mineração e que, portanto,
seriam de qualquer forma impedidas por lei. Pelo menos enquanto forem mantidas
a legislação ambiental e indígena que protege áreas da mineração.
Além
disso, como mostra o estudo sobre a Renca publicado pelo WWF, isto não
representa muita coisa perto do que se espera atrair de novos investimentos.
Segundo o estudo, existem três situações previstas na Portaria MME Nº 128 que
define os trâmites administrativos para análise dos processos minerários com
interferência na Renca:
i)
a análise dos títulos já outorgados, o que só pode ser feito com base na
legislação vigente, ou seja, não concedendo títulos em áreas onde a mineração
não é permitida;
ii)
o indeferimento de todos os títulos protocolizados depois da criação da Renca
em 1982, o que libera espaço para novos investidores;
iii)
a análise dos 160 requerimentos minerários protocolizados antes da criação da
Renca; muitos de empresas que parecem fantasmas ou já extintas, à exceção, por
exemplo, da Vale, que tem lá 19 requerimentos de pesquisa.
-
Prevê a criação de um “Comitê de Acompanhamento das Áreas Ambientais da Extinta
RENCA” de caráter consultivo, ou seja, sem poder nenhum para mudar o jogo, e
nem mesmo para acompanhar áreas que já estão sob gestão de órgãos, os quais
estão falidos e incapazes de garantir a proteção – Funai e ICMBio.
-
Por fim, a pérola do mais novo conceito criado no Decreto o “interesse público
preponderante”. Um festival de adjetivos que nada acrescenta à legislação em
vigor.
O
que está em questão, portanto, e por isso a Renca tem sido acertadamente tão
discutida, é um projeto para o país e para a Amazônia que nos está sendo imposto
goela abaixo por um governo sem nenhuma legitimidade e que serve a interesses
que claramente não são nossos.
Nota
[1] – Ata da
vigésima quinta sessão do Conselho de Segurança Nacional realizada em 18 de
Dezembro de 1964. Disponível em http://imagem.arquivonacional.gov.br/sian/arquivos/1013061_51385.pdf
http://outraspalavras.net/brasil/por-tras-do-mega-ataque-de-temer-a-amazonia/
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